quinta-feira, 24 de julho de 2014

Megaritmostiflose... ou outra coisa?

    Na Palestina decorre mais uma operação de agressão fascista das forças armadas israelitas. Começou por bombardeamentos e agora é já uma invasão terrestre. O PM israelita de extrema-direita Netanyahu já disse que estão prontos «para tomar toda a faixa de Gaza». Revelou o que sempre quis.
    A actual agressão deu-se a pretexto do sequestro seguido de assassínio de três colonos adolescentes por um grupelho de marginais na Cisjordânia. Apesar da zona não ser controlada pelo Hamas e do Hamas negar o envolvimento, isso não serviu de nada. Vários factos são suspeitos: o imediato atribuir de culpas ao Hamas sem quaisquer provas; o estilo amador como foi conduzido o sequestro, cujos erros, conforme referido por vários comentadores, teriam acabado por causar o assassinato; o facto de os serviços secretos israelitas saberem, poucas horas a seguir ao sequestro, que os raptados estavam mortos; apesar disso, a campanha nos media «Tragam de volta os nossos rapazes» continuou durante semanas para incitar à agressão; a forma como foi lançado o ataque (logística e escalonamento) aponta para que o plano da agressão já tinha sido elaborado, só faltando a provocação final para convencer a «opinião pública». Agressão de uma crueldade e brutalidade inteiramente desproporcionadas, na faixa de Gaza e não na Cisjordânia.
    As pressões internacionais tinham recentemente levado a retomar (mais uma vez!) as conversações de paz. Já perdemos a conta a quantas houve desde que em 1948 a ONU decidiu que na antiga Palestina nasceriam dois Estados. O Estado de Israel nasceu. Nasceu com o apoio dos judeus ricos da América. Nasceu para ser o cão de fila dos interesses imperialistas, guardando os poços de petróleo do Médio Oriente. Com a complacência benevolente dos Estados árabes reaccionários onde o capital é quem mais ordena, como a Arábia Saudita, Oman, Emiratos do golfo pérsico e o Egipto de Sadat e Mubarak. Nasceu à custa de massacres de vítimas indefesas, como as de Deir Yassin e de Jennin. Com todas as marcas de atrocidade próprias dos genocídios. Atrocidades (p. ex., em Deir Yassin os soldados-terroristas judeus cortaram abdómenes de mulheres grávidas e massacraram bebés nas mãos das mães) e crimes de guerra que vitimaram centenas de palestinos. Crimes que continuam impunes. Uma contabilização muito por baixo das vítimas de 1947-48 (não tem em conta todos os massacres, que foram inúmeros) consta na tabela abaixo:

Os 702 palestinos aqui contabilizados foram massacrados para
que Israel nascesse.
Local do massacre
Data
Mortos
Yehida
13/12/1947
31
Khisas
18/12/1947
10
Qazaza
19/12/1947
5
Al-Sheikh
1/1/1948
40
Deir Yassin
9-10/4/1948
107
Naser Al-Din
13-14/4/1948
50
Beit Daras
21/5/1948
50
Dahmash Mosque
11/7/ 1948
350
Dawayma
29/10/1948
90
TOTAL
-
702

    Israel nasceu como Estado Sionista (o sionismo é a versão racista do nacionalismo judeu) com discriminação racista contra os seus cidadãos árabes, obrigados a passes e controlos de passagem como os negros o eram no regime do apartheid da África do Sul, e inclusive racismo entre as várias estirpes de proveniência dos judeus (sefarditas, askenazi, oriundos da Etiópia, oriundos da Somália, etc.). Num documentário que vimos num canal de TV holandês, sobre os controlos de passagem a que os israelitas obrigam os seus cidadãos árabes, um soldado israelita, entrevistado sobre a necessidade dos passes para os árabes, comentava que os palestinos eram como os macacos.
    Um mito muito divulgado pelos sionistas e seus apoiantes (em particular, os imperialistas britânicos e ianques), que encontra eco nos meios de comunicação portugueses, é que os israelitas não faziam(em) mais do que defender-se. Totalmente falso. Os massacres decorreram de ataques premeditados e bem preparados a vítimas indefesas. Até fontes imperialistas reconhecem isso. Uma grande parte das vítimas era mulheres e crianças. Estes massacres de 1947-48 espalharam o terror na população e levaram à diáspora palestina para os países limítrofes (Jordânia, Líbano, Síria, Egipto). Como consequência da preparação e do factor surpresa dos ataques o número de baixas israelitas foi extremamente reduzido. Por exemplo, no massacre de Deir Yassin morreram, segundo a wikipedia, apenas 4 judeus: 1 judeu para 27 palestinos.
    Assim, nasceu o Estado de Israel. O Estado da Palestina que estava previsto nascer nunca nasceu. As conversações e cimeiras sucederam-se sem resolver este problema básico: dar à nação palestina o seu Estado, conforme a resolução da ONU de 1948. As autoridades sionistas sempre usaram um jogo duplo: por um lado, como propaganda em declarações à imprensa, mostravam-se de quando em quando disponíveis para o diálogo; por outro lado, arranjavam sempre desculpas para protelar encontros e decisões recorrendo sistematicamente a provocações. As provocações israelitas eram e são de vários estilos. O mais comum é este: constroem colonatos ilegais, os palestinos obviamente revoltam-se por se verem espoliados dos seus terrenos e casas, recebem os espoliadores à pedrada, e os israelitas respondem às pedras com tiros a matar e apressam-se a afivelar a máscara de vítimas dizendo que têm de adiar as conversações porque os árabes «querem destruir o Estado de Israel». É certo que existem grupelhos palestinos que têm cometido actos terroristas. Mas isso é um fenómeno esporádico e de pequena dimensão. O que não quer dizer que não lamentemos as vítimas e não repudiemos o terrorismo contra civis em todas as suas formas. Além disso, deve-se ter em conta que Israel também tem os seus grupelhos terroristas. Ainda agora, no início desta «crise de Gaza», três extremistas judeus raptaram um adolescente palestino de 16 anos, Mohammed Abu Khdeir, e mataram-no incendiando-o vivo (noticiado em alguns meios de comunicação, incluindo o The Guardian e, parcialmente, o jornal israelita Haaretz). Portanto, ao contrário do que os meios mais alinhados com o imperialismo pretendem fazer crer – e aqui incluímos claramente os jornais portugueses DN, JN, CM e Público, bem como todos os canais de TV portugueses – o terrorismo não é um exclusivo dos palestinos. Desde o nascimento de Israel que ficou claro e comprovado por factos que terroristas é coisa que não falta entre os sionistas.
    A propósito de «colonatos». Há certas palavras tão badaladas que aos mais distraídos parecem ter-se tornado inócuas. Mas, afinal, colonatos são a expressão do colonialismo. Se há colonatos quer dizer que há colonos; colonos que ocupam as terras dos «selvagens»; neste caso, dos palestinos. Ora, a ONU, na sua resolução 1514 (XV) de 14 de Dezembro de 1960 (Declaration on the Granting of Independence to Colonial Countries and Peoples) condenou o colonialismo. Apesar disso, aí estão os EUA, a UE e os Ban-Ki-Moons sempre a dar pancadinhas de encorajamento nas costas dos Sharons, Olmerts e Netanyahus. Quando têm alguma frase de desagrado ela soa no género «seus mauzinhos! Não deviam fazer isso...», mas os israelitas já há muito sabem o que significam tais frases de desagrado e fica tudo na mesma porque o dinheiro e os interesses imperiais falam mais alto. Isto é, na mesma não fica. Apesar das muitas condenações que são meros exercícios de retórica, a espoliação de casas e terras para os colonos continua.
   
O Estado da Palestina não nasceu. Não nasceu porque, além de isso ser contrário aos interesses dos sionistas que querem reconstituir o «Grande Israel», um Estado Palestino de alguma forma servindo de tampão e empecilho às incursões punitivas dos sionistas na região (Líbano, Síria, Jordânia, Egipto) não interessa aos imperialistas. (Nada de impedir Israel de punir quem deseja libertar-se da garra dos imperialistas!) Por isso mesmo passam sempre uma esponja por cima dos massacres, provocações e tácticas dilatórias dos sionistas.
    
    No início do artigo, dissemos: «mais uma operação de agressão fascista das forças armadas israelitas». E, se calhar, há leitores que pensarão: «Lá está este fulano a exagerar. Então não se está mesmo a ver que Israel é um Estado democrático?» Impõe-se aqui uma justificação, já que procuramos sempre não afirmar nada que não tenha sido devidamente pensado e ponderado; podemos, obviamente, falhar nessa intenção e estamos sempre prontos a aceitar correcções fundamentadas. Passemos à justificação.
    Devemos, primeiro que tudo, ter em conta que a actual época histórica é bem diferente da dos fascismos de Mussolini, Hitler, Franco e Salazar. Não existe uma URSS forte, com uma economia socialista, apoiando (apesar de vários erros) as lutas dos trabalhadores em todo o mundo e revoluções socialistas como as de Cuba, China e Vietname. O capitalismo neoliberal e cada vez mais reaccionário dos EUA (já pensaram bem no que Obama prometia e no que fez e está a fazer?) e seus aliados permite facilmente a existência de algo que era impensável no tempo de Mussolini e Hitler: Estados pluripartidários, com eleições parlamentares, mas com continuadas políticas essencialmente fascistas, que esmagaram brutalmente os direitos dos trabalhadores, que possuem meios de controlar qualquer embrião de dissidência a nível global (lembremo-nos do sistema PRISMA do NSA revelado por Snowden e outros) tomando medidas preventivas e preemptivas, que controlam os maiores meios de comunicação social formatando o pensamento dominante nas populações, e que têm vindo a cultivar o racismo e a xenofobia como forma de lançar trabalhadores contra trabalhadores, nações contra nações. E fazem tudo isto sem, para já, grande oposição por parte dos trabalhadores, porque estes estão divididos, confundidos, a maioria crente de que «não há alternativa», e sem liderança à altura da situação por parte de partidos operários e comunistas (onde se instalou o rotineirismo e a debilidade e fossilização ideológicas). Ora, se o esclarecimento, liderança e capacidade de luta dos trabalhadores são reduzidos, é claro que o grande capital pode passar sem o totalitarismo de Hitleres para os controlar, conduzindo, apesar de tudo, políticas do mesmo cunho.
     A actual «passividade» portuguesa é o reflexo desta divisão, confusão, crença de que o capitalismo é inelutável, debilidade ideológica e de actuação da esquerda consequente. Exemplos de Estados actuais, pluripartidários e com «democracia parlamentar» mas essencialmente fascistas: Ucrânia (governado pelos fascistas do Sector Direito que inclusive já ilegalizou o partido comunista), Geórgia, Moldóvia, Hungria, Colômbia. Outros Estados oscilam entre políticas abertamente fascistas e outras mais tradicionais da «direita democrática». É o caso de Israel. O Likud, partido de Netanyhu, é o partido que mais tem dominado a política de Israel (com breves interregnos da direita trabalhista) e que se declara neo-sionista e nacional-liberal. No fundo o que isto quer dizer é que está ao serviço do capital mais reaccionário (nacional-liberal) e de que quer ocupar as terras palestinianas de Gaza, Judeia e Samaria (pedra chave da ideologia neo-sionista) supostamente por razões religiosas (!). Hitler também era nacional-socialista e queria ocupar o leste europeu porque os alemães precisavam de «espaço vital». Quer seja por «espaço vital» quer seja por «motivos religiosos» vai dar ao mesmo: trata-se de uma simples pretexto para justificar uma política de rapina.
    Tal como Hitler precisou de provocações para «justificar» e iniciar guerras de agressão há muito planeadas, também Netanyahu age da mesma forma. A actual agressão a Gaza começou com o sequestro de um judeu e rapidamente escalou para um ataque frontal à faixa de Gaza com o uso desproporcionado de força, conforme referido por alguns meios de comunicação e pela ONU. Note-se que entre a população árabe também há elementos venais prontos a colaborar com os serviços secretos israelitas na montagem de provocações.
    Parece-nos que está assim justificada a nossa afirmação de «agressão fascista».
    Os israelitas têm também procurado justificar os seus ataques como necessários para destruir as bases de mísseis do Hamas (partido filiado na Irmandade Muçulmana, que tem a seu favor lutar pela auto-determinação palestina, mas a desfavor o seu obscurantismo religioso e, no passado, actos terroristas). Todavia, neste último ataque não foi o Hamas a iniciar ataques com mísseis. Mísseis, aliás, que têm provado ser muito ineficazes face aos meios de que dispõe Israel de os detectar e abater.
    Muitos comentadores ligados ao governo de Israel também tocam muito na tecla de que o Hamas não reconhece Israel. O Hamas responde, e com razão, como é que pode reconhecer um Estado que só os oprime e lhes nega o direito à existência. Não nos esqueçamos que, como disse alguém, a faixa de Gaza é como o ghetto de Varsóvia, com Israel a proibir todos os movimentos para fora da faixa e inclusive a interditar o seu abastecimento em bens de primeira necessidade! Alimentos, medicamentos e outros bens só através de túneis que comunicam com o Egipto. Os 1,8 milhões de habitantes de Gaza suportam todos os dias uma vida de desespero, cativos e cercados por um poder militar brutal, sob constantes incursões arbitrárias de soldados, tanques e aviões que atiram a matar. Quando José Saramago em visita à Palestina comparou a faixa de Gaza ao campo de concentração de Auschwitz, estava, em muitos sentidos, dentro da razão.
*    *    *
    Na agressão injustificada à faixa de Gaza em 2008 morreram 1400 palestinos (5000 ficaram feridos), a maioria dos quais civis, mulheres e crianças. Israel usou armas proibidas incluindo armas de fósforo. Dos israelitas morreram 13 (4 por fogo amigo).
    Na agressão injustificada à faixa de Gaza em 2012 morreram 133 palestinos e 3 israelitas.
    Os media ocidentais falaram até à exaustão sobre o soldado israelita Gilad Shalit sequestrado pelo Hamas e que veio a ser libertado e de boa saúde durante uma troca de prisioneiros. Mas não falam das 1500 crianças palestinianas mortas pelos sionistas desde 2000.
    Segundo um relatório da ONU (United Nations Office for the Co-ordination of Humanitarian Affairs, http://www.ochaopt.org/documents/CAS_Aug07.pdf ) de 2000 até 2007 tinham morrido 4228 palestinos e 1024 israelitas, dos quais 855 crianças palestinas e 116 israelitas.
    No actual ataque de Israel a Gaza, que já mereceu um levantamento de inquérito da ONU por suspeitas de crimes de guerra dos israelitas, o balanço das vítimas em 19 de Julho é este: 299 mortos palestinos, 13 israelitas. Dos 299 palestinos 60 são crianças.
    Para nós, todos os mortos inocentes, sejam palestinos ou israelitas, são de lamentar. Mas é óbvio que, dentro do lamento geral, não podemos perder de vista a diferença entre os que morreram e não tiveram culpa nenhuma disso (como civis e, acima de tudo, as crianças) que é o caso da esmagadora maioria das vítimas palestinas, e os participantes directos nos massacres, que é o caso dos soldados israelitas.
    Também não podemos perder de vista a desproporção dos números. Cada morto é de lamentar, mas 100 mortos são 100 vezes mais de lamentar que um morto.
   
Por isso mesmo aqui registamos a nossa indignação perante o jornalismo imoral dos países ocidentais, incluindo o dos media portugueses acima citados – DN, JN, CM, Público, canais de TV --, que martelam até à exaustão a morte de, por exemplo, uma criança israelita, mas remetem ao silêncio ou trivializam como simples estatística a morte de milhares de crianças palestinas.
   
    Quando manifestavávamos esta nossa indignação a um médico cujo nome esquecemos, dizia-nos ele que se tratava de uma doença. A maior parte dos jornalistas ocidentais que trabalham ao serviço do capital contraem uma doença conhecida por megaritmostiflose, a cegueira aos grandes números...
   
*    *    *
   
    Na manhã de 29 de Novembro de 1864 as forças do Coronel John Chivington, pregador metodista, atacaram de surpresa a aldeia cheyenne de Sand Creek. A aldeia era legal, obedecendo ao Tratado de Fort Wise. No tipi do chefe cheyenne, que defendia uma convivência pacífica, estava até hasteada a bandeira dos EUA! Mas, recentemente, tinha sido encontrado ouro nas Montanhas Rochosas, perto do acampamento índio... O religioso Chivington disse então: «Maldito seja quem simpatize com os índios!... Eu vim para matar índios e acredito que é justo e honroso usar quaisquer meios sob o céu do Senhor para matar índios... Matem-nos e escalpem-nos, grandes e pequenos; as lêndeas criam piolhos.»
    Não esqueçamos que no Oeste americano a palavra de ordem era: «um bom índio é um índio morto».
    Na noite de 28 de Novembro os 700 soldados de infantaria e cavalaria tinham bebido até à embriaguez, para ganhar «coragem» e festejar antecipadamente a vitória. Na manhã de 29 os guerreiros não estavam na aldeia, tinham ido caçar búfalos. Só estavam pouco mais de 130 índios, velhos, mulheres e crianças. Foram quase todos massacrados. Mais tarde, os seguintes testemunhos foram ouvidos no Congresso: «Vi corpos jazendo cortados aos pedaços [...] mulheres cortadas aos pedaços... com facas, escalpadas; com os cérebros para fora; crianças de dois e três meses»; «dedos e orelhas eram cortados dos corpos para tirar as jóias. O corpo de Antílope Branco [...] foi o alvo principal. Além de o escalparem cortaram-lhe o nariz, as orelhas e os testículos – neste caso para fazer um saquinho para o tabaco»
    Morreram 133 índios, 105 dos quais mulheres e crianças. Das forças de Chivington morreram 24, muitos por fogo amigo devido ao estado de bebedeira.
    Uns dias mais tarde, em 17 de Dezembro, começava assim a notícia do massacre de Sand Creek no jornal Rocky Mountain News: «Entre os brilhantes feitos de armas das guerras com os índios a recente campanha dos voluntários do Colorado figurará na história com poucas que rivalizem, e nenhuma que a exceda nos resultados finais.»
    Atentemos: 133 índios mortos para apenas 24 baixas dos voluntários de Chivington. Então não é um resultado final excelente?
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Megaritmostiflose? Não. É outra coisa. Para os sionistas e seus apoiantes imperialistas, bem como para toda a corja jornalística que, ao seu serviço, envenena as mentes da população, «um bom palestino é um palestino morto».