quinta-feira, 6 de dezembro de 2012

A Primavera Árabe. Parte I

Preâmbulo
Em 17 de Dezembro de 2010 Tarek Mohamed Bouazizi um vendedor ambulante tunisino imolou-se pelo fogo em Sidi Bouzid, uma cidade rural da Tunísia onde a corrupção campeava (como aliás em toda a Tunísia) e a taxa de desemprego era de 30%. O suicídio de Tarek representou um protesto desesperado contra uma vida sem perspectivas e, concretamente no dia 17 de Dezembro, contra a confiscação dos seus pertences, perseguição, maus-tratos e humilhação infligidos por fiscais municipais e pela polícia.
A morte de Tarek sobreveio em 4 de Janeiro de 2011 e constituiu o rastilho que deitou o fogo à fogueira: a fogueira das revoluções democráticas que, a partir da Tunísia, se estendeu por vários países do mundo árabe: Egipto, Bharein, Líbia, Iémen, Síria.
As populações trabalhadoras desses países, lutando por direitos democráticos e condições de vida dignas, insurgiram-se denodadamente contra os respectivos governos ditatoriais e corruptos, rodeados e apoiados por autênticas máfias. Os rótulos dos governos e presidentes não interessaram para nada. Havia desde os que sempre se mostraram adeptos do capitalismo e fiéis aliados das potências imperialistas (com EUA à cabeça) até aos que passaram por períodos de grandes nacionalizações, se camuflaram de «socialistas» e eram fiéis aliados da URSS. Opressão é opressão. Para os trabalhadores tanto faz que ela provenha do capitalismo como de uma elite burocrática e totalitária que se diz socialista mas, no fundo, contém em si os germes e apetites de transição para o capitalismo; como na URSS e na China.
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A nível mundial a esquerda, nas suas várias correntes, tem revelado embaraços na apreciação da Primavera Árabe. Assim acontece, também, com os dois grandes partidos da esquerda portuguesa.
Para o PCP, agarrado à nostalgia da URSS, a tese essencial parece ser a seguinte: as revoluções de países como a Tunísia e o Egipto, fiéis aos EUA, são «boas revoluções»; as da Líbia e da Síria, países que se mostraram contra os EUA e aliados da URSS num certo período de tempo, que não o recente, são «más revoluções». A tese não é formulada exactamente assim, mas a forma como analisam (de facto, superficialmente) as respectivas revoluções e o teor dos comunicados leva essa marca indelevelmente impressa.
Para o BE, a situação não é muito diferente, com a agravante de que umas vezes parecem estar a favor das revoluções na Líbia e na Síria e outras vezes parecem estar contra. Tem também outras «oscilações»; como aprovar na AR, um voto de condenação apresentado pela direita (PS, PSD e CDS-PP) pelo massacre na Síria promovido por Bashar Al Assad e outro apresentado pelo PCP e em que se inclui este crime «na sequência de uma onda de violência marcada por vários outros massacres e atentados bombistas» pelas forças populares. Enfim, o BE «vai a todas».
Relativamente à Síria e Líbia, PCP e outros fazem uso constante de afirmações como esta de um comunicado do PCP: «São as enormes riquezas naturais da Líbia – nomeadamente o petróleo e o gás natural – e a importância geoestratégica deste país, que movem aqueles que desencadeiam e apoiam mais esta agressão imperialista, e não quaisquer princípios de defesa da democracia, da liberdade e da autodeterminação do povo líbio.». Efectivamente é dever imperativo de todos os progressistas e internacionalistas condenar as ingerências imperialistas que impeçam a autodeterminação dos povos. Mas, atenção: a insurreição popular da Líbia nasceu e cresceu como uma autêntica insurreição popular. Não foi, como o PCP faz crer (nesta citação e noutros documentos), uma mera «agressão imperialista». Nem na Líbia nem na Síria. É certo que o imperialismo se intrometeu nas insurreições populares da Síria e da Líbia, como sempre o faz em todas as insurreições e revoluções. Certamente não é pelo facto de o imperialismo se poder intrometer e até influenciar o curso de uma revolução que os povos deixarão de lutar pelos seus direitos.
Seguindo a linha de análise do PCP, e de outros ideólogos, a revolução do 25 de Abril (onde figuraram sinistras personagens de extrema-direita como Spínola, Galvão de Melo, Sanches Osório, etc.), revolução rapidamente cavalgada pelo imperialismo, devia então ser classificada não como uma revolução democrática mas como uma mera agressão imperialista. De facto era mais ou menos assim classificada na altura (como revolução burguesa ao serviço do imperialismo) pelo MRPP e outros esquerdistas. Mas mais: se a revolução em Portugal se tivesse desenrolado como insurreição popular armada (como previu Álvaro Cunhal) e no decurso dessa insurreição recebêssemos armas da França e da Inglaterra (sim, porque da URSS não as receberíamos de certeza), então se calhar o melhor era recusar essas armas porque vinham do imperialismo. Além disso, se no decurso de tal revolução, as forças populares (onde estariam comunistas) estivessem a ponto de ser trucidadas pelos aviões de Caetano o melhor seria recusar qualquer ajuda de países imperialistas para deitar abaixo os aviões. Não; seria muito melhor deixar Caetano esmagar a as forças mais consequentes da revolução num banho de sangue. É que para estes ideólogos o imperialismo é omnisciente. Mesmo quando, e apesar dos seus interesses imediatos, acaba por servir as forças do progresso. Assim, por exemplo, para estes ideólogos, Lenine devia ter recusado liminarmente a viagem em carruagem fechada, oferecida pelo imperialismo alemão, que lhe permitiu chegar à Rússia em Abril de 1917. Ofertas do imperialismo? Safa!
A citação acima do PCP favorece também uma ideia ingénua que se vê constantemente adoptada por quem anda mal informado (mesmo sem ser essa a intenção do PCP). A ideia é esta: qualquer revolução que ocorra num país com petróleo é (quase diríamos por «definição») uma revolução imperialista porque os imperialistas estão sempre com olho no petróleo. É claro que a ideia é ridícula. Equivaleria a dizer que os povos dos países com petróleo nunca deverão revoltar-se. Quer com «enormes» quer com poucas riquezas naturais, quer com petróleo quer sem petróleo, quer com importância quer sem importância geoestratégica, o imperialismo sempre procurará intrometer-se. Quanto mais não seja para evitar «contágios», como aconteceu quando os EUA invadiram em 1983 a minúscula ilha de Grenada sem petróleo, com pouquíssimos recursos e reduzidíssima importância geoestratégica.
Em suma, em vez da análise paciente e rigorosa da realidade, tendo sempre como Norte os interesses dos trabalhadores e das massas populares, nada disso: toca a aplicar um esquema pré-fabricado que permita efectuar uma rápida triagem entre «bom» e «mau».
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As revoluções da Primavera Árabe são um acontecimento histórico de primordial importância neste segundo decénio do século XXI. São revoluções que, pela sua amplitude, formas de luta, desenvolvimentos políticos e influências mundiais, merecem ser estudadas e seguidas atentamente.
Vamos apresentar em próximos artigos a nossa apreciação das revoluções de quatro países da Primavera árabe: Tunísia, Egipto, Síria e Líbia. Iremos fazê-lo com algum detalhe, aproveitando também para divulgar, em rápido esboço, a história mal conhecida dos países árabes desde o século XIX, história essa que permite compreender melhor o particularismo destes países que se revela nos factos da actualidade. É uma tarefa que iremos alicerçar em livros, artigos de revistas, notícias de jornais e artigos de alguns portais e blogs. Procuraremos ter o cuidado de apresentar factos concordantes em várias fontes, enquadrados numa visão materialista e dialéctica. Estamos conscientes que a nossa apreciação poderá conter insuficiências ou mesmo erros. Procuraremos minimizá-los; como sempre, agradecemos que nos apontem quaisquer factos ou aspectos que permitam melhorar os nossos textos.