sexta-feira, 28 de dezembro de 2012

A Primavera Árabe. Parte II (Preâmbulo, Tunísia)

II – Da Dominação Colonial à Independência
Em meados do século XIX o império otomano estava em total decadência. A rapacidade dos senhores feudais turcos e guerras contínuas com províncias sublevadas tinha arruinado a agricultura e a economia, gerado fomes e epidemias. As consequências a nível militar não se fizeram esperar: o alistamento de tropas regulares diminui; o corpo de janízaros, que constituía uma ameaça permanente para os senhores feudais e mesmo para o próprio sultão, é extinto em 1826; o armamento das tropas torna-se obsoleto pelos padrões ocidentais. As potências europeias, em especial a Inglaterra e a França, aproveitam para se intrometer nas disputas autonomistas das províncias, fornecendo aos autonomistas apoio militar em troca de condições especiais no comércio e na economia em geral. A Inglaterra é a grande potência imperial do século XIX e princípios do século XX. A França constitui também uma potência de respeito. A burguesia da Itália, depois da unificação em 1861, segue nas peugadas da Inglaterra e França, qual chacal (como dizia Bismark) na recolha de «restos».
Um aspecto importante e distintivo do colonialismo europeu do mundo árabe é que as potências colonialistas procuraram sempre utilizar os bons serviços dos senhores feudais locais. Preservaram, até onde era do seu interesse, o modo de produção feudal e as relações feudais. Como consequência, o capitalismo no mundo árabe teve uma evolução muito lenta ([1]). Além disso, o facto de que o clero muçulmano era também peça do sistema feudal (possuía vastos domínios onde construía as mesquitas, ermitérios e escolas corânicas), conjugado com a ausência de uma ruptura com o sistema feudal, como aconteceu na Europa, levou a que quase todas as sublevações contra os opressores coloniais fossem enquadradas por religiosos e justificadas em termos religiosos. O mundo árabe não conheceu nada de parecido com a Grande Revolução Francesa, criadora da instituição de um estado laico ([2]). Não tinha burguesia suficientemente forte para isso. Ao invés, a submissão e associação da burguesia autóctone aos invasores estrangeiros, no saque das riquezas nacionais, levou os oprimidos árabes, os mais pobres dos pobres, a combaterem sob a bandeira de Alá os «modernismos» importados. Tal característica subsistiu até aos dias de hoje.
A colonização europeia do mundo árabe (ainda quando oficialmente denominadas províncias do império otomano) seguiu quase sempre uma mesma via evolutiva: a penetração progressiva do capital estrangeiro seguida da progressiva escravização financeira, imposta por pagamentos de dívidas às potências imperiais.
A partilha do mundo árabe foi uma das causas da 1.ª guerra mundial. As independências só surgiram depois da 2.ª guerra mundial.

Tunísia
Escravização financeira
A colonização da Tunísia foi levada a cabo pelos franceses, que já tinham penetrado em 1830 na vizinha Argélia do modo mais brutal (pela mão dos mesmos generais que massacraram dezenas de milhares de trabalhadores parisienses nas revoluções de 1848 e da Comuna de Paris em 1871).
Quando a França invadiu a Argélia em 1830 o Bei ([2]) e outros senhores feudais da Tunísia alegraram-se com o facto, devido a rivalidades com os feudais da Argélia. A França, aproveitando o pretexto, declarou hipocritamente a sua intenção de defender a autonomia da Tunísia. Em resposta, em 1836, a Turquia enviou uma armada à Tunísia; a França enviou uma armada contra os turcos que acharam preferível retirar sem combate. A França entrou então na Tunísia em 1837, apesar de objecções inglesas (não desejavam ver um território sob domínio francês próximo de Malta). O Bei procurou manobrar entre franceses e ingleses e modernizar o país e o exército.
Para as suas reformas o Bei contraiu empréstimos e firmou contratos junto da França e também da Inglaterra. Os empréstimos foram dissipados pelos cortesãos e senhores feudais. O exército continuou um exército de parada: as armas compradas aos europeus não disparavam, as munições não explodiam e os barcos afundavam-se. Em 1858 uma nova constituição era promulgada a qual seguia os ditames de «modernização» da Turquia, entre os quais a abertura ao capital estrangeiro. A Inglaterra correu a construir o caminho-de-ferro entre Tunis e Goleta. A França correu a construir o telégrafo, a apropriar-se de concessões latifundiárias e de minas. O dinheiro vinha dos bancos ingleses e franceses.
Em 1862 a dívida da Tunísia ascendia a 28 milhões de francos (MF), qualquer coisa como 60 milhões de euros de 2006 e correspondendo a cerca de 41% do PIB tunisino ([4]). Pode não parecer muito, actualmente, mas na época era considerado um montante elevado de dívida. Um consórcio de bancos franceses propôs um empréstimo que o Bei aceitou (em Março de 1863; houve suborno de ministros): 35MF. Destes, 9,8MF foram deduzidos a título de compensação pela dívida já existente e 20MF foram pagos em espécie: produtos franceses em stock! O Bei só recebeu 5,6MF. E isto «tudo» com a obrigação da Tunísia pagar 63MF (28MF + 35MF + um adicional de 13MF de comissões!) em 15 anos.
No espaço de um ano a dívida da Tunísia subiu de 41% do PIB para 93% do PIB!
Para satisfazer a dívida o Bei aumentou o imposto fixo (dito de capitação), igual para todos. Rebentaram revoltas populares, rapidamente esmagadas. Em 1865 o Bei contrai novo empréstimo: 25 MF. A «história» dos empréstimos repte-se até que em 1867 a dívida já ascendia a 125 MF, 175,5% do PIB! O Bei aceitou então uma Comissão Financeira Internacional dos banqueiros europeus, com poderes para controlar as receitas das alfândegas, e comprometeu-se a pagar por ano o correspondente a metade do orçamento de estado.
O protectorado francês
Isto não era suficiente para os apetites dos capitalistas franceses. Em 1881, aproveitando como pretexto um incidente fronteiriço (e uma situação internacional favorável do ponto de vista de partilha de interesses imperiais), um exército francês de 30 mil homens invadiu a Tunísia e entrou em Tunis. Oficialmente para impor ordem no país e nas suas finanças. O Bei não ofereceu resistência e aceitou um tratado de submissão à França, instituindo um «protectorado francês» (9 de Junho de 1881) que durou até 1956. Tiveram lugar insurreições populares no sul do país, prontamente esmagadas.
Em 1884 a Comissão Financeira Internacional foi extinta e todos os poderes de gestão financeira passaram para o governador-geral francês. Todas as forças militares e administração geral passaram a ser da competência do governador-geral, que exercia o poder nas províncias através de delegados franceses; a nível distrital a administração servia-se de kaids [5] tunisinos formalmente dependentes do Bei mas de facto dependentes do governador francês distrital e geral. A população rural, de facto, raramente via uma cara francesa e tinha a ilusão de que quem governava era o Bei. O poder estava todavia totalmente nas mãos do governador-geral, representante dos interesses dos banqueiros e grandes capitalistas franceses.
Note-se que a França não destruiu o sistema feudal tunisino, mas usou-o em seu próprio benefício. Os senhores feudais passaram a aliados dos franceses; o Bei recebeu 1,25 MF por ano como recompensa por ter atraiçoado o seu país.
Em 1885 foi decretada uma lei sobre a propriedade da terra, no âmbito da qual os franceses criaram um Tribunal da Terra e decretaram várias determinações legais (como a obrigação de provar com documentos exactos a pertença das terras) que «legalizaram» a apropriação forçada a favor de colonos franceses das terras individuais de proprietários árabes, comunais (das tribos) e das irmandades religiosas (waqfs). O esquema era simples: o governador-geral, em representação do «protectorado», estabeleceu um «fundo» de colonização das terras compradas em grandes lotes por banqueiros de Paris que nunca puseram os pés na Tunísia. Estes «proprietários tunisinos» compravam a baixo preço as terras do «fundo» e vendiam-nas a preços mais elevados a agricultores franceses que emigravam para a Tunísia. Enormes companhias foram criadas em França para a gestão deste saque. O escândalo foi de tal ordem que jornalistas e outras personalidades denunciaram o abuso; quase todos foram silenciados por suborno, através de ofertas chorudas de terras na Tunísia.
No saque de terras participaram também italianos que emigraram massivamente para a Tunísia instigados pelo seu governo.
O número de colonos cresceu rapidamente: 10.000 em 1891, 46.000 em 1911 e 144.000 em 1945. ([6]) As terras pertencentes a europeus eram as melhores, as de maior dimensão (média de 250 ha contra uma média de 6 ha para os tunisinos), as que usavam métodos mais avançados dado o acesso dos europeus a investimentos (Crédit Foncier de Tunisie), e as que davam maior rendimento. A título de exemplo, na altura da independência existiam 4.500.000 ha explorados; apenas 800.000 ha eram explorados por europeus. Globalmente, porém, as terras europeias apesar de corresponderem a 18% do total agricultado usavam 2,8 vezes mais tractores e obtinham rendimentos 3 vezes superiores aos dos tunisinos ([7,8,9]).
Quer nas terras dos colonos quer nas dos tunisinos persistiu o modo de exploração feudal: corveias, trabalho forçado. No sul do país ainda existiam escravos até 1890 (data da abolição final) empregues na construção de canais de irrigação e ao serviço de tribos nos oásis.
A colonização da Tunísia representou também o saque das matérias-primas (por exemplo dos depósitos de fosforite e das minas de chumbo) e um mercado para os produtos franceses que a breve trecho destruíram o artesanato local. Foram construídos caminhos-de-ferro para as exportações de matérias-primas.
O desapossamento dos agricultores tunisinos ou a sua falência em competir com o modo de exploração dos europeus e a destruição do artesanato levou à migração de população para as grandes cidades e a criação de imensos bairros de lata.
O governador-geral também contratou trabalhadores franceses para profissões mais técnicas. Os trabalhadores tunisinos passaram a ser cidadãos de segunda sem quaisquer direitos. O chauvinismo demonstrado pelos trabalhadores franceses separou-os das lutas reivindicativas dos tunisinos. Não existia o direito de reunião; a imprensa estava proibida de emitir opiniões independentes. As escolas, entretanto construídas, eram para os franceses e elites tunisinas.
Em 1905 formou-se o partido Republicano que incluía pequeno-burgueses franceses e intelectuais tunisinos nacionalistas. Rapidamente se cindiu formando-se o partido Tunisino que defendia reformas profundas.
Em Fevereiro de 1912 um grupo de trabalhadores tunisinos dos caminhos-de-ferro exigiu o fim da discriminação, reivindicando salário igual ao dos franceses pelo mesmo trabalho. Quando as autoridades recusaram a população urbana boicotou os caminhos-de-ferro; as autoridades prenderam os líderes do partido Tunisino e baniu-os. Depois da primeira guerra mundial formou-se o partido Destour («Constituição») representando a burguesia e intelectualidade urbana tunisinas. Apesar das limitações reformistas do Destour a sua contribuição para a criação de clubes e imprensa reivindicativa nacionalista foi positiva. Em 1934 a corrente mais progressista do Destour, liderada por Habib Bourguiba, formou o Neo-Destour. O novo partido defendeu as reivindicações das populações rurais, e incitou ao boicote dos produtos franceses e à desobediência civil. Limitando a sua luta ao objectivo de se apoderarem do aparelho de Estado, o Neo-Destour estabeleceu relações patrão-cliente com a burguesia tunisina, do tipo: se ajudares o Neo-Destour nós ajudamos-te.
Na frente laboral os trabalhadores tunisinos filiaram-se primeiro na CGT francesas. Depressa se deram conta, porém, que os patrões da CGT (ligados ao PS francês) tinham concepções chauvinistas e paternalistas, recusando a representação de tunisinos no órgãos dirigentes e não apoiando as reivindicações tunisinas de salário igual para trabalho igual. Em Agosto de 1924, numa greve de estivadores tunisinos não apoiada pela CGT os tunisinos, com elementos progressistas do Destour, formaram a CGTT (Confederation Génerale dês Travailleurs Tunisiens). Só tiveram o apoio do PCF. O dirigente local socialista da CGT condenou a CGTT pela sua «agitação nacionalista, fanática, xenófoba, apoiada pelos comunistas»! As autoridades exigiram que a CGTT se fundisse com a CGT. Perante a recusa, os dirigentes da CGTT foram presos e deportados.
Depois da segunda guerra mundial formou-se a UGTT (Union Génerale des Travailleurs Tunisiens) com apoio directo do Neo-Destour; tornou-se uma força de apoio a Bourguiba e seus aliados ([9]) na liderança do Neo-Destour.
Em 1956, depois de vários anos de manobrismo de Bourguiba, o governo francês aceitou conceder a independência à Tunísia. Os interesses do imperialismo francês não eram muito afectados por esta independência e, na altura, tinha outras preocupações: a Argélia e a Indochina.

[1] V. Lutsky (1969) Modern History of the Arab Countries. Progress Pub., Moscovo. Este é um livro fundamental no tema.
[2] Note-se que nem mesmo a revolução inglesa de 1680 conduziu à formação de um corpo de necessidades e ideias conducentes a um estado laico. Pelo contrário. As lutas da burguesia inglesa contra o feudalismo foram conduzidas e justificadas sob a bandeira da religião (puritanos, quakers, etc.).
[3] Título feudal de alguns governadores de províncias otomanas, mesmo quando estas já se tinham praticamente autonomizado do império.
[4] Os nossos cálculos baseiam-se na base de dados históricos de Angus Maddison, The World Economy: Historical Statistics (disponível na Internet) que publica os dados do PIB da Tunísia para 1820 e 1870 em GK dólares de 1990 (GK$). Por interpolação, o PIB para 1862 é de 685 GK$. Os dados do PIB da França de 1862, publicados pelo INSEE, permitem estabelecer a correspondência para esse ano entre o franco de 1938 e o GK$: 1 F1938 = 1,365 GK$1990. A depreciação do franco de 1862 até 1938 pode obter-se combinando informação do INSEE (recua até 1911) com outras fontes, por exemplo J.M. Jeanneny (1988) Monnaie et Mécanismes monetaires en France de 1878 à 1939, Revue de l'OFCE, 28:24:5-53. Chega-se a um factor de conversão de 7,4 F1875 = 7 F1911 = 1 F1939. Estes nossos cálculos são confirmados pela conversão entre 1860 e 1940 usando a tabela de conversão disponível em http://www.histoire-genealogie.com/spip.php?article398&lang=fr. Note-se que o franco se manteve bastante estável entre 1860 e 1880. Assim, o PIB da Tunísia em 1862 deveria corresponder a 67,8  milhões de francos da época.
[5] Chefe distrital na Tunísia.
[6] wikipedia. Confirmado por outras fontes.
[7] A Nicolai (1956) Approche structurelle et effet de domination. Ume application: la Tunisie. Revue Economique, 7:5, 738-776.
[8] A Nicolai (1962) Tunisie: fiscalité et developpement. Tiers-Monde, 3:11, 429-478.
[9] HM Woodward (1994) Rethinking anti-colonial movements and the political economy of decolonization: the case of Tunísia. Arab Studies Quarterly, 16:1.