sexta-feira, 7 de dezembro de 2012

A Economia convencional: uma pseudociência (Va)

V. A «mercadoria» trabalho
Temos vindo a seguir o livro de Steve Keen (Professor de Economia e um keynesiano; ver artigos anteriores, nomeadamente o primeiro) onde ele desmonta de forma arrasadora a Economia convencional, dita neoclássica (a que é ensinada nas Universidades), desmontagem essa assente em sólidos resultados teóricos e empíricos da autoria de um grande número investigadores (incluindo neoclássicos!).
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No presente artigo vamos analisar a questão do trabalho. Esta questão é analisada pelos neoclássicos como se o trabalho fosse uma mercadoria como outra qualquer, sujeita à lei da oferta e da procura.
Já vimos em artigos anteriores que as ideias neoclássicas sobre a curva da procura de mercado, assumindo «consumidores racionais» não é como os neoclássicos gostariam que fosse: uma curva simplesmente descendente. De facto, demonstra-se que a curva pode ter qualquer outra forma. Isto para já não falar em que a assunção de «consumidores racionais» é um mito sem aplicabilidade no mundo real. Por outro lado, vimos também, que não existe uma curva da oferta num «mercado perfeitamente competitivo». Tal ideia assenta, como vimos em artigo anterior, numa falsa assunção matemática.
Os neoclássicos abordam a questão do trabalho, nomeadamente a questão da fixação do salário, usando as noções erradas sobre curvas da procura e da oferta de mercado. Iremos ver que, mesmo partindo dessas assunções que sabemos inválidas, mesmo assim as análises económicas neoclássicas do mercado de trabalho estão erradas. Este é um dos temas em que a motivação ideológica neo-clássica, de defesa do capitalismo, é mais patente.
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Um primeiro aspecto a ter em conta é que para a Economia convencional o «trabalho» é um factor de produção como qualquer outro, seja ele maquinaria ou matéria-prima. Mais: para os neoclássicos o trabalhador ao vender o seu trabalho toma essa decisão de forma tão independente como o capitalista. Trabalha ou não, conforme quiser. Nesta concepção o desemprego existe porque os trabalhadores não querem trabalhar (!).
Vejamos porque razão os neoclássicos são levados a tais conclusões, tão do agrado dos capitalistas.
Uma diferença importante entre o trabalho (considerado aqui como quantidade de trabalho efectivo) e qualquer outra mercadoria ¾ como as laranjas e maçãs que considerámos ao tratar da curva da procura de mercado ¾, é que no caso do trabalho as decisões sobre oferta são tomadas pelos consumidores (os agregados familiares que fornecem trabalho) e não pelos produtores (como para as laranjas e maçãs), enquanto as decisões sobre procura são tomadas pelos produtores (as firmas que contratam trabalhadores) ao contrário do que acontece com outros bens.
Portanto, para a «mercadoria» trabalho há uma inversão de perspectiva relativamente a outras mercadorias: o que é oferta para outras mercadorias é procura para o trabalho e vice-versa.
Comecemos, então, por analisar a procura da «mercadoria» trabalho. Essa procura depende de decisões das firmas de contratar trabalhadores para produção com lucro. Estamos, assim, do ponto de vista neoclássico, numa situação parecida com a da oferta de mercadorias que tratámos nas partes III e IV. Vamos usar os dados da mesma tabela 1 apresentada na parte IV, mas agora concentrando a nossa atenção no trabalho, que passa a ser a nossa variável de referência, ao contrário do volume de produção (quantidade de unidades produzidas), como no artigo anterior. A tabela 1 abaixo reproduz a tabela 1 da parte IV, com excepção da coluna «Receita marginal do trabalho» cujos valores se obtêm multiplicando a «Produção marginal» pelo preço de mercado que tínhamos já considerado: 4 €.

Tabela 1
N.º de trabalha-dores
Produção
Produção marginal
Total de salários
Custo total
Custo marginal
Receita total
Receita marginal do trabalho
Lucro
1
49
49
1000
251000
20,4
196
196
-250804
2
100
51
2000
252000
19,6
400
204
-251600
10
633
79
10000
260000
12,7
2532
316
-257468
100
21153
361
100000
350000
2,8
84612
1444
-265388
304
138488
724
304000
554000
1,4
553952
2896
-48
305
139212
724
305000
555000
1,4
556848
2896
1848
401
211187
761
401000
651000
1,3
844748
3044
193748
500
284677
709
500000
750000
1,4
1138708
2836
388708
664
380948
425
664000
914000
2,4
1523792
1700
609792
700
394515
329
700000
950000
3,0
1578060
1316
628060
725
401807
256
725000
975000
3,9
1607228
1024
632228
726
402060
253
726000
976000
4,0
1608240
1012
632240
750
407187
177
750000
1000000
5,6
1628748
708
628748
800
411634
1
800000
1050000
1000,0
1646536
4
596536



De facto, na concepção neoclássica, o salário é uma constante, tal como considerámos na tabela 1 (1000 €), constante essa que é fixada pelo mercado de trabalho em que cada firma é um actor muitíssimo pequeno. A receita que a firma faz ao empregar o último trabalhador corresponde à coluna de «receita marginal do trabalho». Conforme tínhamos visto no anterior artigo, a produção marginal correspondente à tabela 1 tem uma evolução parabólica; logo, a receita marginal do trabalho, que é dada pela simples multiplicação da produção marginal pelo preço de mercado, é também parabólica, conforme mostra a figura 1.
 Fig. 1. Produção marginal e receita marginal do trabalho. A escala vertical deve ser lida em unidades produzidas no que se refere à produção marginal e em € no que se refere à receita marginal.
  
Na figura 1 sabemos que só a partir de 401 unidades produzidas o custo marginal começa a crescer e eventualmente se atingirá o lucro máximo (ver artigo anterior). Esta evolução corresponde ao ramo descendente da parábola da produção marginal, consubstanciando a ideia neoclássica da produtividade decrescente com o número de trabalhadores (que já vimos estar errada mas vamos continuar com se nada fosse). Assim, o ramo descendente da receita marginal que se obtém com o trabalho (a traço sólido e grosso na figura 1) corresponde àquilo que os neoclássicos consideram ser a procura de trabalho de uma firma: uma curva descendente, tal como deve ser qualquer curva da procura de uma firma.
A firma continuará a empregar trabalhadores até atingir o valor do salário imposto pelo mercado. No presente exemplo, para um salário de 1000 € a firma empregará 726 trabalhadores (receita marginal = 1012 €) o que corresponde precisamente ao valor do lucro máximo que vimos no artigo anterior. Se o salário fosse de 2000 € a firma só empregaria 632 trabalhadores.
Se a figura 1 fosse decomposta em trabalhadores de nível salarial diferente obteríamos a explicação neoclássica da razão pela qual os trabalhadores têm diferentes salários: são diferentes porque a receita marginal também é diferente. As desigualdades sociais são assim entendidas como justas porque correspondem a contribuições diferentes para a produção.
No entender dos neoclássicos a curva do procura de trabalho não é mais do que uma média pesada das curvas individuais das firmas o que leva a obter uma curva descendente da procura de trabalho, no mercado de trabalho.
*     *     *
Vejamos agora a questão da oferta de trabalho. Os economistas neoclássicos seguem aqui uma concepção que remonta a Jeremy Bentham (1748-1832), a concepção hedonista da Economia: para os potenciais trabalhadores, trabalhar é sempre um desprazer; só o ócio dá prazer. Os potenciais trabalhadores só trabalham porque necessitam de um rendimento. Desta forma, a oferta de trabalho rege-se pelas curvas de indiferença que já encontrámos a propósito da procura de mercadorias (ver Partes IIa e IIb), curvas essas referentes aqui a dois «bens» apenas: o tempo de ócio e o rendimento.
O raciocínio neoclássico é o seguinte: cada trabalhador tem as suas preferências entre ter mais tempo de ócio ou ter maior rendimento. Podemos, então, fazer como fizemos na Parte IIb para a procura de laranjas e maçãs: conceber uma superfície de «prazer» cuja altura aumenta com o tempo de ócio e o rendimento. As curvas de indiferença, tal como no caso das laranjas e maçãs, correspondem a um nível de prazer constante.
A figura 2 mostra três curvas de indiferença. Cada uma das curvas corresponde a um dado nível de «prazer», embora os economistas não indiquem como medi-lo. Tal como para as laranjas e maçãs trata-se de uma valoração subjectiva. O valor não é indicado na figura 2; sabemos apenas que quanto mais afastada está a curva da indiferença da origem dos eixos maior é «prazer». Numa dada curva o trabalhador obtém o mesmo «prazer» para qualquer combinação de rendimento e tempo de ócio correspondente a um ponto da curva. É-lhe, portanto, indiferente operar num dado ponto da curva ou noutro qualquer. Se o leitor achar tudo isto muito exótico e afastado do mundo real, tem toda a razão. Nenhum trabalhador do mundo determina as suas curvas de indiferença quando se candidata a um trabalho. Mas é assim que a Economia convencional trata a questão e vamos continuar a seguir esta linha de raciocínio.

Fig. 2. Curvas de indiferença ócio-rendimento.

No caso das laranjas e maçãs procurava-se determinar pontos de operação tendo em conta o orçamento disponível para aquisição de bens. Um orçamento constante correspondia a uma recta no gráfico das curvas de indiferença. No caso presente as rectas de «orçamento» constante são, efectivamente, rectas de salário horário constante. Existe também um aspecto específico neste caso: é que todas as rectas de salário horário constante começam em 24 horas, o máximo tempo de ócio possível.
A figura 2 mostra três destas rectas, para salários horários de 8€, 6€ e 4€. Consideremos a recta de 8€/hora. À medida que diminui o tempo de ócio (logo, aumenta o tempo de trabalho), o rendimento aumenta proporcionalmente como é óbvio. O que faz o trabalhador «racional» para escolher qual o valor óptimo do tempo de trabalho (como se o trabalhador pudesse escolher isso!)? Determina qual a curva de indiferença tangente à respectiva recta (azul). No ponto de tangencia o trabalhador obtém o maior «prazer» possível. No caso da figura 2 isso corresponde a trabalhar 24 – 14 = 10 horas diárias, auferindo um rendimento diário de 8´10 = 80 €. A construção repete-se para outros valores de salários horários. Entretanto, o artificialismo de tudo isto torna-se ainda mais gritante!
Os neoclássicos continuam em frente impávidos e serenos: Usando os valores dos salários horários e os valores dos tempos de trabalho, traçam a curva da oferta de 1 trabalhador «racional» mostrada na figura 3.

 Fig. 3. Curva da oferta de trabalho construída com os valores indicados na figura 2.

As curvas de oferta de trabalho de todos os trabalhadores são depois somadas para obter a curva de oferta de trabalho no mercado de trabalho. Comentaremos no próximo artigo estas construções.