quinta-feira, 10 de julho de 2014

BES-GES: Mais um buraco para o povo tapar?

    Os vários buracos do sector bancário – de que o mais volumoso até agora foi o do BPN-SLN – desempenharam um papel relevante no despoletar da versão portuguesa da «crise do euro» e subsequente política dita de «austeridade». Austeridade para o povo: trabalhadores activos, reformados, pensionistas. Concretamente, como temos vindo a expor repetida e fundamentadamente em vários artigos deste blog, a austeridade é simplesmente uma política de saque ao povo, por coerção estatal, com vista a ressarcir os figurões do grande capital financeiro das suas «perdas». As tais «perdas» que originam os buracos financeiros.
    Mas que «perdas» são essas? Será que se trata de carteiras de dinheiro perdidas por distracção? Certamente que não. Será que são o resultado de más apostas em investimentos produtivos, de empresas que não se rentabilizaram como se esperava? Nem por isso. O investimento no sector produtivo é actualmente muito reduzido. Essas «perdas» são ou perdas no jogo de casino com activos tóxicos (geralmente com os derivados: ver nomeadamente http://revolucaoedemocracia.blogspot.pt/2014/02/o-sector-financeiro-vi-jogos-com_22.html e o caso dos swaps, http://revolucaoedemocracia.blogspot.pt/2014/03/o-sector-financeiro-vi-jogos-com_19.html ) ou – e esta é uma causa recorrente em Portugal – desvios fraudulentos, ilegais e criminosos de fundos que vão para os figurões do grande capital financeiro, seus familiares, seus apoiantes políticos, seus gestores e cúmplices de variados tipos. Tudo construído de forma complexa, envolvendo contas em vários países e em offshores. Tão complexa que, como confessava um jurista no caso BPN, faltavam meios e conhecimentos no sistema judicial à altura do desafio. Bom, o que de facto falta, acima de tudo, é condições e vontade políticas. O sistema político em que vivemos é o sistema destes figurões. PSD-CDS, PS, são os seus partidos. O Estado português é o Estado deles.
   Sobre tudo isto já falámos detalhadamente a propósito do «caso» BPN (http://revolucaoedemocracia.blogspot.pt/2013/11/o-sector-financeiro-v-o-caso-bpn.html ). Nesse «caso» -- de facto, um conjunto interligado de vários casos – tínhamos uma situação do tipo «banco para o bando» que começou por um buraco de 700 milhões de euros e em finais de 2013 já era 11,8 vezes maior (8,3 biliões de euros; como vem sendo habitual usamos bilião à inglesa e brasileira: bilião = mil milhões).
    Agora, com o BES, temos também um «caso» da tipologia «banco para o bando»; só que, logo à partida, o buraco é maior, da ordem dos 9 biliões de euros.
O «caso» ainda não rebentou abertamente. Além disso, faltam auditorias e há muita informação que ainda é mantida em segredo. Os seguintes aspectos podem, porém, desde já apontar-se (notícias recentes dos media):
   
    -- À semelhança do BPN que tinha a sua holding financeira (a SLN) também o banco comercial BES faz parte de uma holding financeira (isto é, uma companhia de cúpula que detém acções de outras companhias «filhas»), a Espírito Santo Financial Group (ESFG), que inclui a seguradora Tranquilidade, a banca de investimento e corretora BES-investimento, BESA-BES Angola, ESAF-Espírito Santo Activos Financeiros, Banque Privée, etc. A ESFG, por sua vez, está sob o «guarda-chuva» da Espírito Santo Internacional (ESI), a holding financeira de topo do grupo Espírito Santo. Ora, acontece que a ESFG e a ESI estão ambas sediadas no Luxemburgo, país designado por offshore financeiro por pelo menos três instituições: FMI, OCDE e Financial Secrecy Index (gerido por uma rede de advogados). Isto é, estão sediadas num país onde não se fazem muitas perguntas e o segredo é a alma do negócio.
    -- Apesar disso, até a Procuradoria do Luxemburgo, em colaboração com o regulador luxemburguês do sector financeiro (Comité de Surveillance du Secteur Financier) se viu na necessidade de abrir, em Junho passado, um inquérito à ESFG e ESI por «irregularidades nas contas» tendo concluído «que a sociedade apresenta uma situação financeira grave». De acordo com o Expresso, que teve acesso ao relatório da auditoria interna, a ESI não registou 1,2 biliões de euros de dívidas nas contas de 2012 tendo acumulado dívidas de 2,5 biliões de euros
    -- O BESA, cujo presidente Álvaro Sobrinho é arguido num processo de branqueamento de capitais (em investigação desde 2010 pelo TIC), perdeu o rasto a 6,5 biliões de euros = 6.500.000.000 €! Estes 6,5 biliões de euros, eufemisticamente designados por «crédito mal parado», «caíram», segundo a Maka Angola (portal angolano em defesa da democracia e contra a corrupção), nos bolsos de figurões de topo do corruptíssimo regime angolano. A troco de favores a outros figurões do (ou associados ao) BESA, obviamente.
    Pormenor curioso que ilustra bem o actual estilo de cumplicidades do capitalismo financeiro: a World Finance Magazine tinha atribuído recentemente o galardão de «Best Bank in Angola» («O melhor banco de Angola») ao BESA!
    -- Temos, portanto, para já, um buraco de 2,5 + 6,5 = 9 biliões de euros!
    Para termos uma ideia, ele é superior ao défice do orçamento de estado (8,2 biliões) e corresponde a 11,5% do total de resgates a Portugal controlados pela troika. Outra comparação que nos deve fazer reflectir: os 9 biliões de euros correspondem a 4,7 vezes o total de cortes nas pensões desde 2010!
    -- Há poucos dias atrás uma autoridade reguladora norte-americana iniciou uma investigação às transacções financeiras e de gestão de activos ao BES-Miami. (O BES-Miami é um offshore onde Pinochet tinha contas suas.)
   
Fonte: JN 4/7/2014

    -- Além da ESFG, que gere os investimentos financeiros, existe também a Rioforte Investments que gere activos não financeiros nas áreas de imobiliário, turismo, energia, agropecuária, saúde, etc., em Portugal, Espanha, Brasil, Paraguai, Angola e Moçambique. A Rioforte e a ESFG constituem a holding ESI, por sua vez debaixo da holding Espírito Santo Control, o grupo BES propriamente dito (GES). Um polvo bem complexo, como se vê. E ainda estamos longe de enumerar todos os tentáculos do polvo. Exemplo: o acima citado Álvaro Sobrinho é dono da Newshold que controla o semanário Sol, o jornal i, e 15% da Cofina (Correio da Manhã, Jornal de Negócios, revista Sábado). Outro exemplo: o BES celebrou em 2013 um acordo com o BCP pelo qual a Controlinveste deu acções a accionistas dos dois bancos (logo, cedeu parte do controlo da Controlinveste a accionistas do BES e BCP) a troco da dívida que tinha com os bancos. Ora, a Controlinveste-Olivedesportos de Joaquim Oliveira é a dona do Diário de Notícias, Jornal de Notícias, O Jogo e a TSF. Querem melhor exemplo do que temos vindo a repetir, que no sistema capitalista os grandes meios de comunicação estão essencialmente ao serviço do capital? Mas há mais: A Newshold ficou conhecida por ter entrado na corrida pela privatização da RTP, entretanto adiada (em Janeiro de 2013)!
    -- A Rioforte tem vindo a contrair dívidas e encontrava-se em final de Junho em situação de incumprimento iminente por incapacidade de pagar uma parte do seu papel comercial (vulgo obrigações) que vencia nessa altura. O BdP (o tal que acha que está sempre tudo bem com o grande capital financeiro) autorizou então um «empréstimo» de 100 milhões de euros do BES à Rioforte («empréstimo» = transferência de dívida). Por seu turno, a Portugal Telecom (PT) também «investiu» 900 milhões de euros na Rioforte por compra de obrigações da ESI. Quem não gostou nada disto foram os accionistas brasileiros da Oi que pediram explicações à sua associada PT.
    -- Assistiu-se recentemente a uma disputa dinástica pelo controlo do GES. Dois dos candidatos eram José Ricciardi (presidente do BES Investimento) e Amilcar Morais Pires (director financeiro do BES), ambos arguidos num caso de tráfico de influências e abuso de informação envolvendo acções da EDP e REN (operação Monte Branco). Tudo boa gente, como se vê.
    -- Estes vários casos «BES» influíram na recente descida das acções do BES. Mesmo já depois da recente saída do presidente executivo do banco, as acções desvalorizaram 19% com uma perda de 934 milhões de euros para o BES. No final de Junho a CMVM proibiu as vendas a descoberto das acções representativas do capital social do BES e do ESFG na bolsa de Lisboa. (Sobre vendas a descoberto ver, p. ex., «A Especulação Financeira» no primeiro artigo deste blog.)
    -- Quanto à ESI, no momento em que escrevemos este artigo, estava em incumprimento no pagamento de pelo menos uma das obrigações.
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    Entretanto, o que dizem os reguladores acerca do «caso» BES-GES? Exactamente o mesmo que disseram quando o «caso» BPN-SLN estava para rebentar. O governador do BdP, Carlos Costa, é uma espécie de Vítor Constâncio II. Para ele está tudo bem. No final de Maio, contudo, foi alertando para a possibilidade de um segundo resgate se o país perder o acesso aos mercados, apelando para a necessidade de «não os desiludir». Estais a ouvir, trabalhadores, reformados e pensionistas? Nada de desiludir os mercados. Porque buracos e vigarices bancárias não os desiludem com toda a certeza; pelo menos, no entender de Carlos Costa, grande regulador das «operações» do capital financeiro. Outra grande reguladora é a ministra das Finanças para quem o BES «está estável». Isto é, continua a fazer negócios como sempre.
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    O PCP veio recentemente defender (Nota do Gabinete de Imprensa do PCP) «uma intervenção do Estado centrada na urgência de garantir o controlo público do Banco, assente em duas direcções fundamentais:
- apuramento da situação real do BES, das responsabilidades e responsáveis pela situação, levando esse apuramento até às últimas consequências;
- concretização de um conjunto de medidas de gestão que impeçam a utilização dos meios financeiros do Banco, para assim procurar resolver problemas do grupo, provocando a sangria de meios financeiros do Banco, o que levaria a uma situação de grande instabilidade.
».
    Pouco depois, em 1 de Julho de 2014, veio mesmo defender a nacionalização da banca comercial como «imperativo nacional», algo que já vínhamos defendendo desde o início deste blog («Por uma solução de esquerda da crise portuguesa» de 25 de Setembro de 2012).
    Há, porém, enormes diferenças entre a nossa proposta de nacionalização (exposta no citado artigo e noutros do blog) e a proposta do PCP. Eis o que consta na nossa proposta e não consta, para já, na do PCP:
   
1) A nossa proposta era de nacionalizar toda a banca portuguesa; não só a banca comercial mas também a de investimento. Em Portugal isso incluiria hoje o Millennium BCP Investment Bank, a CaixaBI, o Banco BIG, o BANIF Investment Bank, o BPI Investimentos, o Espírito Santo Investment Bank, o ActivoBank, o Banco BEST, o Banco Finantia, o Banco INVEST (têm brotado como os cogumelos). De facto é a banca de investimento, para além dos sectores de investimento financeiro dos maiores bancos comerciais, que concentra os maiores ataques e as manobras mais escuras contra os interesses dos trabalhadores.
2) A nossa proposta previa a instituição de comissões de trabalhadores de acompanhamento da gestão bancária. Sem a vigilância de comissões interventivas de trabalhadores, os administradores, gestores e C.ª, sentir-se-ão perfeitamente à vontade para conduzir os negócios como sempre.
3) A nossa proposta também previa alterar totalmente a direcção, política e objectivos do Banco de Portugal e só permitir a operação de bancos estrangeiros que aceitassem regras estritas de supervisão pelo BdP.
4) Finalmente, a nossa proposta propugnava a responsabilização directa dos actuais banqueiros e seus cúmplices pelas perdas da especulação e ilícitos praticados. Dizíamos no citado artigo: «Banqueiros e seus associados na especulação devem ser julgados e os seus bens apropriados pelo Estado a fim de resgatar as dívidas dos bancos aos depositantes. Só tais resgates são legítimos; caso contrário, estão os inocentes a pagar pelos culpados.»
    
    Por conseguinte, a nossa proposta rompia claramente com a actual política de capitalismo de casino. Política que, além de incentivar às maiores nojeiras fabricadoras de «buracos», coloca depois o ónus da perpetuação do sistema -- através do pagamento de «resgates» (de facto, resgates ao grande capital) -- nas costas dos trabalhadores, reformados e pensionistas.
    Tudo que seja aquém do que propomos não tem pernas para andar (já fundamentámos esta afirmação repetidamente em artigos anteriores) e manterá essencialmente o status quo.
    Ora, o PCP, embora ainda não tenha revelado muito bem o conteúdo da sua proposta de nacionalização, o que já apresentou sobre a «intervenção do Estado» -- qual Estado? O actual, do grande capital financeiro? -- peca por insuficiência e chega a ser lamentável:
   
    -- Quanto ao primeiro ponto do extracto da «Nota do Gabinete de Imprensa» acima, o «levando esse apuramento até às últimas consequências» do PCP é muito curto e ilusório. No fundo, estamos aqui na velha questão do «Estado». Como o PCP não esclarece a que «Estado» se refere deixa pairar graves ilusões no povo. Já vimos que chegue quais são as «últimas consequências» no actual Estado para os que já foram julgados ou estão em julgamento por fraudes e especulações financeiras. É preciso dizer claramente que banqueiros e seus associados deverão pagar com a apropriação dos seus bens pelas perdas na especulação e ilícitos praticados. Isto só será possível num outro Estado que consubstancie uma outra vontade política e reformule a legislação e o sistema judicial.
    -- Quanto ao segundo ponto, «concretização de um conjunto de medidas de gestão [etc.]» trata-se de um texto simplesmente lamentável para um partido que se diz comunista. Tenciona o PCP dizer aos capitalistas como devem gerir o capital financeiro? Propostas de «medidas de gestão» como as apresentadas estariam bem para um qualquer PS. Estão sempre prontinhos para gerir o capital. E, ao fazê-lo, dizem (claro!) que estão a fazer o que fazem para mais coisa menos coisa «procurar resolver problemas do grupo, provocando a sangria de meios financeiros do Banco, o que levaria a uma situação de grande instabilidade.» Exactamente como disse o «socialista» Teixeira dos Santos ao anunciar a «intervenção do Estado» no BPN. Também era para evitar a instabilidade e o «contágio sistémico». Lamentável! Simplesmente lamentável!
    -- Na «Nota do Gabinete de Imprensa», a seguir ao extracto acima, o PCP refere que «Os fundamentos desta intervenção por parte do Estado, estão sustentados na recusa de qualquer intervenção à posteriori, tal como aconteceu no BPN -- de nacionalização dos prejuízos, evitando desta forma que o Estado assuma responsabilidades que apenas aos accionistas do BES dizem respeito.» Isto é, o PCP propugna a intervenção a priori, antes do «rebentamento da bolha», em vez de a posteriori. Mas esta diferenciação entre a priori e a posteriori é perfeitamente ociosa. Não é pelo facto de ser feita a priori que a intervenção estatal vai fazer a diferença. A intervenção estatal por parte de Costas, Albuquerques e quejandos, mesmo partindo do princípio que estariam dispostos a fazê-la a priori o que é altamente improvável, não vai fazer qualquer diferença.
   

    Nestas três questões, o PCP, que se reclama do marxismo, parece ter-se esquecido de uma questão fundamental que nenhum marxista deveria esquecer. A questão fulcral do Estado (existe um texto excelente de Álvaro Cunhal sobre o assunto). Ao reclamar o «apuramento até às últimas consequências», «medidas de gestão» e «intervenção à posteriori», no quadro do actual Estado, podemos dizer, em termos populares, que é como se o PCP quisesse que um bando de gatunos instituísse e aplicasse medidas impeditivas da gatunagem.