O governador do BCE, Mario Draghi (ex-quadro
da infame Goldman Sachs), anunciou em 22 de Janeiro p.p. aquilo que já tinha
transpirado desde o passado Setembro: o BCE vai injectar nos bancos centrais
(BCs) dos vários países da Zona Euro (ZE) 60 B€/mês (B€ = biliões de euros)
destinados à compra de títulos de dívida públicos e privados no mercado
secundário ([1]), até ao montante de 1,1 triliões de euros no período de Março
de 2015 a Setembro de 2016. (Usamos: bilião = mil milhões, trilião = mil
biliões = milhão de milhões, [2]).
Esta montanha de dinheiro (maior que 6,6 vezes
o PIB de Portugal) subitamente surgida e disponibilizada pelo BCE não tem
suporte em qualquer valor! Não foi, por exemplo, porque o BCE tivesse
descoberto nos seus terrenos 30.124 toneladas de ouro que decidiu colocar os
correspondentes 1,1 triliões de euros em circulação. Trata-se de dinheiro
puramente fictício, surgido do nada. Sem qualquer novo valor subjacente (a
não ser o do papel e do processo de impressão).
Por isso mesmo, logo que a medida foi
anunciada, o câmbio do euro em dólares dos EUA caiu para o mínimo dos últimos
11 anos (ver figura abaixo). Dado o brutal aumento de euros em circulação, sem terem aumentado os
bens que os suportam, o valor de cada euro diminuiu. Seguir-se-á a inflação. O
processo é análogo ao dos reis que aparavam a prata das moedas de cruzado,
ficando com mais cruzados, mas de menor valor. Entretanto, enquanto a queda de
valor não se fazia sentir, enganavam a populaça (não os nobres).
Câmbio do euro em
dólares dos EUA. Notar a súbita descida com o anúncio do BCE em 22/1/2015. O anúncio
dos resultados oficiais das eleições gregas quase não teve impacto nos
mercados. (Adaptado de XE Currency Charts.)
As duas receitas neoliberais para enfrentar
a crise do capitalismo
Para além dos resgates a instituições
financeiras (pagar as perdas da especulação do grande capital à custa dos
trabalhadores) e da descida das taxas de juro, as duas receitas que os governos
neoliberais dos países capitalistas «desenvolvidos» têm posto em prática para
enfrentar a crise do capitalismo -- crise que representa a falência do modo de
produção capitalista assente no lucro de 0,1% da população, e que, a manter-se
o capitalismo, veio para ficar se não houver uma terceira guerra mundial ([3])
--, são:
1) Austeridade:
apertar o cinto aos trabalhadores, liquidar os seus direitos, baixar
drasticamente salários e pensões, liquidar gastos do Estado, nomeadamente em serviços
sociais (segurança social, ensino, saúde, etc.).
2) Facilitação
Quantitativa (Quantitative Easing, QE): imprimir dinheiro com o qual o
Banco Central adquire títulos obrigacionistas detidos pela banca, nomeadamente
do sector não financeiro – e, no caso do BCE, títulos de dívida pública --,
aumentando a liquidez dos bancos para, supostamente, os incentivar a investir
na economia real. A inflação fica para depois.
Na receita 1 os trabalhadores pagam directamente
as perdas da especulação financeira, contribuindo directamente para que
fiquem mais pobres e haja mais milionários e bilionários. O problema é que,
consumindo menos, contribuem também para que não se realizem os lucros do
capital, induzindo o retraimento do crédito. A receita 2 pega na outra
extremidade da equação: estimula artificialmente o crédito, procurando incentivar
o investimento à custa de empréstimos estatais directos, supostamente ao
capital produtivo, usando dinheiro fictício. O problema é que tal medida gera
inflação, acabando através dela por os trabalhadores pagarem indirectamente
os ganhos do capital. No funcionamento «normal» do capitalismo a oferta de dinheiro
e o crédito bancário decorrem das necessidades da economia real: da necessidade
de investimento e da necessidade de consumo das famílias. O QE pretende
inverter este nexo causal (como alguns dizem, pretende levar o cavalo a beber
mesmo que não tenha sede). Com pouco sucesso ou mesmo insucesso, como veremos
abaixo.
A questão central da falência do capitalismo –
a apropriação pelo capital das mais-valias criadas pelo trabalho e consequente
baixa da taxa de lucro com o aumento da composição orgânica do capital (grosso
modo, mais máquinas e menos trabalhadores) – não é resolvida por nenhuma
daquelas receitas. De facto, podemos dizer que a questão central não é, obviamente,
resolvida. Nunca na História a classe dominante resolve os problemas inerentes
ao modo de produção que subjaz ao seu domínio e privilégios. Isso equivaleria a
auto eliminar-se. As receitas funcionam apenas como expedientes temporários,
com um ou outro alívio conjuntural que não ultrapassa a meia dúzia de anos até
à próxima crise, e que alimenta as ilusões de que agora sim, se vai por bom
caminho.
As duas receitas têm sido usadas conjuntamente
pelas economias «desenvolvidas», com maior ou menor ênfase numa ou noutra.
Os EUA, a Inglaterra e o Japão favoreceram o
QE (embora aplicassem também medidas de austeridade). A Comissão Europeia (CE),
com o BCE e o presidente do Eurogrupo, favoreceu a austeridade (embora
aplicasse também medidas de QE).
O QE do BCE
Na realidade o BCE já vinha a usar medidas
análogas ao QE desde Julho de 2009. Para entender minimamente o que é o BCE e
as várias medidas anti-crise que tomou, sugerimos a leitura do texto que
preparámos e incluímos no final deste artigo: «O Banco Central Europeu» (1.832
palavras, 10 minutos de leitura).
Tendo tentado uma variedade de programas anti-crise
em conjunto com baixíssimas taxas de juro de empréstimo aos bancos, e estando fora
do cenário o uso de medidas keynesianas de investimento público já que todos os
governos estão em «austeridade», só restou ao BCE, dentro da lógica capitalista,
anunciar a 22/1/2015 medidas claras e extensas
de QE por duas razões:
-- Para que o
dinheiro injectado na banca e empresas financeiras pudesse eliminar dívidas com
obrigações e papel comercial, alegadamente com o propósito de incentivar o
crédito à economia real. O QE, nestes precisos
termos, foi pioneiramente usado a seguir à crise de 2008 pelo Banco de Reserva Federal dos EUA, sendo Ben Bernanke o presidente. Bernanke, seguindo o
seu mentor Milton Friedman, defendeu a ideia de imprimir notas e «lançá-las de
helicóptero» para aumentar o consumo. Ficou conhecido como o «helicóptero Ben».
(Efectivamente, as notas do BCE não são todas impressas e lançadas de
helicóptero; são «criadas» electronicamente como reservas nos bancos.)
-- Para travar a perigosa tendência
deflacionária da ZE (queda dos preços com adiamento de compras à queda de rendibilidade à queda no investimento). Globalmente,
a ZE está em deflação (ver figura e tabela abaixo). De 19 países da ZE, 10
estavam em deflação em Janeiro de 2015. Outros dois (Itália e Eslovénia) tinham
estado e encontravam-se próximos dela. A própria Alemanha está com inflação
perigosamente baixa (0,2%). O espectro da deflação ameaçava(a) com mais
depressão.
A depreciação do euro também ajuda durante
certo tempo, já que incentiva as exportações e modera as importações. Isto, não
se aplica, contudo, aos países importadores de gás e petróleo, como Portugal.
Embora tenha sido anunciado Setembro de 2016 como prazo final do QE, o BCE não
se comprometeu com esse prazo, que depende da evolução da inflação. O valor
alvo é 2%, mas nada garante o valor alvo. O QE pode até aumentar dramaticamente
a inflação, o que assusta a Alemanha e contituiu um dos motivos para se ter
oposto até agora ao QE.
Em 2015 a ZE estava em deflação
(-0,7%), ao nível do mínimo da crise de 2008.
Taxa de inflação
(%) de Outubro de 2014 a Janeiro de 2015
|
|||
Áustria
|
1,6, 1,6, 1,7, 1
|
Letónia
|
1, 0,7, 0,9, 0.2
|
Bélgica
|
-0,12, 0,09, -0,11, -0,38
|
Lituânia
|
-0,1, 0,1, 0,2, -0,3
|
Chipre
|
-0,91, -0,49, -0,15, -1,46
|
Luxemburgo
|
0,33, 0,31, 0,07, -0,6
|
Estónia
|
-0,6, -0,2, -0,6, -0,5
|
Malta
|
0,6, 0,7, 0,6, 0,4
|
Finlândia
|
1,3, 1, 1, 0,5
|
Holanda
|
0,9, 1,1, 1, 0,7
|
França
|
0,3, 0,5, 0,3, 0,1
|
Portugal
|
-0,4, 0, 0, -0,4
|
Alemanha
|
0,8, 0,8, 0,57, 0,2
|
Eslováquia
|
-0,1, 0, 0, -0,1
|
Grécia
|
-0,8, -1,7, -1,2, -2,6
|
Eslovénia
|
-0,3, -0,1, -0,2, 0,2
|
Irlanda
|
0,3, 0,2, 0,1, -0,3
|
Espanha
|
-0,2, -0,1, -0,4, -1
|
Itália
|
-0,2, 0,1, 0,19, 0
|
Regras e riscos do QE do BCE
Segundo o
anúncio do BCE, as compras de títulos com maturidades entre 2 e 30 (!) anos são
feitas pelos BCs da ZE. Na conferência de imprensa de 22/1/2015 Draghi
esclareceu que só 12% dos 1,1 triliões de euros são destinados à compra de obrigações
do sector privado europeu. O restante será aplicado em títulos de dívida pública
dos países da ZE com classificação acima de «lixo» por pelo menos uma agência
de rating. (Portugal por enquanto qualifica-se, graças à agência
canadiana DBRS, mas a Grécia não.) A compra de títulos de dívida pública não
pode ultrapassar 33% do total de títulos de cada país e cada país só pode
aplicar nisso uma percentagem do QE correspondente à sua parcela de capital nos
fundos do BCE (2,5% no caso de Portugal).
Quanto à
partilha de riscos no caso de incumprimento, a famosa «solidariedade europeia»
não vai funcionar. A Alemanha e seus aliados próximos (Benelux, Áustria,
Finlândia) sempre pugnaram por que fossem os BCs a assumir todo o risco do QE.
A Alemanha é o maior accionista do BCE e a maior economia da ZE. É quem dirige
a orquestra. A oposição de Merkel e do Bundesbank à
assunção exclusiva dos riscos do QE pelo BCE, na protecção dos interesses do
capitalismo alemão e em oposição a outros países da ZE e mesmo ao projecto
global da ZE, denuncia a natureza real da ZE-UE como um projecto imperialista
da Alemanha, como já dissemos em artigos anteriores.
Na partilha de riscos o conselho de
governadores do BCE acabou por chegar ao seguinte compromisso (anunciado na
conferência). Do volume total de QE, só 20% das compras de títulos está sujeita
à partilha de riscos entre BCE e BCs: o BCE fica responsável por 8% das perdas
potenciais; os BCs ficam responsáveis pelas perdas dos restantes 12% (gastos,
como vimos acima, em obrigações
do sector privado). Portanto, 80% das compras a cargo dos BCs não vão ter
risco partilhado com o BCE. Os
BCs vão ter de suportar 12%+80% = 92% do risco global.
Irá o QE do BCE funcionar?
Ao contrário do que aconteceu noutros países,
o QE da ZE vai ser implementado numa situação de emergência (podemos dizer de
pânico), quando todas as outras medidas (ver nosso texto abaixo) falharam.
Quando, apesar das baixíssimas taxas de juro de empréstimo do BCE aos bancos, o
crédito ao investimento privado e às famílias está estagnado em valores muito
baixos. Em Portugal o crédito tem vindo a baixar e desceu 3% em 2014.
Num artigo do Financial Times de 19/1 o
articulista sintetiza bem a situação ([4]): «Mas [o QE-ZE] é também um sinal de
como as coisas se tornaram desesperadas. Esta não vai ser uma versão profiláctica
de QE, mas sim uma versão pós-traumática. Com expectativas de inflação fora do
esperado há bastante tempo. Com inflação global negativa. A economia da zona
euro está doente.»
De facto, o QE do BCE, com injecção de 60
B€/mês (0,6% do PIB da ZE), é bem mais volumoso em termos relativos (% do PIB)
que o QE dos EUA (0,1%), da Inglaterra (0,3%) e do Japão (0,17%). Será que o QE
teve êxito nesses países? Nem por isso. A taxa anual de crescimento do PIB nestes
países continua baixa ou mesmo negativa (respectivamente, 2,2%, 1,7%, -1,2%), a
inflação (respectivamente, 1.5%, 2,6%, 0,4%) continua baixa no Japão, o nível
de crédito ao sector privado continua baixo (ver figura abaixo).
Desde o início da UE e da ZE que a burguesia
alemã pretendeu colher todos os benefícios dessas estruturas sem aceitar os
respectivos custos. A burguesia francesa colou-se à alemã, um pouco como as
rémoras se colam aos tubarões. A Alemanha (e seus aliados próximos) criou um
mercado europeu para onde despeja os bens que (sobre)produz, com os países de
economia mais débil a comprar esses bens e contraindo dívidas junto de bancos
alemães. Portugal, por exemplo, tem comprado à Alemanha montanhas de produtos
de consumo diário (p. ex., nos supermercados Lidl), automóveis de todas as
gamas (incluindo os Porsche cujas vendas têm aumentado), equipamentos para
auto-estradas (muitas quase às moscas), e... os famosos submarinos. Entretanto
a austeridade nos países do Sul (e não só), com a diminuição do consumo e
dificuldades orçamentais arrasta a Alemanha para baixo, para a deflação e a
recessão. A crise da Ucrânia e as sanções da Rússia agravam a situação.
O QE da ZE é apenas um cuidado paliativo de um
doente profundo. Temos poucas esperanças de que este paliativo traga alguma
melhoria significativa para os trabalhadores portugueses. Pode até agravar a
situação em Portugal como reconhecem vários economistas portugueses (ver
referências). De facto, mais do que favorecer o investimento e o crédito às
famílias, o QE nos países onde foi aplicado favoreceu os
mercados bolsistas, a continuação do capitalismo de casino e a formação de
novas bolhas de capital fictício. O mesmo irá acontecer na ZE.
Com QE ou sem QE, há uma coisa de que a
Alemanha (e seus aliados) não abdica: «reformas estruturais». Isto é, em sugar
até ao tutano os trabalhadores dos países do Sul da Europa, de forma a que
sejam eles a pagar pela crise do capitalismo. As «reformas estruturais» são
simplesmente isto: a destruição dos direitos dos trabalhadores e dos serviços
sociais. Os vassalos do Império, como Passos Coelho, servem os seus amos. Ainda
em 26 de Janeiro vinha nos jornais que, segundo o BCE, «O poder negocial dos
trabalhadores portugueses [os mais mal pagos e explorados da ZE] é demasiado
elevado e prejudica os lucros das empresas».
Referências
[1] O mercado primário é o mercado dos
emitentes dos títulos. O mercado secundário é o dos investidores privados.
[2] O nosso uso de mil, milhão, bilião,
trilião, etc., segue a prática corrente em publicações científicas de usar um
qualificativo e um único símbolo para cada sucessivo cubo de 10. É
essa a prática nas publicações em língua inglesa, noutras línguas como o
espanhol (billón = mil millones, trillón = millone de millones) e italiano
(bilioni = mille milioni, trilioni = mille bilioni), e mesmo na versão
brasileira do português. Assim, p. ex., estamos todos habituados a entender 1
gigabyte como um bilião de bytes; isto é, como mil megabytes = mil milhões de
bytes. Um gigabyte escreve-se 1 GB, com um único símbolo, G, precedendo a
entidade medida, B. O uso em português de Portugal de bilião para designar
milhão de milhões parece provir provençal-francês (milliard, milliardo). É um uso
que causa embaraços comparativos e conduz a aberrações como as que temos visto
nos jornais onde aparecem 60 biliões escritos como 60 MM. Que diriam os
leitores se vissem, p. ex., escrito 60 GB como 60 KKB ou 60 toneladas não como
60 t mas sim como 60 Mkg?
[3] A hipótese de uma terceira guerra mundial
não está, infelizmente, tão afastada como alguns supõem. De facto, está até
mais presente do que durante a guerra-fria, quando havia um bloco socialista a
impor respeito aos imperiais. Haja em vista as recentes declarações de Victoria
Nulland, Secretária de Estado dos EUA para os assuntos europeus, que disse que a
NATO tinha que estar preparada para atacar a Rússia. No momemo em que
escrevemos John Kerry anunciou que provavelmente os EUA irão fornecer armamento
sofisticado ao regime fascista de Kiev.
[4] Citado em Adam
Booth, Eurozone braced for
Quantitative Easing as crisis intensifies, IMT, 20/1/2015.
[5] «BCE vai injectar 60 B€/mês nos bancos
centrais. O BdP vai comprar 21 B€ de DP aos bancos. Bolsas e juros de dívida
aplaudem, mas € afunda.» JN 23/1/2015.
[6] BCE. A bazuca está carregada e dispara em
março, Expresso 22/1/2015
[7] Sérgio Aníbal, Como será aplicado o plano do BCE, Público
22/1/2015
[8] Rui Barroso, BCE
anuncia compras de 60 mil milhões por mês, Sapo Económico22 Jan 2015
[9] Luís Reis Pires, Analistas receiam que compra de dívida do BCE
defraude expectativas, Sapo Económico 21/1/2015.
O
Banco Central Europeu
Missão e Capital
O Banco Central Europeu (BCE) é o órgão
director dos Bancos Centrais (BCs) dos países da ZE (19 países em Janeiro de
2015). Juntamente com os BCs, constitui o Sistema Europeu de Bancos Centrais
(SEBC, Eurosystem). O BCE foi estabelecido em Julho de 1998 (Tratado
de Maastricht) com a missão de dirigir a política financeira do euro,
nomeadamente:
-- Direito exclusivo de autorização de emissão
das moedas e notas do euro;
-- Definição e controlo da implementação da
política monetária da ZE, com financiamento de liquidez de bancos da UE;
-- Estabelecer políticas de estabilidade de
preços (mantendo a inflação abaixo de 2%);
-- Levar a cabo operações cambiais;
-- Controlo das reservas em divisas estrangeiras
do SEBC;
-- Controlo das operações da infra-estrutura do
mercado financeiro, centralizando acordos de transacção de activos mobiliários
com fundos dos BCs. (Processo em curso de criação de um mercado único de
serviços financeiros europeus.)
O BCE, tal como as corporações privadas,
dispõe de accionistas (BCs) e de um fundo de capital que ascendia a mais de
7,7 B€ em Janeiro de 2015. As contribuições dos BCs, dependentes das
populações e PIBs dos países, são as da tabela abaixo. Vemos que a Alemanha
contribui com mais de um quarto do capital; juntamente com a França, ascende
a quase metade do capital. Note-se também a posição importante da Holanda,
cujo sistema bancário está intimamente ligado ao da Alemanha. Na prática a
política do BCE é dirigida pela Alemanha com Benelux e Áustria: 37,9% do
capital do BCE. A França... alinha.
Para além do fundo de capital dos accionistas,
o BCE dispõe de outros activos, tais como reservas em divisas estrangeiras
(40 B€ em divisas estrangeiras foram transferidas dos BCs da ZE aquando da
criação do BCE).
Operações Normais de Financiamento
Ao invés do Banco de Reserva Federal dos EUA,
que compra títulos de tesouro para injectar liquidez em bancos e outras
instituições financeiras, o SEBC usa as chamadas operações repo (do
inglês repurchase, recompra).
Numa operação repo um banco que
necessita de liquidez vende ao SEBC valores mobiliários (divisas,
obrigações, títulos do tesouro, acções, derivados) recebendo em troca o
numerário de que necessita. A operação só é efectuada se o banco for elegível
(oferecer garantias, p. ex. detenção de títulos de dívida de países do euro)
e, além disso, terá de comprometer-se por contrato a comprar de volta
(recomprar) em prazo curto os valores que vendeu acrescidos de um juro
(repo rate). Portanto, a compra dos valores pelo SEBC não é definitiva
(não é um outright purchase).
O SEBC reconhece a existência de cerca de
1.500 bancos elegíveis, que podem licitar em leilões de operações repo
com prazo de entre duas semanas a três meses.
Portanto, as operações repo funcionam
como empréstimos a curto prazo do BCE aos bancos, tendo os valores
mobiliários como garantia de cumprimento. Os valores mobiliários constam como
activos na folha de balanço do BCE. Os depósitos de empréstimo constam como
passivo.
Uma modalidade de médio prazo de
operações repo foi lançada pelo BCE em 2003 com o nome de Long-Term
Refinancing Operation (LTRO) e prazos de recompra que podiam ir até três
anos.
Operações Extraordinárias de Resgate
Com a «Crise do Euro» o BCE viu-se na
necessidade, dentro da óptica e prática capitalistas, de tomar medidas
especiais para tapar os buracos abertos pela jogatina do grande capital
financeiro. Lançou programas de resgate, sob os eufemismos de
«refinanciamento», «estabilização financeira» e «injecção de liquidez». Note-se
que os tratados da UE proibiam resgates financeiros: cláusula de
não-resgate. Havia, assim, que tornear a cláusula.
-- Em Março de 2008,
tendo a crise rebentado, o BCE anuncia pela primeira vez LTROs de seis meses
com leilões em Abril e em Julho e um total de empréstimos de 50 B€ a cerca de
200 bancos, mas com cerca de 800 licitantes. Em 2009 houve um novo leilão com
1.100 licitantes.
-- Em 2009, o BCE
anuncia o programa CBPP - Covered Bond Purchase Programme, pelo qual os
BCs, sob aprovação do BCE, compravam «obrigações cobertas» -- suportadas por
activos considerados de pouco risco, como títulos de tesouro -- nos mercados
primário e secundário a fim de injectar liquidez no sector financeiro. A
diferença do CBPP face ao QE era mínima (o risco era dos BCs e não do BCE,
condições restritivas, leilões de depósitos para reabsorção de empréstimos). No
CBPP1, de Julho de 2009 a Junho de 2010, foram compradas cerca de 60 B€ de obrigações
cobertas. De Outubro de 2011 a Outubro de 2012 o CBPP2 comprou de cerca de 40
B€ de obrigações cobertas. Alemanha e França foram os grandes beneficiários do
CBPP1 e CBPP2.
-- Em 2010 o BCE
lançou dois programas de resgate: o European Financial Stabilisation
Mechanism (EFSM) e o European Financial Stability Facility (EFSF). O
EFSM era um programa de emergência pelo qual o BCE obteve empréstimos de
mercados financeiros garantidos pela CE usando o orçamento da UE como garantia.
Dos 60 B€ do EFSM, 26 B€ foram emprestados a Portugal. O EFSF é um mecanismo
pelo qual o BCE emite obrigações com o apoio da Agência Financeira Alemã, de
forma a obter fundos para empréstimos a bancos em dificuldade. Serviu para
resgates da Grécia, Portugal e Irlanda.
-- Em Dezembro de
2011, tendo em conta a crise generalizada no sector financeiro (as roubalheiras
do grande capital), o BCE lança pela primeira vez um LTRO especial (LTRO1) com
prazos de três anos e muito baixa taxa de juro, 1%, aceitando como garantia
títulos do tesouro (inclusive de países em crise), derivados sobre hipotecas
(ainda das bolhas imobiliárias) e papel comercial (títulos obrigacionistas de
bancos, etc.)! O volume total de empréstimo durante três anos a 523 bancos
foi de 489 B€! Um verdadeiro maná para os bancos que se financiaram a baixo
custo, entregando lixo (ou quase) como garantia, recomprado ao fim de três
anos, enquanto emprestavam aos governos a 5% e às empresas e famílias a taxas
superiores! Qual foi o efeito desses colossais empréstimos na economia real e
nas famílias? Zero. De onde veio o dinheiro emprestado? Das mais-valias criadas
pelo trabalho (através de impostos e lucros). O BCE funcionou(a) como
financiador da especulação do grande capital financeiro.
-- Em 2012 o BCE
estabeleceu o European Stability Mechanism (ESM), um mecanismo gerido
por uma organização intergovernamental, pelo qual cada país membro contribui
para um fundo de empréstimos de emergência a países da ZE. O fundo é
actualmente de cerca de 700 B€. As contribuições percentuais são análogas às da
tabela acima. Serviu para resgates da Grécia, Espanha e Chipre.
-- Em Fevereiro de
2012 o BCE lançou um novo LTRO, LTRO2, com prazo de três anos. O volume de
empréstimo a 800 bancos foi de 529,5 B€.
-- Em 2 de Agosto de
2012 o BCE anunciou um programa de compra de títulos do tesouro de Estados
membros no mercado secundário – Outright Monetary Transactions (OMT) --,
desde que certas condições do Estado em causa fossem satisfeitas. Além disso,
diferentemente do QE, o BC do Estado em causa teria de reabsorver os
respectivos títulos, através, p. ex., de operações repo. O OMT ainda não
foi aplicado. Anunciou apenas uma disposição do BCE com impacto no mercado.
Como resultado destas operações a folha de balanço do BCE evoluiu até 29 de Agosto de 2014 conforme mostra a figura abaixo.
A folha de activos
do BCE (muitos dos activos -- títulos de dívida -- podemos ter a certeza que
são muito pouco «activos») deu um pulo com a crise de 2008 e, mais tarde, pulos
ainda maiores com os programas de resgate, nomeadamente os LTRO1 e LTRO2.
Agora outro pulo brutal de «activos» foi anunciado (a vermelho).
Operações Extraordinárias Anti-Crise
A Alemanha, a Holanda, a Áustria e a
Finlândia foram os países que mais se opuseram a práticas de QE. Muitos
políticos alemães, incluindo do esquerdista Die Linke, opuseram-se a
programas de resgate e de compras de títulos de tesouro como o OMT, numa
tentativa de se isolarem das «perturbações financeiras» dos países em crise
(para a qual eles próprios também contribuíram) e receando embarcar numa
espiral inflacionária. Insistiram sempre, e continuam a insistir, em
«reformas estruturais». Contudo, a crise também está a bater à porta dos
países ricos do Norte, com quebras no investimento e no crescimento do PIB. A
deflação global é um sintoma claro. Para fazer face a esta ameaça eminente o
BCE anunciou em Setembro de 2014 o CBPP3 e um programa semelhante: o Asset-Backed
Securities Purchase Programme (ABSPP). Só a 22 de Janeiro de 2015 foram
explicados o volume e detalhes destes programas, denominados conjuntamente de
Expanded Asset Purchase Program (EAPP); agora, de «compras
expandidas de activos» com dinheiro criado pelo BCE. Programas
definitivamente de QE. Os «activos» consistem em títulos de tesouro
(emitidos pelos BCs para obtenção de empréstimos de financiamento orçamental)
bem como obrigações do sector privado, no mercado secundário.
Ao ritmo de 60 B€/mês até, em princípio (dependendo da evolução da inflação),
Setembro de 2016, totalizando 1,1 triliões de euros.
Refinanciamento da Economia Real
Como complemento das benesses aos bancos o
BCE tem vindo a baixar a taxa de juro a que os «refinancia», atingindo em
Setembro de 2014 o valor de 0,05%! (Era de 4,25% em 2008.) O refinanciamento
só tem servido para continuar a alimentar a especulação financeira. O
investimento global da ZE tem continuado a diminuir bem como o crédito às
famílias e ao sector não financeiro (ver na figura abaixo as manchas azul
escuro).
Para atender a estas constatações o BCE
anunciou em Junho de 2014 um programa para a «economia real» (em vez da
fictícia, da especulação financeira): Targeted Longer-Term Refinancing
Operations (TLTROs). Destina-se a incentivar empréstimos bancários ao sector
privado não financeiro, excluindo empréstimos às famílias para aquisição de
casa. O TLTRO só empresta 7% do total que é emprestado ao sector privado.
O primeiro TLTRO arranca em Março de 2015. Pensamos que o TLTRO pouca
influência irá ter na economia real. O problema não está no crédito, está na
rendibilidadedo sector produtivo. É esta que é causa do primeiro e não o
contrário.
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Martin Murenbeeld, Chantelle
Schieven, Economic Note. ECB Monetary Policy Update,
Lisa Pollack, The ECB and covered bonds – the next
chapter?, FT Alphaville, 27/9/2011
Tyler Durden, The ECB Changes Its Mind
Which Bonds It Will Monetize, Then It Changes It Again, 19/10/2014, http://www.zerohedge.com/news/2014-10-19/ecb-changes-its-mind-which-bonds-it-will-monetize-then-it-changes-it-again
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