I - O Mundo Árabe antes da Dominação Colonial
Aquilo que hoje se designa por «mundo árabe» ¾ países do norte de África e do Médio Oriente ¾ foi durante vários séculos «mundo turco». Em 1514 o sultão otomano Selim I conquistou o Norte do Iraque e a partir daí os turcos otomanos continuam a sua progressão de conquista do mundo árabe (Síria e Palestina em 1516, Egipto em 1517, Argélia em 1533, Tunísia em 1534, Tripoli na Líbia em 1551) e de territórios europeus (Balcãs, Grécia, Creta, etc.), vindo a constituir o Império Otomano ([1]).
Era um império feudal, parcialmente esclavagista, e fortemente militarista. Em todos os territórios árabes, como na própria Turquia, dominavam grandes senhores feudais que exploravam cruelmente (corveias, numerosos impostos, ausência total de direitos, humilhação constante pelos Senhores e seus servidores, etc.) os camponeses ¾ os fellah, servos da gleba ¾ adstritos (eles e descendentes) aos seus vastos domínios, bem como as pequenas comunidades obrigadas a pagar tributos pesados em espécie, incluindo produtos de artesanato e artigos de luxo. Os senhores feudais eram os chefes militares turcos ou de etnias que ajudaram a conquista turca (principalmente albaneses e circassianos), a nobreza dos países conquistados, os grandes dignitários da administração turca central e local, e figuras proeminentes do clero muçulmano.
O esclavagismo subsistia em muitos domínios, quer ligado aos trabalhos penosos (por exemplo, nas explorações mineiras) quer como servidores domésticos. Existiam mercados de escravos em várias cidades do Império, nomeadamente em Alexandria e Argel.
Subsistiam também em larga escala ¾ e na realidade, subsistiram até ao tempo actual ¾ as organizações tribais e nomádicas (curdos, berberes, beduínos, etc.) um pouco por todo o Império, principalmente no Norte de África e na península arábica. As organizações tribais e nomádicas eram caracterizadas por fortes relações patriarcais.
O poder militar do Império Otomano tinha como núcleo duro as divisões de infantaria dos janízaros, soldados profissionais recrutados à força, ainda em criança, de povos subjugados, em particular de entre os cristãos da Albânia, Grécia, Bósnia, Sérvia e Bulgária. Eram submetidos a treino militar constante e severa disciplina. Recebiam salários e pensões de reforma. Tornaram-se guerreiros temíveis, de extraordinário fanatismo ao serviço do Império.
Existia uma ligação profunda entre clero e administração civil. A lei corânica imperava em tudo. O sultão tornou-se a breve trecho na suprema autoridade religiosa (Califa). Esta supremacia religiosa na sociedade é típica, aliás, do Próximo Oriente e remonta a muitos séculos atrás (impérios babilónico, assírio, persa, etc.) tendo raízes profundas nas sociedades patriarcais e no «modo de produção asiático» extremamente conservador do Próximo Oriente. Constitui uma marca distintiva entre o mundo do Próximo Oriente e o mundo ocidental.
Outra importante marca distintiva entre o feudalismo do mundo árabe e o feudalismo ocidental era o sistema de «capitulações». As capitulações eram certificados concedidos a mercadores europeus que lhes concediam direitos especiais de comércio e certos privilégios (por exemplo, de construção de armazéns e feitorias). A breve trecho todo o comércio, e actividades produtivas a ele ligado (oficinas artesanais), passou a estar nas mãos de estrangeiros, particularmente europeus: gregos, judeus, venezianos, etc., e mais tarde franceses e ingleses.
O sistema de capitulações, combinado com as extorsões monstruosas dos senhores feudais com vista a adquirir produtos de luxo ocidentais e com as constantes lutas internas dos senhores feudais, imprimiu uma evolução do feudalismo árabe em tudo diferente do ocidental. Em vez do sistema de corporações e da formação de cidades mercantis que vieram a determinar a transição europeia para o capitalismo nos séculos XVII e XVIII, o mundo árabe experimentou o exaurir das forças produtivas e veio a efectuar a transição para o capitalismo, submissivamente, pelas mãos dos capitalistas e colonialistas europeus.
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Antes da entrada em força do capitalismo europeu no mundo árabe, na última metade do século XIX, era esta a situação:
No Egipto, como noutras regiões do Império, tinham-se afirmado as tendências autonomistas. Depois da derrota dos dirigentes mamelucos (casta militar que dominou o Egipto medieval, parecida com a dos janízaros) por um exército turco comandado por um chefe janízaro albanês, O Egipto veio a consolidar a sua posição de Estado desenvolvido no mundo turco. A breve incursão Napoleónica no Egipto não alterou esta situação. Os Paxás do Egipto introduziram várias reformas progressistas (escolas, hospitais, segurança do trânsito de caravanas, etc.) mas mantendo no essencial o sistema feudal. Os Paxás sentiam admiração pela civilização europeia e eram fortemente inclinados a favor da França. O reconhecimento da suzerania turca tornou-se quase simbólico.
A Síria era campo de batalha entre os senhores feudais autóctones e via de comunicação da tropas turcas sempre que procediam ao esmagar de rebeliões no Líbano e no Iraque. No período de 1831 a 1833 foi também palco de luta entre tropas egípcias e turcas. Um conjunto de reformas turcas progressistas (o tanzimat de 1839) com vista a acabar com os janízaros e o sistema de feudos militares originou uma rebelião conduzida por forças clericais reaccionárias. Mais tarde a Síria foi também influenciada pelo movimento waabista, de um Islão ascético com muitas semelhanças com os actuais talibã.
As cidades costeiras da Tunísia (e da Argélia) e Tripoli na Líbia eram praças-fortes dos piratas barbarescos do Mediterrâneo. Os frutos da pirataria e da exploração do campesinato eram repartidos entre os senhores locais e o Sultão turco. No vasto interior subsistiam as mesmas tribos e relações de clã e patriarcais vindas de tempos imemoriais.
[1] V. Lutsky (1969) Modern History of the Arab Countries. Progress Pub., Moscovo. Um livro imprescindível no tema.