NOTA:
Por lapso, publicámos a parte VI antes da publicação da secção final, Vb, da parte V.
Aqui fica a correcção.
Vimos no artigo anterior (Va) como a economia convencional, neoclássica, trata a mercadoria «trabalho» como qualquer outra mercadoria: o preço da mercadoria – o salário – é fixado através da «lei da oferta e da procura»; isto é, pela intersecção das duas curvas «bem comportadas», uma descendente e outra ascendente. Se para mercadorias normais as assunções dos neoclássicos para chegar às ditas curvas eram já irrealistas, no caso do trabalho o irrealismo é ainda maior: os neoclássicos assumem, na sociedade capitalista, o trabalhador tão livre nas suas decisões como os próprios capitalistas! Assumem, inclusive, que o trabalhador é livre de escolher as horas de ócio que pretende!
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A teoria neoclássica da Economia convencional extrai de tudo isto várias conclusões políticas. Uma delas é a da futilidade de fixar um salário mínimo por legislação. O argumento é o seguinte: a imposição de um salário mínimo irá reduzir a procura de trabalhadores porque implicará um número de trabalhadores inferior ao imposto pela receita marginal (ver figura 1 do artigo anterior). Por outro lado, um salário mínimo implicaria (na curva da oferta) um maior número de horas de trabalho do que aquele que os trabalhadores estão dispostos a trabalhar. Os dois efeitos combinados levariam ao aumento do desemprego involuntário. Por muito boas que sejam as intenções sociais não é possível «vencer o mercado»: o mercado é que ditará sem apelo nem agravo qual a distribuição de rendimento e a taxa de desemprego. Tudo isto por causa da «lei» da procura e oferta de trabalho.
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Mas, será assim? Na realidade, mesmo pondo de lado o extremo irrealismo da construção teórica da «lei» da procura e oferta de trabalho, que apontámos, mesmo mantendo-nos dentro da lógica neoclássica, há vários problemas que totalmente invalidam essa teoria. Apontamos aqui quatro deles:
1 – A curva da oferta pode ser descendente
De facto, é tão fácil desenhar curvas de indiferença que resultam numa curva da oferta ascendente como outras que resultam numa curva da oferta descendente. A Figura 1 mostra uma situação em que a oferta é descendente. A lógica subjacente a este comportamento (supondo que o trabalhador é livre de escolher) é esta: com maior salário horário não preciso de trabalhar tantas horas para ter o rendimento que desejo.
Fig. 1
Ao nível do mercado, tal como já vimos (Parte IIb) a curva da oferta de trabalho pode ter qualquer forma, podendo assim originar vários pontos de equilíbrio (vários pontos de intersecção com a curva da procura). Não sendo possível estabelecer, sem ambiguidades, um ponto relacionando a oferta de trabalho (dos trabalhadores) com a procura de trabalho (das firmas), a implicação disso é que a teoria económica convencional não consegue provar que o nível de desemprego é regido pelo mercado.
Para além disso, na situação da oferta de trabalho descendente teremos uma situação de mercado instável (ver figura 2), parecida com o exemplo de mercado instável da Parte IIa.
Inicialmente temos n1 trabalhadores com salário s1. Se a procura aumentar ligeiramente, dar-se-á uma progressão para n2 trabalhadores mas com um salário inferior: s2. Mas, a este nível salarial, a oferta é de n3 trabalhadores (mais trabalhadores ou mais horas de trabalho para obter um rendimento desejável), com n3 > n2. Sabendo que n3 - n2 estão no desemprego, o salário da procura pode baixar de novo, passando a estar n4 trabalhadores desempregados (e/ou subempregados), etc. A situação resvala para desemprego galopante que só legislação de salário mínimo pode estabilizar; precisamente a medida que os neoclássicos puros rejeitam.
2 – Trabalho e «liberdade»
Toda a teoria neoclássica assenta no pressuposto de que o trabalhador tem inteira liberdade de trabalhar as horas que quer. Tem tanta liberdade como o capitalista! Se não trabalha (com o mercado competitivo a funcionar em pleno) é porque prefere o ócio. Para os neoclássicos tudo tem a ver com as curvas de indiferença no plano ócio-rendimento. Acontece, porém, que estas duas variáveis não são independentes. De facto, os neoclássicos esquecem que para obter «prazer» do ócio é preciso rendimento! Se não há rendimento, para que serve o ócio? Só se for para dormir como fazem os sem-abrigo.
Pode-se argumentar que alguns trabalhadores têm bens próprios (terras, por exemplo) de que podem tirar rendimentos ou até capitais com que podem procurar singrar como capitalistas (a história só regista os raros exemplos bem sucedidos). Mas a esmagadora maioria dos trabalhadores não tem escolha possível; não tem a suposta «liberdade». Em vez da escolha entre ócio e rendimento só lhes sobra a escolha entre poder trabalhar ou ficar na penúria.
3 – Oferta e procura não são independentes
Aplicam-se aqui os mesmos argumentos já referidos na Parte IV que remontam aos trabalhos do economista Piero Sraffa. É impossível desenhar curvas de oferta e procura independentes: uma variação da oferta terá efeitos na distribuição de rendimento e, portanto, na procura. Basta lembrar que com menores salários e mais desemprego o consumo é menor, implicando uma diminuição da produção e consequente diminuição na procura de trabalhadores.
4 – Mercado não competitivo
Na prática não existem mercados perfeitamente competitivos. Neste caso, a ideia de que os trabalhadores recebem o valor da sua contribuição marginal para a produção, cai pela base. Os economistas neoclássicos concedem que, nesta situação, os rendimentos dos trabalhadores não são só determinados pela sua produção marginal mas também pelo poder relativo de negociação entre patrões e trabalhadores. Mas isto é uma justificação pela qual os trabalhadores se unem em sindicatos, precisamente aquilo que os neoclássicos rejeitam (o mercado deveria supostamente encarregar-se de tudo).
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Steve Keen menciona também a questão da banca, que tem influência no mercado de trabalho e que os neoclássicos não consideram. Refere ainda a que ponto chega o disparate dos economistas neoclássicos, citando e comentando uma passagem de um livro de texto académico (André Mas-Colell, Microeconomic Theory) em que o autor, para fazer vingar a ideia de agregar curvas individuais de procura numa curva de mercado (ideia cuja desmontagem analisámos nas Partes IIa e IIb), um tanto em desespero de causa, fundamenta a dita ideia apelando ao leitor para imaginar um «ditador benevolente» que ordena as coisas por forma a que a curva deva ser como se deseja!
E fundamentam-se políticas em todo o mundo capitalista com base nesta pseudo-ciência!