Os vários buracos do sector bancário – de que
o mais volumoso até agora foi o do BPN-SLN – desempenharam um papel relevante
no despoletar da versão portuguesa da «crise do euro» e subsequente política
dita de «austeridade». Austeridade para o povo: trabalhadores activos,
reformados, pensionistas. Concretamente, como temos vindo a expor repetida e
fundamentadamente em vários artigos deste blog, a austeridade é
simplesmente uma política de saque ao povo, por coerção estatal, com vista a
ressarcir os figurões do grande capital financeiro das suas «perdas». As
tais «perdas» que originam os buracos financeiros.
Mas que «perdas» são essas? Será que se trata
de carteiras de dinheiro perdidas por distracção? Certamente que não. Será que
são o resultado de más apostas em investimentos produtivos, de empresas que não
se rentabilizaram como se esperava? Nem por isso. O investimento no sector
produtivo é actualmente muito reduzido. Essas «perdas» são ou perdas no jogo de
casino com activos tóxicos (geralmente com os derivados: ver nomeadamente http://revolucaoedemocracia.blogspot.pt/2014/02/o-sector-financeiro-vi-jogos-com_22.html
e o caso dos swaps, http://revolucaoedemocracia.blogspot.pt/2014/03/o-sector-financeiro-vi-jogos-com_19.html
) ou – e esta é uma causa recorrente em Portugal – desvios fraudulentos,
ilegais e criminosos de fundos que vão para os figurões do grande capital
financeiro, seus familiares, seus apoiantes políticos, seus gestores e
cúmplices de variados tipos. Tudo construído de forma complexa, envolvendo
contas em vários países e em offshores. Tão complexa que, como
confessava um jurista no caso BPN, faltavam meios e conhecimentos no sistema
judicial à altura do desafio. Bom, o que de facto falta, acima de tudo, é
condições e vontade políticas. O sistema político em que vivemos é o sistema
destes figurões. PSD-CDS, PS, são os seus partidos. O Estado português é o
Estado deles.
Sobre tudo isto já falámos detalhadamente a
propósito do «caso» BPN (http://revolucaoedemocracia.blogspot.pt/2013/11/o-sector-financeiro-v-o-caso-bpn.html
). Nesse «caso» -- de facto, um conjunto interligado de vários casos – tínhamos
uma situação do tipo «banco para o bando» que começou por um buraco de 700
milhões de euros e em finais de 2013 já era 11,8 vezes maior (8,3
biliões de euros; como vem sendo habitual usamos bilião à inglesa e
brasileira: bilião = mil milhões).
Agora, com o BES, temos também um «caso» da
tipologia «banco para o bando»; só que, logo à partida, o buraco é maior, da
ordem dos 9 biliões de euros.
O «caso» ainda não rebentou abertamente. Além
disso, faltam auditorias e há muita informação que ainda é mantida em segredo.
Os seguintes aspectos podem, porém, desde já apontar-se (notícias recentes dos media):
-- À semelhança do BPN que tinha a sua holding
financeira (a SLN) também o banco comercial BES faz parte de uma holding
financeira (isto é, uma companhia de cúpula que detém acções de outras
companhias «filhas»), a Espírito
Santo Financial Group (ESFG), que inclui a seguradora Tranquilidade, a
banca de investimento e corretora BES-investimento, BESA-BES Angola,
ESAF-Espírito Santo Activos Financeiros, Banque Privée, etc. A ESFG, por sua
vez, está sob o «guarda-chuva» da Espírito
Santo Internacional (ESI), a holding financeira de topo do grupo
Espírito Santo. Ora, acontece que a ESFG e a ESI estão ambas sediadas no
Luxemburgo, país designado por offshore financeiro por pelo menos três
instituições: FMI, OCDE e Financial Secrecy Index (gerido por uma rede
de advogados). Isto é, estão sediadas num país onde não se fazem muitas
perguntas e o segredo é a alma do negócio.
-- Apesar
disso, até a Procuradoria do Luxemburgo, em colaboração com o regulador
luxemburguês do sector financeiro (Comité de Surveillance du Secteur
Financier) se viu na necessidade de abrir, em Junho passado, um inquérito à
ESFG e ESI por «irregularidades nas contas» tendo concluído «que a sociedade
apresenta uma situação financeira grave». De acordo com o Expresso, que teve
acesso ao relatório da auditoria interna, a ESI não registou 1,2 biliões de
euros de dívidas nas contas de 2012 tendo acumulado dívidas de 2,5
biliões de euros.
-- O BESA,
cujo presidente Álvaro Sobrinho é arguido num processo de branqueamento de
capitais (em investigação desde 2010 pelo TIC), perdeu o rasto a 6,5
biliões de euros = 6.500.000.000 €! Estes 6,5 biliões de euros,
eufemisticamente designados por «crédito mal parado», «caíram», segundo a Maka
Angola (portal angolano em defesa da democracia e contra a corrupção), nos
bolsos de figurões de topo do corruptíssimo regime angolano. A troco de favores
a outros figurões do (ou associados ao) BESA, obviamente.
Pormenor
curioso que ilustra bem o actual estilo de cumplicidades do capitalismo
financeiro: a World Finance Magazine tinha atribuído recentemente o
galardão de «Best Bank in Angola» («O melhor banco de Angola») ao BESA!
-- Temos,
portanto, para já, um buraco de 2,5 + 6,5 = 9 biliões de euros!
Para termos uma ideia, ele é superior ao
défice do orçamento de estado (8,2 biliões) e corresponde a 11,5% do total de
resgates a Portugal controlados pela troika. Outra comparação que nos deve
fazer reflectir: os 9
biliões de euros correspondem a 4,7 vezes o total de cortes nas pensões desde
2010!
-- Há poucos dias atrás uma autoridade
reguladora norte-americana iniciou uma investigação às transacções financeiras
e de gestão de activos ao BES-Miami. (O BES-Miami é um offshore onde
Pinochet tinha contas suas.)
Fonte: JN 4/7/2014
-- Além da ESFG, que gere os investimentos financeiros,
existe também a Rioforte
Investments que gere
activos não financeiros nas áreas de imobiliário, turismo, energia,
agropecuária, saúde, etc., em Portugal, Espanha, Brasil, Paraguai, Angola e
Moçambique. A Rioforte e a ESFG constituem a holding ESI, por sua vez
debaixo da holding Espírito Santo Control, o grupo BES propriamente dito
(GES). Um polvo bem complexo, como se vê. E ainda estamos longe de enumerar
todos os tentáculos do polvo. Exemplo: o acima citado Álvaro Sobrinho é dono da
Newshold que controla o semanário Sol, o jornal i, e 15% da
Cofina (Correio da Manhã, Jornal de Negócios, revista Sábado). Outro exemplo: o
BES celebrou em 2013 um acordo com o BCP pelo qual a Controlinveste deu
acções a accionistas dos dois bancos (logo, cedeu parte do controlo da
Controlinveste a accionistas do BES e BCP) a troco da dívida que tinha com os
bancos. Ora, a Controlinveste-Olivedesportos de Joaquim Oliveira é a dona do
Diário de Notícias, Jornal de Notícias, O Jogo e a TSF. Querem melhor exemplo
do que temos vindo a repetir, que no sistema capitalista os grandes meios de
comunicação estão essencialmente ao serviço do capital?
Mas há mais: A Newshold ficou conhecida por ter entrado na corrida pela
privatização da RTP, entretanto adiada (em Janeiro de 2013)!
-- A Rioforte tem vindo a contrair dívidas e
encontrava-se em final de Junho em situação de incumprimento iminente por
incapacidade de pagar uma parte do seu papel comercial (vulgo obrigações)
que vencia nessa altura. O BdP (o tal que acha que está sempre tudo bem com o
grande capital financeiro) autorizou então um «empréstimo» de 100 milhões de
euros do BES à Rioforte («empréstimo» = transferência de dívida). Por seu
turno, a Portugal Telecom (PT) também «investiu» 900 milhões de euros na
Rioforte por compra de obrigações da ESI. Quem não gostou nada disto foram os
accionistas brasileiros da Oi que pediram explicações à sua associada PT.
-- Assistiu-se
recentemente a uma disputa dinástica pelo controlo do GES. Dois dos
candidatos eram José Ricciardi (presidente do BES Investimento) e Amilcar
Morais Pires (director financeiro do BES), ambos arguidos num caso de tráfico
de influências e abuso de informação envolvendo acções da EDP e REN (operação
Monte Branco). Tudo boa gente, como se vê.
-- Estes
vários casos «BES» influíram na recente descida das acções do BES. Mesmo já
depois da recente saída do presidente executivo do banco, as acções
desvalorizaram 19% com uma perda de 934 milhões de euros para o BES. No final
de Junho a CMVM proibiu as vendas a descoberto das acções representativas do capital social do BES e
do ESFG na bolsa de Lisboa. (Sobre vendas a descoberto ver, p. ex., «A
Especulação Financeira» no primeiro artigo deste blog.)
-- Quanto à ESI, no
momento em que escrevemos este artigo, estava em incumprimento no pagamento de
pelo menos uma das obrigações.
* * *
Entretanto, o que
dizem os reguladores acerca do «caso» BES-GES? Exactamente o mesmo que disseram
quando o «caso» BPN-SLN estava para rebentar. O governador do BdP, Carlos
Costa, é uma espécie de Vítor Constâncio II. Para ele está tudo bem. No final
de Maio, contudo, foi alertando para a possibilidade de um
segundo resgate se o país perder o acesso aos mercados, apelando para a
necessidade de «não os desiludir». Estais a ouvir, trabalhadores, reformados e
pensionistas? Nada de desiludir os mercados. Porque buracos e vigarices
bancárias não os desiludem com toda a certeza; pelo menos, no entender de
Carlos Costa, grande regulador das «operações» do capital financeiro. Outra
grande reguladora é a ministra das Finanças para quem o BES «está estável».
Isto é, continua a fazer negócios como sempre.
* * *
O PCP veio
recentemente defender (Nota do Gabinete de Imprensa do PCP) «uma intervenção do Estado centrada na
urgência de garantir o controlo público do Banco, assente em duas direcções
fundamentais:
- apuramento
da situação real do BES, das responsabilidades e responsáveis pela situação,
levando esse apuramento até às últimas consequências;
- concretização
de um conjunto de medidas de gestão que impeçam a utilização dos meios
financeiros do Banco, para assim procurar resolver problemas do grupo,
provocando a sangria de meios financeiros do Banco, o que levaria a uma
situação de grande instabilidade.
».
Pouco depois,
em 1 de Julho de 2014, veio mesmo defender a nacionalização
da banca comercial como «imperativo nacional», algo que já vínhamos defendendo
desde o início deste blog («Por uma solução de esquerda da crise
portuguesa» de 25 de Setembro de 2012).
Há, porém, enormes diferenças entre a nossa
proposta de nacionalização (exposta no citado artigo e noutros do blog)
e a proposta do PCP. Eis o que consta na nossa proposta e não consta, para já, na do PCP:
1) A nossa proposta era de nacionalizar
toda a banca portuguesa; não só a banca comercial mas também a de
investimento. Em Portugal isso incluiria hoje o Millennium BCP Investment Bank, a CaixaBI, o Banco
BIG, o BANIF Investment Bank, o BPI Investimentos, o Espírito Santo Investment
Bank, o ActivoBank, o Banco BEST, o Banco Finantia, o Banco INVEST (têm brotado
como os cogumelos). De facto é a banca de investimento, para além dos sectores
de investimento financeiro dos maiores bancos comerciais, que concentra os
maiores ataques e as manobras mais escuras contra os interesses dos
trabalhadores.
2) A nossa proposta previa
a instituição de comissões de trabalhadores de acompanhamento da gestão
bancária. Sem a vigilância de comissões interventivas de trabalhadores, os
administradores, gestores e C.ª, sentir-se-ão perfeitamente à vontade para
conduzir os negócios como sempre.
3) A nossa
proposta também previa alterar totalmente a direcção,
política e objectivos do Banco de Portugal e só permitir a operação de bancos
estrangeiros que aceitassem regras estritas de supervisão pelo BdP.
4) Finalmente, a nossa proposta propugnava a responsabilização
directa dos actuais banqueiros e seus cúmplices pelas perdas da especulação e
ilícitos praticados. Dizíamos no citado artigo: «Banqueiros e seus
associados na especulação devem ser julgados e os seus bens apropriados pelo
Estado a fim de resgatar as dívidas dos bancos aos depositantes. Só tais
resgates são legítimos; caso contrário, estão os inocentes a pagar pelos
culpados.»
Por
conseguinte, a nossa proposta rompia claramente com a actual política de
capitalismo de casino. Política que, além de incentivar às maiores nojeiras
fabricadoras de «buracos», coloca depois o ónus da perpetuação do sistema --
através do pagamento de «resgates» (de facto, resgates ao grande capital) --
nas costas dos trabalhadores, reformados e pensionistas.
Tudo que seja
aquém do que propomos não tem pernas para andar (já fundamentámos esta
afirmação repetidamente em artigos anteriores) e manterá essencialmente o status
quo.
Ora, o PCP,
embora ainda não tenha revelado muito bem o conteúdo da sua proposta de
nacionalização, o que já apresentou sobre a «intervenção do Estado» -- qual
Estado? O actual, do grande capital financeiro? -- peca por insuficiência e
chega a ser lamentável:
-- Quanto ao
primeiro ponto do extracto da «Nota do Gabinete de Imprensa» acima, o «levando
esse apuramento até às últimas consequências» do PCP é muito curto e ilusório.
No fundo, estamos aqui na velha questão do «Estado». Como o PCP não esclarece a
que «Estado» se refere deixa pairar graves ilusões no povo. Já vimos que chegue
quais são as «últimas consequências» no actual Estado para os que já
foram julgados ou estão em julgamento por fraudes e especulações financeiras. É
preciso dizer claramente que banqueiros e seus associados
deverão pagar com a apropriação dos seus bens pelas perdas na especulação e
ilícitos praticados. Isto só será possível num outro Estado que
consubstancie uma outra vontade política e reformule a legislação e o sistema
judicial.
-- Quanto ao segundo ponto, «concretização de um conjunto de medidas
de gestão [etc.]» trata-se de um texto simplesmente lamentável para um partido
que se diz comunista. Tenciona o PCP dizer aos capitalistas como devem gerir o
capital financeiro? Propostas de «medidas de gestão» como as apresentadas
estariam bem para um qualquer PS. Estão sempre prontinhos para gerir o capital.
E, ao fazê-lo, dizem (claro!) que estão a fazer o que fazem para mais coisa
menos coisa «procurar resolver problemas do grupo, provocando a sangria de
meios financeiros do Banco, o que levaria a uma situação de grande instabilidade.»
Exactamente como disse o «socialista» Teixeira dos Santos ao anunciar a «intervenção
do Estado» no BPN. Também era para evitar a instabilidade e o «contágio
sistémico». Lamentável! Simplesmente lamentável!
-- Na «Nota do Gabinete de Imprensa», a seguir
ao extracto acima, o PCP refere que «Os fundamentos desta intervenção por parte do Estado, estão sustentados na
recusa de qualquer intervenção à posteriori, tal como aconteceu no BPN -- de
nacionalização dos prejuízos, evitando desta forma que o Estado assuma
responsabilidades que apenas aos accionistas do BES dizem respeito.» Isto é, o
PCP propugna a intervenção a priori, antes do «rebentamento da bolha»,
em vez de a posteriori. Mas esta diferenciação entre a priori e a
posteriori é perfeitamente ociosa. Não é pelo facto de ser feita a
priori que a intervenção estatal vai fazer a diferença. A intervenção
estatal por parte de Costas, Albuquerques e quejandos, mesmo partindo do
princípio que estariam dispostos a fazê-la a
priori o que é altamente improvável, não vai fazer qualquer diferença.
Nestas três
questões, o PCP, que se reclama do marxismo, parece ter-se
esquecido de uma questão fundamental que nenhum marxista deveria esquecer. A
questão fulcral do Estado (existe um texto excelente de Álvaro Cunhal sobre o
assunto). Ao reclamar o «apuramento
até às últimas consequências», «medidas de gestão» e «intervenção à posteriori», no quadro do actual Estado, podemos dizer, em termos populares, que
é como se o PCP quisesse
que um bando de gatunos instituísse e aplicasse medidas impeditivas da
gatunagem.