quinta-feira, 5 de fevereiro de 2015

O «helicóptero BCE» vai despejar notas

    O governador do BCE, Mario Draghi (ex-quadro da infame Goldman Sachs), anunciou em 22 de Janeiro p.p. aquilo que já tinha transpirado desde o passado Setembro: o BCE vai injectar nos bancos centrais (BCs) dos vários países da Zona Euro (ZE) 60 B€/mês (B€ = biliões de euros) destinados à compra de títulos de dívida públicos e privados no mercado secundário ([1]), até ao montante de 1,1 triliões de euros no período de Março de 2015 a Setembro de 2016. (Usamos: bilião = mil milhões, trilião = mil biliões = milhão de milhões, [2]).
    Esta montanha de dinheiro (maior que 6,6 vezes o PIB de Portugal) subitamente surgida e disponibilizada pelo BCE não tem suporte em qualquer valor! Não foi, por exemplo, porque o BCE tivesse descoberto nos seus terrenos 30.124 toneladas de ouro que decidiu colocar os correspondentes 1,1 triliões de euros em circulação. Trata-se de dinheiro puramente fictício, surgido do nada. Sem qualquer novo valor subjacente (a não ser o do papel e do processo de impressão).
    Por isso mesmo, logo que a medida foi anunciada, o câmbio do euro em dólares dos EUA caiu para o mínimo dos últimos 11 anos (ver figura abaixo). Dado o brutal aumento de euros em circulação, sem terem aumentado os bens que os suportam, o valor de cada euro diminuiu. Seguir-se-á a inflação. O processo é análogo ao dos reis que aparavam a prata das moedas de cruzado, ficando com mais cruzados, mas de menor valor. Entretanto, enquanto a queda de valor não se fazia sentir, enganavam a populaça (não os nobres).
      
Câmbio do euro em dólares dos EUA. Notar a súbita descida com o anúncio do BCE em 22/1/2015. O anúncio dos resultados oficiais das eleições gregas quase não teve impacto nos mercados. (Adaptado de XE Currency Charts.)
    
As duas receitas neoliberais para enfrentar a crise do capitalismo
   
   Para além dos resgates a instituições financeiras (pagar as perdas da especulação do grande capital à custa dos trabalhadores) e da descida das taxas de juro, as duas receitas que os governos neoliberais dos países capitalistas «desenvolvidos» têm posto em prática para enfrentar a crise do capitalismo -- crise que representa a falência do modo de produção capitalista assente no lucro de 0,1% da população, e que, a manter-se o capitalismo, veio para ficar se não houver uma terceira guerra mundial ([3]) --, são:
    
1) Austeridade: apertar o cinto aos trabalhadores, liquidar os seus direitos, baixar drasticamente salários e pensões, liquidar gastos do Estado, nomeadamente em serviços sociais (segurança social, ensino, saúde, etc.).
   
2) Facilitação Quantitativa (Quantitative Easing, QE): imprimir dinheiro com o qual o Banco Central adquire títulos obrigacionistas detidos pela banca, nomeadamente do sector não financeiro – e, no caso do BCE, títulos de dívida pública --, aumentando a liquidez dos bancos para, supostamente, os incentivar a investir na economia real. A inflação fica para depois.
      
   Na receita 1 os trabalhadores pagam directamente as perdas da especulação financeira, contribuindo directamente para que fiquem mais pobres e haja mais milionários e bilionários. O problema é que, consumindo menos, contribuem também para que não se realizem os lucros do capital, induzindo o retraimento do crédito. A receita 2 pega na outra extremidade da equação: estimula artificialmente o crédito, procurando incentivar o investimento à custa de empréstimos estatais directos, supostamente ao capital produtivo, usando dinheiro fictício. O problema é que tal medida gera inflação, acabando através dela por os trabalhadores pagarem indirectamente os ganhos do capital. No funcionamento «normal» do capitalismo a oferta de dinheiro e o crédito bancário decorrem das necessidades da economia real: da necessidade de investimento e da necessidade de consumo das famílias. O QE pretende inverter este nexo causal (como alguns dizem, pretende levar o cavalo a beber mesmo que não tenha sede). Com pouco sucesso ou mesmo insucesso, como veremos abaixo.
   A questão central da falência do capitalismo – a apropriação pelo capital das mais-valias criadas pelo trabalho e consequente baixa da taxa de lucro com o aumento da composição orgânica do capital (grosso modo, mais máquinas e menos trabalhadores) – não é resolvida por nenhuma daquelas receitas. De facto, podemos dizer que a questão central não é, obviamente, resolvida. Nunca na História a classe dominante resolve os problemas inerentes ao modo de produção que subjaz ao seu domínio e privilégios. Isso equivaleria a auto eliminar-se. As receitas funcionam apenas como expedientes temporários, com um ou outro alívio conjuntural que não ultrapassa a meia dúzia de anos até à próxima crise, e que alimenta as ilusões de que agora sim, se vai por bom caminho.
   As duas receitas têm sido usadas conjuntamente pelas economias «desenvolvidas», com maior ou menor ênfase numa ou noutra.
   Os EUA, a Inglaterra e o Japão favoreceram o QE (embora aplicassem também medidas de austeridade). A Comissão Europeia (CE), com o BCE e o presidente do Eurogrupo, favoreceu a austeridade (embora aplicasse também medidas de QE).
    
O QE do BCE
   
   Na realidade o BCE já vinha a usar medidas análogas ao QE desde Julho de 2009. Para entender minimamente o que é o BCE e as várias medidas anti-crise que tomou, sugerimos a leitura do texto que preparámos e incluímos no final deste artigo: «O Banco Central Europeu» (1.832 palavras, 10 minutos de leitura).
   Tendo tentado uma variedade de programas anti-crise em conjunto com baixíssimas taxas de juro de empréstimo aos bancos, e estando fora do cenário o uso de medidas keynesianas de investimento público já que todos os governos estão em «austeridade», só restou ao BCE, dentro da lógica capitalista, anunciar a 22/1/2015 medidas claras e extensas de QE por duas razões:
    
-- Para que o dinheiro injectado na banca e empresas financeiras pudesse eliminar dívidas com obrigações e papel comercial, alegadamente com o propósito de incentivar o crédito à economia real. O QE, nestes precisos termos, foi pioneiramente usado a seguir à crise de 2008 pelo Banco de Reserva Federal dos EUA, sendo Ben Bernanke o presidente. Bernanke, seguindo o seu mentor Milton Friedman, defendeu a ideia de imprimir notas e «lançá-las de helicóptero» para aumentar o consumo. Ficou conhecido como o «helicóptero Ben». (Efectivamente, as notas do BCE não são todas impressas e lançadas de helicóptero; são «criadas» electronicamente como reservas nos bancos.)
   
-- Para travar a perigosa tendência deflacionária da ZE (queda dos preços com adiamento de compras à queda de rendibilidade à queda no investimento). Globalmente, a ZE está em deflação (ver figura e tabela abaixo). De 19 países da ZE, 10 estavam em deflação em Janeiro de 2015. Outros dois (Itália e Eslovénia) tinham estado e encontravam-se próximos dela. A própria Alemanha está com inflação perigosamente baixa (0,2%). O espectro da deflação ameaçava(a) com mais depressão.
       
    A depreciação do euro também ajuda durante certo tempo, já que incentiva as exportações e modera as importações. Isto, não se aplica, contudo, aos países importadores de gás e petróleo, como Portugal. Embora tenha sido anunciado Setembro de 2016 como prazo final do QE, o BCE não se comprometeu com esse prazo, que depende da evolução da inflação. O valor alvo é 2%, mas nada garante o valor alvo. O QE pode até aumentar dramaticamente a inflação, o que assusta a Alemanha e contituiu um dos motivos para se ter oposto até agora ao QE.
    
Em 2015 a ZE estava em deflação (-0,7%), ao nível do mínimo da crise de 2008.
    
Taxa de inflação (%) de Outubro de 2014 a Janeiro de 2015
Áustria
1,6, 1,6, 1,7, 1
Letónia
1, 0,7, 0,9, 0.2
Bélgica
-0,12, 0,09, -0,11, -0,38
Lituânia
-0,1, 0,1, 0,2, -0,3
Chipre
-0,91, -0,49, -0,15, -1,46
Luxemburgo
0,33, 0,31, 0,07, -0,6
Estónia
-0,6, -0,2, -0,6, -0,5
Malta
0,6, 0,7, 0,6, 0,4
Finlândia
1,3, 1, 1, 0,5
Holanda
0,9, 1,1, 1, 0,7
França
0,3, 0,5, 0,3, 0,1
Portugal
-0,4, 0, 0, -0,4
Alemanha
0,8, 0,8, 0,57, 0,2
Eslováquia
-0,1, 0, 0, -0,1
Grécia
-0,8, -1,7, -1,2, -2,6
Eslovénia
-0,3, -0,1, -0,2, 0,2
Irlanda
0,3, 0,2, 0,1, -0,3
Espanha
-0,2, -0,1, -0,4, -1
Itália
-0,2, 0,1, 0,19, 0


    
Regras e riscos do QE do BCE
   
   Segundo o anúncio do BCE, as compras de títulos com maturidades entre 2 e 30 (!) anos são feitas pelos BCs da ZE. Na conferência de imprensa de 22/1/2015 Draghi esclareceu que só 12% dos 1,1 triliões de euros são destinados à compra de obrigações do sector privado europeu. O restante será aplicado em títulos de dívida pública dos países da ZE com classificação acima de «lixo» por pelo menos uma agência de rating. (Portugal por enquanto qualifica-se, graças à agência canadiana DBRS, mas a Grécia não.) A compra de títulos de dívida pública não pode ultrapassar 33% do total de títulos de cada país e cada país só pode aplicar nisso uma percentagem do QE correspondente à sua parcela de capital nos fundos do BCE (2,5% no caso de Portugal).
   Quanto à partilha de riscos no caso de incumprimento, a famosa «solidariedade europeia» não vai funcionar. A Alemanha e seus aliados próximos (Benelux, Áustria, Finlândia) sempre pugnaram por que fossem os BCs a assumir todo o risco do QE. A Alemanha é o maior accionista do BCE e a maior economia da ZE. É quem dirige a orquestra. A oposição de Merkel e do Bundesbank à assunção exclusiva dos riscos do QE pelo BCE, na protecção dos interesses do capitalismo alemão e em oposição a outros países da ZE e mesmo ao projecto global da ZE, denuncia a natureza real da ZE-UE como um projecto imperialista da Alemanha, como já dissemos em artigos anteriores.
   Na partilha de riscos o conselho de governadores do BCE acabou por chegar ao seguinte compromisso (anunciado na conferência). Do volume total de QE, só 20% das compras de títulos está sujeita à partilha de riscos entre BCE e BCs: o BCE fica responsável por 8% das perdas potenciais; os BCs ficam responsáveis pelas perdas dos restantes 12% (gastos, como vimos acima, em obrigações do sector privado). Portanto, 80% das compras a cargo dos BCs não vão ter risco partilhado com o BCE. Os BCs vão ter de suportar 12%+80% = 92% do risco global.
    
Irá o QE do BCE funcionar?
   
   Ao contrário do que aconteceu noutros países, o QE da ZE vai ser implementado numa situação de emergência (podemos dizer de pânico), quando todas as outras medidas (ver nosso texto abaixo) falharam. Quando, apesar das baixíssimas taxas de juro de empréstimo do BCE aos bancos, o crédito ao investimento privado e às famílias está estagnado em valores muito baixos. Em Portugal o crédito tem vindo a baixar e desceu 3% em 2014.
   Num artigo do Financial Times de 19/1 o articulista sintetiza bem a situação ([4]): «Mas [o QE-ZE] é também um sinal de como as coisas se tornaram desesperadas. Esta não vai ser uma versão profiláctica de QE, mas sim uma versão pós-traumática. Com expectativas de inflação fora do esperado há bastante tempo. Com inflação global negativa. A economia da zona euro está doente.»
   De facto, o QE do BCE, com injecção de 60 B€/mês (0,6% do PIB da ZE), é bem mais volumoso em termos relativos (% do PIB) que o QE dos EUA (0,1%), da Inglaterra (0,3%) e do Japão (0,17%). Será que o QE teve êxito nesses países? Nem por isso. A taxa anual de crescimento do PIB nestes países continua baixa ou mesmo negativa (respectivamente, 2,2%, 1,7%, -1,2%), a inflação (respectivamente, 1.5%, 2,6%, 0,4%) continua baixa no Japão, o nível de crédito ao sector privado continua baixo (ver figura abaixo).
    
Crédito concedido pela banca (% do PIB) ao sector privado nos EUA, Inglaterra e Japão. Note-se que os valores pré-crise não foram atingidos nos EUA e Inglaterra, com tendência decrescente. No Japão a tendência é de estagnação. Fonte: Banco Mundial.
     
   Desde o início da UE e da ZE que a burguesia alemã pretendeu colher todos os benefícios dessas estruturas sem aceitar os respectivos custos. A burguesia francesa colou-se à alemã, um pouco como as rémoras se colam aos tubarões. A Alemanha (e seus aliados próximos) criou um mercado europeu para onde despeja os bens que (sobre)produz, com os países de economia mais débil a comprar esses bens e contraindo dívidas junto de bancos alemães. Portugal, por exemplo, tem comprado à Alemanha montanhas de produtos de consumo diário (p. ex., nos supermercados Lidl), automóveis de todas as gamas (incluindo os Porsche cujas vendas têm aumentado), equipamentos para auto-estradas (muitas quase às moscas), e... os famosos submarinos. Entretanto a austeridade nos países do Sul (e não só), com a diminuição do consumo e dificuldades orçamentais arrasta a Alemanha para baixo, para a deflação e a recessão. A crise da Ucrânia e as sanções da Rússia agravam a situação.
   O QE da ZE é apenas um cuidado paliativo de um doente profundo. Temos poucas esperanças de que este paliativo traga alguma melhoria significativa para os trabalhadores portugueses. Pode até agravar a situação em Portugal como reconhecem vários economistas portugueses (ver referências). De facto, mais do que favorecer o investimento e o crédito às famílias, o QE nos países onde foi aplicado favoreceu os mercados bolsistas, a continuação do capitalismo de casino e a formação de novas bolhas de capital fictício. O mesmo irá acontecer na ZE.
   Com QE ou sem QE, há uma coisa de que a Alemanha (e seus aliados) não abdica: «reformas estruturais». Isto é, em sugar até ao tutano os trabalhadores dos países do Sul da Europa, de forma a que sejam eles a pagar pela crise do capitalismo. As «reformas estruturais» são simplesmente isto: a destruição dos direitos dos trabalhadores e dos serviços sociais. Os vassalos do Império, como Passos Coelho, servem os seus amos. Ainda em 26 de Janeiro vinha nos jornais que, segundo o BCE, «O poder negocial dos trabalhadores portugueses [os mais mal pagos e explorados da ZE] é demasiado elevado e prejudica os lucros das empresas».
    
Referências
[1] O mercado primário é o mercado dos emitentes dos títulos. O mercado secundário é o dos investidores privados.
[2] O nosso uso de mil, milhão, bilião, trilião, etc., segue a prática corrente em publicações científicas de usar um qualificativo e um único símbolo para cada sucessivo cubo de 10. É essa a prática nas publicações em língua inglesa, noutras línguas como o espanhol (billón = mil millones, trillón = millone de millones) e italiano (bilioni = mille milioni, trilioni = mille bilioni), e mesmo na versão brasileira do português. Assim, p. ex., estamos todos habituados a entender 1 gigabyte como um bilião de bytes; isto é, como mil megabytes = mil milhões de bytes. Um gigabyte escreve-se 1 GB, com um único símbolo, G, precedendo a entidade medida, B. O uso em português de Portugal de bilião para designar milhão de milhões parece provir provençal-francês (milliard, milliardo). É um uso que causa embaraços comparativos e conduz a aberrações como as que temos visto nos jornais onde aparecem 60 biliões escritos como 60 MM. Que diriam os leitores se vissem, p. ex., escrito 60 GB como 60 KKB ou 60 toneladas não como 60 t mas sim como 60 Mkg?
[3] A hipótese de uma terceira guerra mundial não está, infelizmente, tão afastada como alguns supõem. De facto, está até mais presente do que durante a guerra-fria, quando havia um bloco socialista a impor respeito aos imperiais. Haja em vista as recentes declarações de Victoria Nulland, Secretária de Estado dos EUA para os assuntos europeus, que disse que a NATO tinha que estar preparada para atacar a Rússia. No momemo em que escrevemos John Kerry anunciou que provavelmente os EUA irão fornecer armamento sofisticado ao regime fascista de Kiev.
[4] Citado em Adam Booth, Eurozone braced for Quantitative Easing as crisis intensifies, IMT, 20/1/2015.
[5] «BCE vai injectar 60 B€/mês nos bancos centrais. O BdP vai comprar 21 B€ de DP aos bancos. Bolsas e juros de dívida aplaudem, mas € afunda.» JN 23/1/2015.
[6] BCE. A bazuca está carregada e dispara em março, Expresso 22/1/2015
[7] Sérgio Aníbal, Como será aplicado o plano do BCE, Público 22/1/2015
[8] Rui Barroso, BCE anuncia compras de 60 mil milhões por mês, Sapo Económico22 Jan 2015
[9] Luís Reis Pires, Analistas receiam que compra de dívida do BCE defraude expectativas, Sapo Económico 21/1/2015.

O Banco Central Europeu
Missão e Capital
   
   O Banco Central Europeu (BCE) é o órgão director dos Bancos Centrais (BCs) dos países da ZE (19 países em Janeiro de 2015). Juntamente com os BCs, constitui o Sistema Europeu de Bancos Centrais (SEBC, Eurosystem). O BCE foi estabelecido em Julho de 1998 (Tratado de Maastricht) com a missão de dirigir a política financeira do euro, nomeadamente:
   
-- Direito exclusivo de autorização de emissão das moedas e notas do euro;
-- Definição e controlo da implementação da política monetária da ZE, com financiamento de     liquidez de bancos da UE;
-- Estabelecer políticas de estabilidade de preços (mantendo a inflação abaixo de 2%);
-- Levar a cabo operações cambiais;
-- Controlo das reservas em divisas estrangeiras do SEBC;
-- Controlo das operações da infra-estrutura do mercado financeiro, centralizando acordos de transacção de activos mobiliários com fundos dos BCs. (Processo em curso de criação de um mercado único de serviços financeiros europeus.)
  
   O BCE, tal como as corporações privadas, dispõe de accionistas (BCs) e de um fundo de capital que ascendia a mais de 7,7 B€ em Janeiro de 2015. As contribuições dos BCs, dependentes das populações e PIBs dos países, são as da tabela abaixo. Vemos que a Alemanha contribui com mais de um quarto do capital; juntamente com a França, ascende a quase metade do capital. Note-se também a posição importante da Holanda, cujo sistema bancário está intimamente ligado ao da Alemanha. Na prática a política do BCE é dirigida pela Alemanha com Benelux e Áustria: 37,9% do capital do BCE. A França... alinha.
    

   
Para além do fundo de capital dos accionistas, o BCE dispõe de outros activos, tais como reservas em divisas estrangeiras (40 B€ em divisas estrangeiras foram transferidas dos BCs da ZE aquando da criação do BCE).
   
Operações Normais de Financiamento
   
   Ao invés do Banco de Reserva Federal dos EUA, que compra títulos de tesouro para injectar liquidez em bancos e outras instituições financeiras, o SEBC usa as chamadas operações repo (do inglês repurchase, recompra).
   Numa operação repo um banco que necessita de liquidez vende ao SEBC valores mobiliários (divisas, obrigações, títulos do tesouro, acções, derivados) recebendo em troca o numerário de que necessita. A operação só é efectuada se o banco for elegível (oferecer garantias, p. ex. detenção de títulos de dívida de países do euro) e, além disso, terá de comprometer-se por contrato a comprar de volta (recomprar) em prazo curto os valores que vendeu acrescidos de um juro (repo rate). Portanto, a compra dos valores pelo SEBC não é definitiva (não é um outright purchase).
   O SEBC reconhece a existência de cerca de 1.500 bancos elegíveis, que podem licitar em leilões de operações repo com prazo de entre duas semanas a três meses.
   Portanto, as operações repo funcionam como empréstimos a curto prazo do BCE aos bancos, tendo os valores mobiliários como garantia de cumprimento. Os valores mobiliários constam como activos na folha de balanço do BCE. Os depósitos de empréstimo constam como passivo.
   Uma modalidade de médio prazo de operações repo foi lançada pelo BCE em 2003 com o nome de Long-Term Refinancing Operation (LTRO) e prazos de recompra que podiam ir até três anos.
   
Operações Extraordinárias de Resgate
   
Com a «Crise do Euro» o BCE viu-se na necessidade, dentro da óptica e prática capitalistas, de tomar medidas especiais para tapar os buracos abertos pela jogatina do grande capital financeiro. Lançou programas de resgate, sob os eufemismos de «refinanciamento», «estabilização financeira» e «injecção de liquidez». Note-se que os tratados da UE proibiam resgates financeiros: cláusula de não-resgate. Havia, assim, que tornear a cláusula.
   
-- Em Março de 2008, tendo a crise rebentado, o BCE anuncia pela primeira vez LTROs de seis meses com leilões em Abril e em Julho e um total de empréstimos de 50 B€ a cerca de 200 bancos, mas com cerca de 800 licitantes. Em 2009 houve um novo leilão com 1.100 licitantes.
-- Em 2009, o BCE anuncia o programa CBPP - Covered Bond Purchase Programme, pelo qual os BCs, sob aprovação do BCE, compravam «obrigações cobertas» -- suportadas por activos considerados de pouco risco, como títulos de tesouro -- nos mercados primário e secundário a fim de injectar liquidez no sector financeiro. A diferença do CBPP face ao QE era mínima (o risco era dos BCs e não do BCE, condições restritivas, leilões de depósitos para reabsorção de empréstimos). No CBPP1, de Julho de 2009 a Junho de 2010, foram compradas cerca de 60 B€ de obrigações cobertas. De Outubro de 2011 a Outubro de 2012 o CBPP2 comprou de cerca de 40 B€ de obrigações cobertas. Alemanha e França foram os grandes beneficiários do CBPP1 e CBPP2.
-- Em 2010 o BCE lançou dois programas de resgate: o European Financial Stabilisation Mechanism (EFSM) e o European Financial Stability Facility (EFSF). O EFSM era um programa de emergência pelo qual o BCE obteve empréstimos de mercados financeiros garantidos pela CE usando o orçamento da UE como garantia. Dos 60 B€ do EFSM, 26 B€ foram emprestados a Portugal. O EFSF é um mecanismo pelo qual o BCE emite obrigações com o apoio da Agência Financeira Alemã, de forma a obter fundos para empréstimos a bancos em dificuldade. Serviu para resgates da Grécia, Portugal e Irlanda.
-- Em Dezembro de 2011, tendo em conta a crise generalizada no sector financeiro (as roubalheiras do grande capital), o BCE lança pela primeira vez um LTRO especial (LTRO1) com prazos de três anos e muito baixa taxa de juro, 1%, aceitando como garantia títulos do tesouro (inclusive de países em crise), derivados sobre hipotecas (ainda das bolhas imobiliárias) e papel comercial (títulos obrigacionistas de bancos, etc.)! O volume total de empréstimo durante três anos a 523 bancos foi de 489 B€! Um verdadeiro maná para os bancos que se financiaram a baixo custo, entregando lixo (ou quase) como garantia, recomprado ao fim de três anos, enquanto emprestavam aos governos a 5% e às empresas e famílias a taxas superiores! Qual foi o efeito desses colossais empréstimos na economia real e nas famílias? Zero. De onde veio o dinheiro emprestado? Das mais-valias criadas pelo trabalho (através de impostos e lucros). O BCE funcionou(a) como financiador da especulação do grande capital financeiro.
-- Em 2012 o BCE estabeleceu o European Stability Mechanism (ESM), um mecanismo gerido por uma organização intergovernamental, pelo qual cada país membro contribui para um fundo de empréstimos de emergência a países da ZE. O fundo é actualmente de cerca de 700 B€. As contribuições percentuais são análogas às da tabela acima. Serviu para resgates da Grécia, Espanha e Chipre.
-- Em Fevereiro de 2012 o BCE lançou um novo LTRO, LTRO2, com prazo de três anos. O volume de empréstimo a 800 bancos foi de 529,5 B€.

-- Em 2 de Agosto de 2012 o BCE anunciou um programa de compra de títulos do tesouro de Estados membros no mercado secundário – Outright Monetary Transactions (OMT) --, desde que certas condições do Estado em causa fossem satisfeitas. Além disso, diferentemente do QE, o BC do Estado em causa teria de reabsorver os respectivos títulos, através, p. ex., de operações repo. O OMT ainda não foi aplicado. Anunciou apenas uma disposição do BCE com impacto no mercado.
   
Como resultado destas operações a folha de balanço do BCE evoluiu até 29 de Agosto de 2014 conforme mostra a figura abaixo.
   
A folha de activos do BCE (muitos dos activos -- títulos de dívida -- podemos ter a certeza que são muito pouco «activos») deu um pulo com a crise de 2008 e, mais tarde, pulos ainda maiores com os programas de resgate, nomeadamente os LTRO1 e LTRO2. Agora outro pulo brutal de «activos» foi anunciado (a vermelho).
    
Operações Extraordinárias Anti-Crise
   
   A Alemanha, a Holanda, a Áustria e a Finlândia foram os países que mais se opuseram a práticas de QE. Muitos políticos alemães, incluindo do esquerdista Die Linke, opuseram-se a programas de resgate e de compras de títulos de tesouro como o OMT, numa tentativa de se isolarem das «perturbações financeiras» dos países em crise (para a qual eles próprios também contribuíram) e receando embarcar numa espiral inflacionária. Insistiram sempre, e continuam a insistir, em «reformas estruturais». Contudo, a crise também está a bater à porta dos países ricos do Norte, com quebras no investimento e no crescimento do PIB. A deflação global é um sintoma claro. Para fazer face a esta ameaça eminente o BCE anunciou em Setembro de 2014 o CBPP3 e um programa semelhante: o Asset-Backed Securities Purchase Programme (ABSPP). Só a 22 de Janeiro de 2015 foram explicados o volume e detalhes destes programas, denominados conjuntamente de Expanded Asset Purchase Program (EAPP); agora, de «compras expandidas de activos» com dinheiro criado pelo BCE. Programas definitivamente de QE. Os «activos» consistem em títulos de tesouro (emitidos pelos BCs para obtenção de empréstimos de financiamento orçamental) bem como obrigações do sector privado, no mercado secundário. Ao ritmo de 60 B€/mês até, em princípio (dependendo da evolução da inflação), Setembro de 2016, totalizando 1,1 triliões de euros.
   
Refinanciamento da Economia Real
   
   Como complemento das benesses aos bancos o BCE tem vindo a baixar a taxa de juro a que os «refinancia», atingindo em Setembro de 2014 o valor de 0,05%! (Era de 4,25% em 2008.) O refinanciamento só tem servido para continuar a alimentar a especulação financeira. O investimento global da ZE tem continuado a diminuir bem como o crédito às famílias e ao sector não financeiro (ver na figura abaixo as manchas azul escuro).
    
As manchas azuis mostram a evolução do crédito às famílias (esquerda) e ao sector não financeiro (inclui o sector produtivo, à direita). São evidentes os declínios do crédito a partir da crise de 2008.
    
   Para atender a estas constatações o BCE anunciou em Junho de 2014 um programa para a «economia real» (em vez da fictícia, da especulação financeira): Targeted Longer-Term Refinancing Operations (TLTROs). Destina-se a incentivar empréstimos bancários ao sector privado não financeiro, excluindo empréstimos às famílias para aquisição de casa. O TLTRO só empresta 7% do total que é emprestado ao sector privado. O primeiro TLTRO arranca em Março de 2015. Pensamos que o TLTRO pouca influência irá ter na economia real. O problema não está no crédito, está na rendibilidadedo sector produtivo. É esta que é causa do primeiro e não o contrário.
   
Para saber mais:
Carol C. Bertaut, The European Central Bank and the Eurosystem, New England Economic Review, Agosto de 2000.
European Central Bank, Wikipedia.en.
Outright Monetary Transactions, Wikipedia.en.
ECB, Open Market Operations.
ECB Press Release, 6 September 2012.
ECB Press Release, 5 June 2014.
ECB Press Release, 3 July 2014.
ECB Press Release, ECB announces expanded asset purchase programme, 22 January 2015. http://www.ecb.europa.eu/press/pr/date/2015/html/pr150122_1.en.html
ECB, Technical Annex. ECB Announces Operational Modalities Of The Expanded Asset Purchase Programme
Martin Murenbeeld, Chantelle Schieven, Economic Note. ECB Monetary Policy Update, Dundee Capital Markets, 5//9/2014.
Lisa Pollack, The ECB and covered bonds – the next chapter?, FT Alphaville, 27/9/2011
ECB Market Intervention: Covered Bond Purchasing Programme (CBPP), 22/2/2012, https://placeduluxembourg.wordpress.com/2012/02/22/ecb-market-intervention-covered-bond-purchasing-programme-cbpp/
Tyler Durden, The ECB Changes Its Mind Which Bonds It Will Monetize, Then It Changes It Again, http://www.zerohedge.com/news/2014-10-19/ecb-changes-its-mind-which-bonds-it-will-monetize-then-it-changes-it-again