quarta-feira, 24 de julho de 2013

Crónica da «Salvação Nacional» cavaquista

Ao fim de uma semana de negociações dos partidos do governo, PSD e CDS, com o PS, nenhum acordo foi alcançado. Gorou-se, assim, a iniciativa presidencial de Cavaco Silva para atrelar o PS ao carro do PSD-CDS com vista a um governo amplo da direita ao serviço da «salvação nacional», isto é, da salvação do grande capital nacional e europeu interessado na neocolonização de Portugal e, em particular, em sugar o povo trabalhador para manter o regabofe da banca.
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Em 9 de Julho p.p. Cavaco Silva parecia ainda disposto a apadrinhar um novo governo remodelado PSD-CDS, com Portas a assumir uma posição de maior preponderância. O Jornal de Notícias de 10 de Julho, por exemplo, descrevia tal posição sob o título «Cavaco apadrinha segunda lua-de-mel de Passos e Portas». Entretanto, todos os indicadores económicos estavam com perspectiva negativa: a taxa de crescimento do PIB português tinha ficado no final do 2.º trimestre em -4%, confirmando uma descida continuada do PIB ao longo de 5 trimestres!; o FMI previa uma contracção de 0,6% do PIB na Zona Euro, sublinhando que em 2014 a recessão iria ser pior do que inicialmente pensavam (caía, assim, a tese da recuperação económica para 2014); a taxa de crescimento do PIB dos EUA (com enorme influência na Europa) também recuava para +1,7% (em vez da estimativa anterior de +1,9%); os mercados bolsistas estavam geralmente em queda, com o PSI-20 em queda desde o início de Maio a cair de novo cerca de 5% em 10 de Julho; o crédito mal parado relativo às empresas mantinha-se em subida batendo recorde: 17 biliões de € (já assinalámos em artigos anteriores que usamos biliões em vez de mil milhões), representando 11,3% do total de empréstimos; ficou-se também a saber que as dívidas das empresas à Segurança Social tinham aumentado de 2011 para 2012 de uns espantosos 36,9% (de 7142 para 9779 milhões €) e as dívidas ao fisco de uns «meros» 292 milhões € (totalizando 18.205 milhões €!); os juros da dívida tinham subido para níveis próximos de 7%, embora no dia 9 registassem alguma diminuição que o governo de Passos Coelho aproveitou para acção de propaganda; a dívida pública e externa mantinham-se elevadas e com tendência de subida (ver (http://revolucaoedemocracia.blogspot.pt/2013/07/portugal-em-queda-livre.html).
Todo este cenário num quadro de grande corrupção (segundo a Transparência e Integridade, Associação Cívica, 80% dos portugueses pensam que a corrupção aumentou nos últimos 2 anos, com 11% a admitirem que já pagaram subornos nos serviços públicos) e escandaleira geral (Isaltino oficialmente a concorrer nas autárquicas estando preso, Mira Amaral com uma reforma de 18.000€/ano por uma ano e nove meses que esteve na CGD, etc., etc.; a corrupção, fraude e escandaleira dos sucessivos governos desde o 25 de Novembro de 1975 dariam para escrever vários volumes; e os dos governos Sócrates até ao actual ocupariam boa parte desses volumes num acelerar daquilo que já denunciámos como «após nós o dilúvio»).
A 11 de Julho, Cavaco, num discurso ao país, anuncia a sua intenção de chamar PSD, CDS e PS para conversações com vista a formar um governo ou «compromisso» de «salvação nacional» que poderia ser encabeçado por uma personalidade independente de prestígio. O que motivou Cavaco?
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No artigo supracitado tínhamos já chamado a atenção para o facto de que, com o aprofundar do descontentamento popular e com a evidente destruição da economia portuguesa, iriam surgir tendências para branquear as culpas do governo PSD-CDS. Nada melhor, com esse fim, do que a construção de uma frente governativa pró-troika, atrelando o PS ao carro PSD-CDS, e dando mais força à ideia de que não há alternativa à troika e, portanto, às políticas económicas e financeiras do governo. Ideia que, infelizmente, ainda colhe dividendos em largas camadas politicamente menos conscientes da população portuguesa; em particular, as submissas às pregações dominicais do clero.
Várias figuras da direita se pronunciaram no sentido de uma ampla frente PSD-CDS-PS. É uma ideia que já vem de longe (ver http://revolucaoedemocracia.blogspot.pt/2012/10/a-direita-cerra-fileiras-no-ataque-aos.html ). Um tal «governo de salvação nacional», com uma base social ampla, tornaria mais «credíveis» as políticas de ataque ao povo trabalhador. Isto é, a capacidade de ludíbrio das massas populares por parte do grande capital cresceria enormemente. Daí que, quando Cavaco anunciou a sua iniciativa, surgiram logo declarações exultantes das associações do grande patronato (CIP, CCP) e dos latifundiários (CAP). De assinalar, também, o apoio da UGT (Carlos Silva: «é um repto interessante aos partidos»; achou «interessante» e pelos vistos «partidos» para ele são só os da direita) e de um economista pró-direita (Daniel Bessa). Parece que o parecer de Carlos Costa, governador do Banco de Portugal, também pesou na decisão de Cavaco.
Inicialmente o PS mostrou hesitações, dizendo, por um lado, que estava disponível para dialogar (embora insistindo em eleições antecipadas) e, por outro lado, com Alberto Martins a dizer que o PS não «apoiará ou fará parte de qualquer governo» sem a vontade expressa pelos portugueses em eleições. (É, portanto, legítimo presumir destas afirmações que se em próximas eleições o PS não tiver maioria absoluta não está posta de parte a aliança com o PSD e/ou CDS. O que não espanta.)
A 12 de Julho os media divulgavam que Cavaco tinha em mente ter como mediador do acordo o chefe militar da contra-revolução do 25 de Novembro de 1975, Ramalho Eanes, adepto da ideia da «salvação» PSD-CDS-PS. Claro! O PS continuava a dizer que «sim», «mas»: «disponível para negociação mas não para servir de "muleta"». Bom, se se negoceia com alguém é porque se admite chegar a acordo com esse alguém. Como é que o PS poderia estar «disponível» para negociar sem servir de "muleta" (isto é, dar apoio ou pelo menos credibilizar as políticas pró-troika) é um dos muitos mistérios a que o PS nos habituou. Perante a anunciada «salvação» a troika babada adiou o regresso a Portugal para Setembro. Mas uma coisa é trazer para o lado da troika a pequeno burguesia pela mão do PS, outra coisa são as preocupações prioritárias da grande burguesia («Será que o PS quer restringir o regabofe?»): o PSI-20 caiu logo 2% e os juros dos títulos de dívida pública a 10 anos subiram outra vez para perto dos 7% (6,9%).
A 13 de Julho Seguro diz que procura garantias de apoio interno do PS para avançar. Pelos vistos, obteve esse apoio e garantias para a negociação com vista ao «compromisso de salvação nacional» porque avançou. A 14 de Julho tinha lugar a 1.ª reunião. A 15, Cavaco enviou um emissário às conversações dos partidos PSD, CDS e PS; os chamados «partidos do arco de governação». Na democracia burguesa é assim: há os que são do «arco» porque servem os interesses do capital, e os que estão fora dele. Tudo -- meios de comunicação, apoios financeiros, aparelho político, aparelho religioso da Igreja de condicionamento ideológico, modo de apuramento de votações, subornos, legislação, sistema judicial, órgãos de repressão, etc., etc. -- está concebido, estruturado e solidificado para reproduzir constantemente o mesmo sistema; o sistema capitalista e, em particular, em Portugal (e noutros países), o sistema que melhor protege os interesses do grande capital financeiro, os interesses egoístas de menos de 1% da população (ver http://revolucaoedemocracia.blogspot.pt/2012/11/os-1-do-topo.html ): a ditadura da grande burguesia (menos de 1% da população) exercida por um sistema parlamentar «democrático». Para isso aí está a «alternância democrática» rodando sempre, de X em X anos, o governo entre os mesmos dois partidos ou coligações: um, puro e duro de direita (plano A da grande burguesia); outro, de direita mas com umas pinceladas de esquerda (plano B) para enganar os trabalhadores politicamente pouco conscientes, quando o plano A não consegue funcionar. Em Portugal os planos A e B são representados, respectivamente, pelo PSD+CDS (ou PSD sozinho) e pelo PS; nos EUA pelos Republicanos e Democratas; no Reino Unido, pelos Conservadores e Trabalhistas; na França, pelo UMP e PS; na Alemanha, pela CDU e SPD; na Holanda, pelo CDA+VVD (ou CDA sozinho) e pelo PvdA; etc., etc. Na Europa e desde a 2.ª Guerra Mundial o sistema conseguiu proporcionar um bom nível de vida aos trabalhadores de vários países enquanto a rendibilidade do sector produtivo esteve em alta («Estado Social» da época de ouro do capitalismo até cerca de 1975: ver http://revolucaoedemocracia.blogspot.pt/2012/09/a-crise-do-euro-uma-apreciacao-parte-i.html ); as leis económicas, que vêm determinando um cada vez pior funcionamento do sistema, gerando cada vez mais exploração e opressão aberta dos trabalhadores, acabarão por ditar o seu fim.
De 16 a 19 de Julho as conversações prosseguiram com o PS a colocar como obstáculos a sua recusa ao corte de 4,7 biliões de euros na despesa do Estado (desejada pelo PSD-CDS), ao aumento dos despedimentos na função pública, ao ataque às pensões da função pública e à aplicação da TSU aos pensionistas. Os media anunciavam «conversações emperradas», «impasse nas negociações», etc. Ora, quando o PS iniciou as conversações já sabia que elas não iriam alcançar qualquer «compromisso de salvação nacional». De facto, do ponto de vista do PS, porquê entrar num acordo comprometedor, que iria servir apenas o PSD-CDS, quando está seguro de vencer as próximas eleições e «dar as cartas» como quer (inclusive aplicar medidas que agora, por razões eleitorais, diz que recusa), aparecendo como «salvador» e como se não tivesse culpa pelo estado a que chegou o país? A simples lógica eleitoralista está na base da rejeição por parte do PS de qualquer acordo, no momento actual, com a restante direita. No fundo, as conversações serviram apenas a campanha eleitoral do PS; ao longo das mesmas aproveitou para propagandear os aspectos que o separam do PSD-CDS (no entender do PS, claro) e o que irá fazer como governo: tudo fazer para baixar o IRS (não custa nada dizer que se «vai fazer tudo para…»), recuperação económica, produzir mais, falar com a troika, etc.
A 19 de Julho o «compromisso» era declarado impossível e a 21 Cavaco anunciava ao país que iria manter o governo moribundo do PSD-CDS devidamente remodelado, embora sujeito à vigilância de Cavaco. (Safa! O que seria sem a vigilância de Cavaco?! E das preces à N. S. de Fátima?!) Cavaco disse ainda que lamentava a falta de acordo (entre o PSD-CDS e PS) mas que acreditava que ele seria inevitável no futuro. E neste aspecto Cavaco marcou um ponto. Mesmo que o PS ganhe as eleições com maioria absoluta é muito provável que o aprofundar da crise venha a ditar a aliança do PS com o PSD (e/ou CDS). Teríamos, assim, o «arco de governação» completo a tratar-nos da saúde.

O anúncio de Cavaco de que mantinha o governo fez logo subir o PSI-20 e diminuir os juros das obrigações de dívida pública. (A grande burguesia não anda a dormir.)
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Como factos colaterais a estas andanças assinale-se a fingida indignação do PS pelo facto do PCP ter proposto conversações com o BE, Verdes e Intervenção Democrática. Disse o PS: «Fizeram mal. Agora em competição, cada um deles lança o seu processo. O PS não entra neste jogo partidário». Como se sabe «jogos partidários» não são com o PS. José Lello do PS chegou mesmo a dizer que se o PS «aceitou estar à mesa com a direita, não podia negar-se a dialogar com a esquerda». Como vemos, o PS vai a todas. É o «centrão». Ou, como diria o almirante Pinheiro de Azevedo, o PS é um partido que tanto é de direita com táctica de esquerda como de esquerda com táctica de direita.
De facto, o PS durante as negociações de «salvação nacional» até recusou o convite do BE para dialogar, dizendo que «só negoceia com a maioria». Numa breve reunião do BE com o PS o bloquista Fernando Rosas saiu da sede do PS dizendo-se convencido que o PS «prefere explorar o entendimento com o governo a voltar-se para uma alternativa à esquerda» (pelos vistos, o BE, sempre disponível a aliar-se ao PS – se este merecer um atestado de bom comportamento, é claro --, ainda não tinha dado por isso; santa ingenuidade!).
Quem também ficou muito zangada de não ser convidada pelo PCP foi a Renovação Comunista (RC), pequeno grupo que inclui ex-membros do PCP sob a égide de Carlos Brito e outros mais, que se afirma marxista e comunista. Quando se esperava que, de facto, renovassem teórica e praticamente o pensamento marxista e comunista, constata-se afinal que tal «renovação» não existe. Existe, sim, a «regressão» às ideias da social-democracia em torno da ideia central da aliança com o PS. O grande feito histórico da RC até hoje foi o apoio expresso ao candidato do PS à Câmara do Porto. O PS agradeceu. É claro que não são os votos dos «renovadores» que irão alterar a votação no PS; mas um apoio de «marxistas» e «comunistas» não deixará de servir ao PS na sua continuada campanha de embuste aos trabalhadores; e por aí, sim, poderá ganhar mais alguns votos. Pensamos não ter de falar mais nesse grupo irrelevante que é a RC (irrelevante do ponto de vista de uma contribuição positiva a uma alternativa de esquerda em Portugal). O seu papel -- felizmente! -- está definido: apoiar as manobras de embuste do PS.

quarta-feira, 17 de julho de 2013

Desigualdade Social: Portugal e os Outros (II)

Os repositórios de dados do índice de Gini (IG) já mencionados no artigo anterior (http://revolucaoedemocracia.blogspot.pt/2013/07/desigualdade-social-portugal-e-os.html ) e acessíveis na Internet -- muitos deles patrocinados por instituições de relevo -- não remontam no passado para além de finais do século XIX, mesmo para países desenvolvidos. Este facto dificulta a análise histórica da evolução do IG, análise importante, dado que complementa a informação do PIB per capita ajudando a objectivar a evolução das desigualdades sociais ao longo do tempo.
A documentação sobre a evolução da distribuição de rendimentos para tempo recuados parece-nos ser mais abundante para a França do que para qualquer outro país. A influência de investigações históricas sobre a Revolução Francesa e períodos imediatamente anteriores e posteriores poderá justificar este nosso parecer. Os dados de IG da França que conseguimos coligir ([1]) são representados graficamente na figura abaixo. Neste gráfico e seguintes de evolução temporal do IG será colocada uma barra cinzenta correspondente à metade central da distribuição mundial dos IGs; isto é, correspondente ao intervalo de 0,32 a 0,45. Recordemos que no artigo anterior tínhamos categorizado o IG em quatro escalões: IG inferior a 0,32: bom; entre 0,32 e 0,38: medíocre; entre 0,38 e 0,45: mau; finalmente, um IG superior a 0,45: péssimo.


Evolução histórica do IG da França.

A inspecção da figura revela quatro períodos de evolução do IG, dois correspondendo a quase estabilidade e outros dois correspondendo a descidas importantes. A caracterização que fazemos é a seguinte (ver tabela abaixo):
·     No período de 1695 a 1788 (93 anos), véspera da Revolução Francesa, o IG é sempre péssimo. A sua variação (máximo menos mínimo) é de 0,15.
·     No período de 1789 a 1830 (41 anos), que vai desde a Revolução Francesa até à chamada monarquia de Junho, o IG sofre uma descida importante (0,25) e, pela primeira vez, desce de péssimo para mau.
·     No período de 1831 a 1963 (68 anos) a França atravessa várias vicissitudes (revolução de 1848, as guerras de Napoleão III incluindo a guerra franco-prussiana, duas guerras mundiais). O seu IG flutua em torno de 0,42, com pequena variação (0,11) e muitas excursões na zona do péssimo.
·     No período de 1964 a 2010 (46 anos) o IG experimenta de novo uma descida importante (0,22) passando sucessivamente para níveis de medíocre e depois de bom.

Caracterização da evolução do IG da França.
Período
Índice de Gini

Média
Mínimo
Máximo - Mínimo
1695-1788
0,62
0,53
0,15
1789-1830
0,52
0,41
0,25
1831-1963
0,45
0,40
0,11
1964-2010
0,34
0,27
0,22

Destes quatro períodos é de destacar o período de 1789 a 1830. Face ao período de 1964 a 2009, em que também se observou uma descida do IG, o primeiro corresponde a uma descida mais acentuada (0,25 face a 0,22) e num período de tempo mais curto (41 anos face a 45 anos). A influência da Revolução Francesa e decorrentes lutas na defesa de direitos sociais, parece ter jogado aqui um papel de relevo.
 A figura seguinte mostra a evolução temporal do IG na Grã-Bretanha ([2]) e nos EUA ([3]). Não se observa em nenhum destes países períodos de descida acentuada do IG num curto período de tempo. O IG da Grã-Bretanha só é classificado como bom no período de 1965 a 1985 e episodicamente noutros anos. No período entre 1920 e 1957 (37 anos) desceu apenas 0,13. A partir de 1985 mantém-se perto do limiar entre medíocre e bom. O IG dos EUA é sempre mau ou péssimo (ligeira excursão no medíocre em 1979-1980); inclusive nos últimos anos não anda longe dos valores que tinha nos tempos do far-west (0,474 em 2003-2004 e 0,475 em 1870).
Em nenhum destes países houve uma revolução sócio-económica com a profundidade da Revolução Francesa, inspiradora de posteriores reivindicações sociais em França. O movimento Cartista na Inglaterra (1838-1848), considerado o primeiro movimento reivindicativo dos trabalhadores a nível mundial, não deixou marcas na evolução do IG. O capitalismo nestes dois países evoluiu sem constrangimentos de relevo.
          

Evolução histórica do IG da Grã-Bretanha e dos EUA.


Vejamos agora o caso da Rússia ([4]). O respectivo gráfico de evolução temporal do IG é mostrado na figura abaixo. Antes de 1855 o IG da Rússia Imperial (Czarista) era péssimo e exibia um ligeiro decrescimento. Este acelera-se a partir de 1855, já no tempo do Czar Alexandre II (introduziu a reforma de emancipação dos servos em 1961). Em 1918 teve lugar a Revolução de Outubro que conduziu ao estabelecimento de um sistema económico socialista (o país, que integrava outros estados da Rússia Imperial, actualmente independentes, chamou-se então União Soviética ou simplesmente U.R.S.S.) o qual perdurou até final de 1991. De 1918 ao final da segunda guerra mundial o respectivo IG (apesar da guerra civil e de agressão externa, de bloqueio económico e, mais tarde, da guerra de agressão nazi) continuou a descer a um ritmo semelhante ao do período anterior, vindo a alcançar o nível de medíocre em 1939. Do final da guerra em 1945 e até 1970, isto é, no espaço de 25 anos, o IG sofre uma descida acentuada de 0,155, correspondendo a uma taxa de descida média quase igual à experimentada pela França no período pós-Revolução, de 1789 a 1830. O IG é agora de 0,23 (melhor que o da Suécia actual). A partir de 1970 o IG sofre uma ligeiríssima subida até à implosão da União Soviética em finais de 1991 e a sua transição para o sistema capitalista. A Rússia (Federação Russa, não englobando muitos dos antigos estados federados da U.R.S.S. que se tornaram por essa época independentes) vê então o seu IG subir a um ritmo provavelmente nunca antes verificado na História: um aumento de 0,134 no espaço de um ano de assalto desenfreado à privatização de bens do Estado! De um bom IG passa a um mau IG e mesmo com excursões mais recentes a níveis de péssimo.


Evolução histórica do IG da Rússia.

O caso da China também é interessante. A evolução do IG é mostrada na figura abaixo ([5]) apenas a partir de 1953, quando começa a haver dados credíveis sobre a distribuição de rendimentos. Valores de IG para a China Imperial (antes de 1950) são praticamente inexistentes, com excepção de escassos estudos sobre a China rural em 1935-36 que permitem estimar o IG global como tendo um valor da ordem de 0,46 ([6]). A partir da declaração da República Popular da China em 1950 e o início do desenvolvimento de um sistema económico socialista, os dados existentes a partir de 1953 permitem inferir uma descida continuada do IG que passa de 0,561 (péssimo) em 1953 para 0,186 (bom) em 1977. Um espantoso decréscimo da desigualdade social com uma descida de 0,375 do IG em apenas 24 anos!
Em 1978 Deng Xiaoping ascende a Secretário-Geral do Partido Comunista Chinês. Introduz, então, um novo rumo económico designado por «socialismo de mercado» (ou ainda, designação mais curiosa, «economia de mercado socialista com características chinesas») que mais não é do que a abertura à privatização de empresas estatais bem como à formação de empresas mistas de capitais do estado e capitais estrangeiros. Com os dirigentes que se seguiram a Deng as medidas de índole capitalista aprofundaram-se, com a criação de zonas económicas especiais onde surgiram empresas de capitais privados estrangeiras. O sector privado correspondia a 53,38% do total de empresas em 2005, e o número de capitalistas militantes do Partido Comunista Chinês (proprietários de empresas privadas) correspondia a 33,9% (!) em 2004. Em 2009 só um terço do PIB era produzido pelo sector estatal; isto é, a economia chinesa é actualmente predominantemente capitalista. Ora, a figura mostra precisamente uma continuada subida do IG (com algumas descidas episódicas) a partir de 1978 alcançando o nível de péssimo (0,47) em 2007, próximo do valor já mencionado para a China Imperial nos anos 1935-1936.
           


Evolução histórica do IG da China.
     
As implicações do que vimos até aqui, nomeadamente a diminuição da desigualdade social na sequência de revoluções que levam a um sistema superior de relações sociais de produção, parece-nos evidente. Estamos aqui apenas a analisar a evolução do IG, mas a evidência aumentaria se incluíssemos outros indicadores de desigualdade, como o nível de pobreza, e se analisássemos outros países. Por exemplo, em Cuba o IG era de 0,35 em 1962 (poucos anos depois da revolução cubana) e em 1978 já era de 0,27. Durante os escassos três anos da evolução socialista do Chile de Allende o IG desceu; só aumentou depois do golpe militar fascista, encabeçado por Pinochet, que derrubou o regime democraticamente eleito de Allende. O tão apregoado milagre económico de Pinochet (patrocinado por Milton Friedman) foi um milagre para os ricos. Na Venezuela de Chávez a taxa de pobreza (< 2 dólares de 2005/dia) passou de 42,8% para 26,5% de 1999 para 2011 e a taxa de extrema pobreza (< 1,25 dólares de 2005/dia) de 16,6% para 7%. O IG passou de 0,476 em 1999 para 0,453 em 2010 (dados do Banco Mundial). E podíamos continuar com os exemplos.
Inversamente, poderíamos apresentar muitos exemplos (para além da URSS, da China e do Chile que vimos acima) que uma regressão para um sistema inferior (retrógrado) de relações sociais de produção leva a um aumento da desigualdade social.
Passemos a Portugal. A evolução do IG no período de 1963 a 2011 é mostrada na figura abaixo. Não se nota nenhum período de quebra acentuada, mas sim uma diminuição diminuta com altos e baixos. A revolução do 25 de Abril foi apenas «meia revolução» e não deixou quaisquer marcas no IG, na desigualdade social. Não houve uma mudança de sistema sócio-económico. Era capitalismo monopolista antes do 25 de Abril e assim voltou a ser depois do golpe contra-revolucionário do 25 de Novembro. Constata-se um período de estagnação do IG oscilando entre de níveis de mau e níveis de medíocre, terminando em 2011 com um valor, também medíocre, de 0,342 que inflecte a tendência de descida. Veremos mais tarde o que nos dizem os dados para 2012. Os seguintes países europeus, que em 1963 partiram de um IG superior a 0,4, tal como Portugal, alcançaram em 2011 um IG de bom: Chipre (0,291), Itália (0,312), Malta (0,274). Só a Espanha apresenta uma evolução do IG parecida com a de Portugal: em 1963 o seu IG era de 0,406 e chega a 2011 com um IG de 0,34. A Grécia chegou a 2011 com um IG de 0,335, ligeiramente abaixo do de Portugal.


Evolução histórica do IG de Portugal.

[1] Para além das fontes já citadas no artigo anterior () obtivemos dados históricos dos seguintes dois trabalhos: Morrisson, C., Snyder, W. (2000) The income inequality of France in historical perspective, European Review of Economic History, 4, pp.59-83; Morrisson, C., Snyder, W. (2000) Les inégalités de revenues en France du XVIIIeme siècle à 1985. Revue économique, vol. 51, nº 1, pp. 119-154. Os dados destes trabalhos da distribuição de rendimentos em França nos séc. XVIII e XIX referem-se a estimativas para agregados familiares, mas para agregados em que o «chefe de família» pagava imposto, isto é, para «cidadãos activos». Os IG reais deviam ser, portanto, algo maiores do que os possíveis de calcular. Isto é reconhecido pelos autores. No primeiro trabalho os autores referem a escassez de dados para a França nos séc. XVIII e XIX em comparação com outros países. Contudo, não é essa a impressão que se fica a partir de um volume considerável de trabalhos por nós consultados e disponíveis na Internet. Entre muitos outros trabalhos consultados os seguintes pareceram-nos de interesse: Bourguignon, F., Morrisson, C. (2002) Inequality among World Citizens. The American Economic Review, vol. 92, nº4, pp. 727-744; Daniel Martin (2009) Les inegalités sociales en France (http://www.danielmartin.eu/Politique/I negalites-en-France.htm). Para o período de 1695 a 1779 os dados históricos disponíveis só permitem calcular um valor de IG constante em cada um dos seguintes sub-intervalos: [1695, 1704], [1705, 1747], [1748, 1759], [1760, 1779]. Acima de 1780 foram realizadas interpolações para certos períodos.
[2] Para além das fontes gerais já citadas foram também consultados os seguintes trabalhos: Morrisson C., Cazenave P. (1974) La redistribution des revenus en Grande-Bretagne, en France et aux Etats-Unis. Revue Economique, vol. 25, nº 4, pp.635-671; Atkinson A. B. (2010) Income inequality in historical and comparative perspective Opening Conference of the Gini Project; Crafts N. F. (2000) Development History. London School of Economics (working paper); Saito O. (2010) Income Growth and Inequality over the Very Long Run: England, India and Japan Compared. Slavic Research Center (SRC); Brewer M, Sibieta L, Wren-Lewis L (2008) Racing Away? Income inequality and the evolution of high incomes. The Institute for Fiscal Studies, Briefing Note no. 76. O trabalho de Lindert P. H. (1998) Three centuries of inequality in Britain and America. Dept of Economics, University of Califórnia, revised working paper no. 97-09, apesar da informação de interesse que reporta não esclarece se os dados de desigualdade se referem a famílias ou agregados familiares.
[3] Para os EUA foi consultado: De Navas-Walt C, Proctor BD, Smith JC (2011) Income, Poverty, and Health Insurance Coverage in the United States: 2010. US Census Bureau. O valor de 0,469 foi divulgado pelo US Census Bureau para 2010.
[4] Para além das fontes gerais e do GPIH Group, Institute of Governmental Affairs, UC Davis (http://gpih.ucdavis.edu/Datafilelist.htm#Europe), consultaram-se os seguintes trabalhos: Baten J et al. (2009) World income Inequality 1820-2000 (working paper); Flemming J. (2007)  Income Distribution, Economic Systems and Transition. In Handbook of income distribution, Volume 1Editors: A.B. Atkinson, François Bourguignon. North Holland; Alexeev M V, Gaddy C G (1993) Income Distribution in the USSR in the 1980s. Review of Income and Wealth, Ser. 39, no. 1, pp. 23-36; Kortchagina I e tal. (2005) Conditions de vie et pauvreté en Russie. Economie et Statistique, nº383-384-385; Numa Mazat (2008) A Rússia dos anos 90: crônica de um desastre anunciado. Coletivo Crítica Económica.
[5] Para além das fontes gerais, consultou-se: Rawski TG, Lillian M L (1992) Chinese History in Economic Perspective. University of Califórnia Press.
[6] Uma discussão extensa sobre este assunto encontra-se em: Rawski TG, Lillian M L (1992) Chinese History in Economic Perspective. University of California Press.
[7] Entre vários trabalhos consultados o que a seguir se indica apresenta dados detalhados referindo fontes fidedignas: Zheng H, Yang Y (2009) Chinese Private Sector Development in the Past 30 Years: Retrospect and Prospect. China Policy Institute, Univ. Nottingham (discusssion paper).
[8] As principais fontes são o Eurostat e o já mencionado repositório da Universidade do Texas.

sexta-feira, 12 de julho de 2013

Desigualdade Social: Portugal e os Outros (I)



Já abordámos parcialmente o tema da desigualdade social em Portugal em artigos de Outubro (http://revolucaoedemocracia.blogspot.pt/2012/10/os-99-e-os-1.html) e Novembro de 2012 http://revolucaoedemocracia.blogspot.pt/2012/11/os-1-do-topo.html, http://revolucaoedemocracia.blogspot.pt/2012/11/os-10-e-os-25-do-fundo.html). Neles focámos certas fatias de rendimento das famílias; das muito ricas em contraposição às muito pobres.
No presente artigo (e seguinte) iremos caracterizar a desigualdade social usando um único valor numérico, que caracteriza globalmente a distribuição de rendimento pelos diversos agregados familiares de um país. Esse valor numérico é chamado índice de Gini ([1]) e designá-lo-emos simplesmente por IG. É um valor entre 0 e 1, tanto mais elevado (próximo de 1) quanto maior for a desigualdade na distribuição de rendimento. IG=1 corresponde ao caso extremo e irreal de um único agregado familiar consumir todo o rendimento disponível de um país (desigualdade absoluta); IG=0 corresponde ao outro caso extremo e irreal de todos os agregados terem exactamente o mesmo rendimento (igualdade absoluta).
A utilização do IG para caracterizar a desigualdade de rendimento está muito vulgarizada, conforme o leitor pode verificar por consulta da Internet.
Desde já uma chamada de atenção: caracterizar a distribuição de rendimento por um único numero é bastante redutor. É impossível com um único número transmitir a informação de toda uma curva. Não obstante a redução severa de informação, o IG é útil para fins de comparação rápida e de revelação de evoluções temporais.
No que se segue começaremos por uma breve explicação de como se calcula o IG. O leitor, se desejar, pode saltar por cima dessa explicação delimitada por linhas de asteriscos.

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A figura seguinte mostra a distribuição dos rendimentos nos EUA em 2010. No eixo horizontal temos valores de percentagens do rendimento (anual) face ao rendimento máximo ([2]). No eixo vertical a percentagem de famílias que auferiram rendimento num certo intervalo (representado por uma barrinha cinzenta).

Distribuição do rendimento nos EUA em 2010 com os quintis assinalados.

Inspeccionando a figura, vê-se, por exemplo, que cerca de 2% de agregados familiares dos EUA auferiram (em 2010) rendimentos num pequeno intervalo em torno de um rendimento cujo valor é de 27,6% do máximo.
Na figura colocámos quatro traços verticais, a tracejado, que dividem toda a gama de rendimentos em 5 intervalos (de Q1 a Q5) de igual percentagem total de agregados familiares: os quintis, assim chamados por representarem 1/5 do total de agregados. Isto é, se o leitor se desse ao trabalho de somar as áreas das barras cinzentas dentro de cada um dos cinco intervalos iria encontrar áreas totais aproximadamente iguais: 20% do total de agregados familiares. A tabela abaixo mostra que percentagem do rendimento total (% PIB, [3]) corresponde a cada quintil, com o último quintil (80 a 100%) subdividido em duas fatias: de 80 a 95% e de 95% a 100%.
                % Famílias            % PIB
                     0-20                      3,3
                   20-40                      8,5
                   40-60                    14,6
                   60-80                    23,4
                   80-95                    29,9
                 95-100                    21,3
A figura abaixo mostra uma forma conveniente de representar os dados da tabela. Segundo o eixo horizontal dispõem-se os valores das percentagens acumuladas de agregados familiares com rendimentos crescentes. Segundo as ordenadas, as correspondentes percentagens acumuladas de PIB. (Nos eixos do gráfico optou-se por representar as percentagens em notação decimal.) Obtém-se um gráfico em «escada» que se pode ler assim: 20% dos agregados familiares (de mais baixos rendimentos) «comem» 3,3% do PIB, 40% dos agregados (idem) «comem» 11,8%  (3,3% + 8,5%) do PIB, etc., 95% dos agregados (idem) «comem» 78,7% do PIB, até que por fim com o consumo brutal dos últimos 5% de agregados mais ricos -- um consumo de 21,3% -- atinge-se os 100% do PIB ([3]).

Distribuição acumulada do rendimento nos EUA em 2010 (traço preto cheio) com área sombreada usada no cálculo do índice de Gini.

Ligando os «degraus» da «escada» obtém-se uma certa curva (a tracejado na figura). Se todas as fatias de agregados familiares «comessem» a mesma percentagem do PIB, a curva a tracejado seria simplesmente a recta diagonal a vermelho: todas as fatias teriam a mesma contribuição para o valor acumulado. O afastamento entre a curva a tracejado e a curva a vermelho -- logo, a área sombreada -- mede, portanto, o afastamento da distribuição real de rendimento face ao ideal de uma distribuição igualitária. A distribuição de máxima desigualdade seria aquela em que uma única pessoa consumiria todo o PIB, correspondendo à «curva» a azul e a uma área de valor ½ .
O índice de Gini é definido como o dobro da área sombreada. Varia, portanto, entre 0 (mínimo de desigualdade para a diagonal a vermelho) e 1 (máximo de desigualdade para a «curva» a azul). No caso da figura, IG = 0,45.
No cálculo do IG não é obrigatório usar os quintis como na figura acima. Quantos mais degraus a «escada» tiver, mais suave será a curva definida pelos degraus e melhor estimado estará o IG. A figura abaixo mostra curvas de rendimentos acumulados em percentagem do PIB para Portugal e no período 1994-2001. Vemos que usando decis (10% de agregados familiares) a curva é mais suave. Neste caso: IG = 0,41 usando quintis e IG = 0,44 usando decis.



Distribuição acumulada do rendimento em Portugal, 1994-2001: a) quintis (IG = 0,41); b) decis (IG = 0,44).

Os países diferem muito quanto ao valor de IG. Por exemplo, a Namíbia, apesar de não ser dos países menos desenvolvidos, tinha em 2003 (ver figura abaixo) o índice de Gini mais alto do mundo: 0,74! (Pode-se argumentar que a Namíbia tem etnias específicas -- hotentotes, bosquímanos, herrero -- cujos padrões de rendimento são necessariamente baixíssimos; contudo, tal justificação não parece convincente dado que estas etnias representam menos de 9% da população.) No outro extremo, temos a Suécia com um dos mais baixos IG do mundo: 0,24 em 2008, conforme mostra a figura abaixo. Portugal, país desenvolvido segundo o Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) da ONU, tinha em 2008 um IG = 0,35. O Uganda, país subdesenvolvido, tinha em 2009 o IG = 0,44. Quer o IG de Portugal quer o do Uganda eram melhores que o dos EUA em 2010! ([4].)

IG de dois países: a) Namíbia, 1993 (IG = 0,74); b) Suécia, 2008 (IG = 0,24).

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Na tabela abaixo apresentamos os valores dos índices de Gini, ordenados por ordem decrescente, de 124 países. Estes valores dizem respeito ao período de 2005 a 2008, com excepção de 12 países em que se apresentam os valores mais recentes que encontrámos: para 9 deles os valores de IG referem-se a 2005 e 2004; para os restantes três o IG refere-se aos anos de 2001, 1998 e 1995 ([5]). Infelizmente os valores de IG não estão disponíveis para todos os anos; porém, o IG tende a não variar muito num período de poucos anos, sendo tais variações de pouca importância para os nossos fins.
A tabela inclui também os seguintes dados: a percentagem da população abaixo do que é estabelecido a nível de cada país como o limiar de pobreza, PBRZ ([6]); o valor do índice de desenvolvimento humano, IDH ([7]). Todos os valores estão representados em notação decimal como números no intervalo de 0 a 1 (e não como percentagens). O IDH foi criado e desenvolvido por economistas no âmbito do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) e do Relatório de Desenvolvimento Humano (RDH) em 1990. Para além do PIB per capita (em PPC, [8]), o IDH toma também em conta os seguintes critérios (a partir do ano 2010):
·                 O acesso ao conhecimento: anos médios de estudo e anos esperados de escolaridade.
·                 A expectativa de vida ao nascer. Este indicador reflecte as condições de saúde e de salubridade.
Os valores do IDH estão codificados em quatro escalões (os valores usados na tabela são os de 2011): 1 = Baixo Desenvolvimento (43 países da tabela); 2 = Médio Desenvolvimento (37 países); 3 = Alto Desenvolvimento (37 países); 4 = Muito Alto Desenvolvimento (38 países).

Indicadores de desigualdade social de 124 países. A tabela está ordenada por ordem crescente de IG.

Os escalões de IDH estão codificados da seguinte forma:


País
Gini
PBRZ
IDH
País
Gini
PBRZ
IDH
País
Gini
PBRZ
IDH
País
Gini
PBRZ
IDH
SVN
0,234
0,12
0,92
CAN
0,315
0,09
0,97
ISR
0,380
0,24
0,93
USA
0,450
0,13
0,95
SVK
0,237
0,21
0,87
POL
0,320
0,11
0,88
LBR
0,382
0,80
0,36
JAM
0,455
0,10
0,77
SWE
0,240
0,07
0,96
CHE
0,320
0,05
0,96
CMR
0,389
0,40
0,51
MOZ
0,457
0,55
0,37
CZE
0,247
0,09
0,90
TJK
0,326
0,54
0,68
MWI
0,390
0,52
0,46
MYS
0,461
0,08
0,82
DNK
0,251
0,12
0,95
BGD
0,332
0,45
0,52
MLI
0,390
0,47
0,39
RUS
0,462
0,11
0,81
NOR
0,251
0,04
0,97
BDI
0,333
0,67
0,38
MUS
0,390
0,10
0,80
ARG
0,463
0,23
0,86
HUN
0,252
0,09
0,88
GRC
0,334
0,20
0,95
TUR
0,390
0,22
0,80
URY
0,463
0,22
0,86
AUT
0,262
0,06
0,95
AZE
0,337
0,16
0,76
SEN
0,392
0,51
0,50
SLV
0,468
0,40
0,75
FIN
0,263
0,13
0,95
JOR
0,338
0,13
0,77
GIN
0,394
0,44
0,42
MDG
0,472
0,69
0,53
BLR
0,272
0,06
0,82
GBR
0,339
0,14
0,94
BFA
0,395
0,46
0,37
NPL
0,472
0,28
0,53
BEL
0,275
0,15
0,95
LTU
0,340
0,20
0,87
TCD
0,401
0,55
0,39
COG
0,473
0,50
0,62
UKR
0,275
0,28
0,79
TGO
0,344
0,62
0,48
LKA
0,403
0,15
0,74
KEN
0,482
0,46
0,53
NLD
0,276
0,11
0,96
ALB
0,345
0,16
0,81
NIC
0,405
0,46
0,70
CRI
0,489
0,20
0,85
AFG
0,278
0,39
0,40
IND
0,346
0,27
0,61
THA
0,405
0,09
0,79
PAN
0,489
0,33
0,83
HRV
0,280
0,14
0,86
NER
0,346
0,60
0,37
MAR
0,409
0,17
0,65
DOM
0,490
0,38
0,77
BGR
0,282
0,17
0,83
DZA
0,353
0,23
0,75
QAT
0,411
0,00
0,90
PER
0,490
0,36
0,79
SCG
0,282
0,06
0,82
MDA
0,353
0,26
0,72
GEO
0,413
0,43
0,76
ZWE
0,500
0,52
0,38
FRA
0,292
0,13
0,96
VNM
0,356
0,15
0,72
TUN
0,414
0,06
0,76
ECU
0,506
0,35
0,81
KOR
0,292
0,15
0,93
PRT
0,358
0,18
0,90
GAB
0,415
0,33
0,73
GTM
0,507
0,55
0,70
KAZ
0,293
0,15
0,81
IDN
0,359
0,18
0,73
CIV
0,415
0,42
0,43
CHL
0,521
0,14
0,87
ETH
0,298
0,39
0,39
JPN
0,358
0,16
0,96
IRN
0,415
0,18
0,78
PRY
0,521
0,38
0,75
IRL
0,299
0,06
0,96
ROU
0,360
0,14
0,83
MEX
0,423
0,18
0,84
HND
0,525
0,60
0,71
PAK
0,300
0,22
0,56
BIH
0,362
0,19
0,80
SLE
0,423
0,66
0,33
LSO
0,525
0,57
0,50
DEU
0,302
0,14
0,94
MNG
0,365
0,35
0,72
CHN
0,425
0,03
0,76
RWA
0,531
0,52
0,43
AUS
0,305
0,14
0,97
LAO
0,367
0,40
0,61
PHL
0,426
0,26
0,75
ZMB
0,546
0,66
0,45
EGY
0,308
0,22
0,72
UZB
0,367
0,26
0,70
UGA
0,426
0,31
0,49
BRA
0,563
0,24
0,81
ARM
0,309
0,39
0,78
KGZ
0,373
0,40
0,69
GHA
0,428
0,29
0,53
BOL
0,563
0,60
0,72
EST
0,309
0,14
0,87
TZA
0,376
0,33
0,50
NGA
0,438
0,55
0,50
CAF
0,563
0,62
0,35
IRQ
0,309
0,23
0,57
LVA
0,377
0,08
0,86
MKD
0,442
0,25
0,81
COL
0,572
0,42
0,79
ITA
0,310
0,13
0,95
YEM
0,379
0,35
0,57
COD
0,444
0,71
0,36
SYC
0,658
0,18
0,84
ESP
0,313
0,20
0,95
KHM
0,44
0,31
0,58
VEN
0,448
0,33
0,83
ZAF
0,674
0,23
0,67

Vemos que o IG varia nestes países entre um mínimo de 0,234 (Eslovénia) e um máximo de 0,674 (África do Sul). Metade dos países tem IG superior a 0,38. A figura abaixo mostra a distribuição de IG para os 124 países ([9]). 
Distribuição do índice de Gini para 124 países no período 2005-2008.

Poder-se-á perguntar qual o intervalo típico de variação do IG para o período de 2005-2008. A resposta depende do que se entende por típico. Um entendimento razoável corresponde a dizer que são típicos os países com IG nem muito abaixo nem muito acima de 0,38, o valor médio. Consideremos o «muito» como significando um quarto do total de países. Ora, 25% dos países com menor IG têm este indicador abaixo de 0,32; no extremo oposto, 25% dos países com maior IG têm este indicador acima de 0,45. Por outras palavras, o IG de metade dos países igualmente afastado de valores extremos corresponde ao intervalo de 0,32 a 0,45. Tal como é feito para o IDH podemos usar esta informação para escalonar o IG em quatro escalões: IG inferior a 0,32 é considerado «bom»; entre 0,32 e 0,38 como «medíocre»; entre 0,38 e 0,45 como «mau»; finalmente, um IG superior a 0,45 é «péssimo».
*    *    *
Podemos agora tirar as seguintes conclusões:

1 - De acordo com os valores da tabela os EUA e a Federação Russa têm um IG péssimo (respectivamente 0,45 e 0,46), semelhante ao do Império Romano ([10]), mas sem entrar em conta com o rendimento dos escravos, os quais como «instrumentos falantes» por definição não tinham rendimento, embora constituíssem qualquer coisa como um quarto da população. A China tem um mau IG (0,425); o Reino Unido e Portugal um IG medíocre (respectivamente 0,34 e 0,36); a França tem um bom IG (0,29). De todos os países da Europa, com excepção da Letónia, Portugal é o país com maior IG.

2 - O Índice de Desenvolvimento Humano (grosso modo, o estado civilizacional) de um país revela pouco da sua desigualdade social.
A correlação ([11]) do IG com o IDH é baixa (-0,32) embora estatisticamente significativa ([12]); é, assim, possível encontrar muitos países com um bom índice de desenvolvimento humano mas elevada desigualdade social e vice-versa. Por exemplo, o Chile é do escalão 4 de IDH mas tem um IG péssimo (0,52), enquanto o Afeganistão é do escalão 1 de IDH mas tem um bom IG (0,28). Para além do Chile, note-se no escalão 4 a péssima posição dos EUA e da Argentina. Outros países do escalão 4 com IG elevado (maior que o de Portugal em 2008) são o Japão, Israel e o Qatar.
Muitos países da América Latina são do escalão 3 e não primam por um bom IG. Particularmente mal posicionados (com elevada desigualdade social) estão o Brasil, a Bolívia e a Colômbia. Os melhores posicionados são o México e a Venezuela.
Vários países do Leste Europeu são do escalão 3 e têm um bom IG, como a Bielorússia e a Ucrânia.
Quase todos os países africanos são do escalão 1. O de melhor IG é o Níger (0,346). A República Centro Africana e a África do Sul têm o pior IG (0,563, 0,674).

3 - PBRZ está moderadamente correlacionada com IG ([13]): 0,42. Isto não é muito surpreendente dado que PBRZ é definida em termos da distribuição de rendimento. É aquilo que se chama um indicador relativo de pobreza (relativo à distribuição de rendimento).
Na figura abaixo cada país é representado por um ponto, com o valor de IG segundo o eixo horizontal e o de PBRZ segundo o eixo vertical ([14]). A tendência de associação entre IG e PBRZ é patente. Há, contudo, situações muito diversas. Por exemplo, a Libéria corresponde a um ponto no topo de PBRZ, com elevado PBRZ (80%); contudo, o seu IG tem um valor módico (0,38). Para um valor próximo deste IG é possível encontrar países com PBRZ muito baixo, como o Qatar com PBRZ = 0 e IG = 0,41. Portanto, o Qatar -- país rico, com grandes recursos petrolíferos --, do ponto de vista de desigualdade social está ao nível da Libéria!; só que o IG da Libéria se reporta a um panorama geral de muitíssimos baixos rendimentos e, portanto, de uma percentagem de pobreza elevada. Também para o mesmo nível de PBRZ se encontram países com variados IG. Exemplo: África do Sul e Eslováquia têm valores próximos de PBRZ (0,18, 0,21) e díspares de IG (0,67, 0,24).
Se em vez do PBRZ, fixado por cada país relativamente à respectiva distribuição de rendimento, usássemos um indicador absoluto de pobreza -- por exemplo, 2 dólares/dia em paridade de poder de compra ([15]) -- obteríamos uma baixa correlação entre este índice e o IG, não significativa em termos estatísticos. Quer dizer, a tendência que já se vislumbra na figura abaixo (situações muito diversas de IG e PBRZ) sairia drasticamente reforçada se usássemos um indicador absoluto de pobreza: desigualdade social e pobreza são coisas diferentes. Só são parecidos quando se usa o indicador «politicamente correcto» de pobreza relativa. (Ver a crítica que já fizemos a indicadores relativos de pobreza -- definidos, por exemplo, em termos da mediana da distribuição de rendimento -- bem como à estranha visão do Eurostat sobre o assunto, em http://revolucaoedemocracia.blogspot.pt/2012/11/os-10-e-os-25-do-fundo.html  tendente a exibir uma imagem da Europa sem pobreza).

Os 124 países representados em termos de IG e PBRZ.

[1] Proposto pela primeira vez no trabalho do estatístico italiano Corrado Gini, (1912) Variabilità e mutabilità, C. Cuppini, Bologna. O índice de Gini pode ser usado para caracterizar outras distribuições, embora aqui só nos interesse aplicá-lo à distribuição de rendimento.
[2] Na realidade não se trata da razão face ao rendimento máximo anual, mas face ao valor de 380 mil dólares. O rendimento máximo em 2010 pertenceu a Bill Gates e atingiu o espantoso valor de 3,71 biliões de dólares. Acima dos 380 mil dólares existe na curva de distribuição uma larga cauda de altíssimos rendimentos a que o IG é «cego». Eis um exemplo de como o IG não mede toda a complexidade da situação.
[3] Nem toda a riqueza contabilizada no PIB é consumida pelas famílias. A análise do PIB pela óptica do consumo é constituída pela soma de três parcelas: remunerações do trabalho (RT), excedente bruto de exploração (EBE), Impostos, incluindo subsídios sobre a produção e importações (IP). O EBE corresponde às mais-valias da exploração económica do trabalho e ao excedente sobre a remuneração do trabalho no caso de trabalho improdutivo (já falámos destes temas em artigos anteriores; ver nomeadamente «Classes Sociais I e II, Maio 2013). Para além do que é consumido pelos agregados familiares, representando as várias classes sociais, é preciso ter em conta que do EBE provém a formação de capital fixo (máquinas, edifícios, etc.) e, do IP, o Estado, além de pagar aos seus funcionários, retira os montantes que necessita para construir escolas, hospitais, equipamentos de autarquias, estradas, etc. Em suma, nem toda a riqueza criada e contabilizada no PIB entra como rendimento dos agregados familiares. Quando no texto se diz «% PIB» deve ler-se «% da fracção do PIB correspondente ao consumo dos agregados familiares».
[4] Vários artigos, livros e meios de comunicação oriundos dos EUA se têm referido à desigualdade social do país, colocando inclusive a questão de se os EUA não se estarão a transformar num país do Terceiro Mundo. Encontra-se um número elevado de referências na Internet sobre este assunto. Para dar alguns exemplos, os EUA estavam em 2010 (segundo um artigo do Huff Post) na 47.ª posição em mortalidade infantil (pior, por exemplo, que Cuba), em 50.ª posição em esperança de vida (pior, por exemplo, que a Bósnia) e gastavam uma percentagem do PIB em educação semelhante à da Etiópia.
[5] Para 25 países europeus usaram-se os dados de 2008 do Eurostat. Para os outros países a fonte de dados mais usada (79 em 99 países) foi o repositório do Banco Mundial (http://data.worldbank.org/indicator/ SI.POV.GINI). Usaram-se também dados do trabalho Ortiz,I., Cummins, M. (2011) A Rapid Review of Income Distribution in 141 Countries, UNICEF para 14 países e do UNU-WIDER para 3 países. Consultou-se também: University of Texas Inequality Project (http://utip.gov.utexas.edu/data. html); NDATA Deininger, Klaus and Lyn Squire, "A New Data Set Measuring Income Inequality", The World Bank Economic Review, 10(3): 565-91, 1996; relatórios da UNDP-United Nations Development Programme; EarthTrends, World Resources Institute. Recorreu-se a publicações específicas para alguns países.
[6] Para além da wikipédia consultou-se a base de dados do Banco Mundial e publicações específicas de alguns países.
[7] Valores de 2006. A fonte de referência é: Human Development Indices, Human Development Report 2006, UNDP-United Nations Development Programme.
[8] O índice do rendimento no cálculo do IDH mede o afastamento do PIB per capita face a um valor mínimo (100$) e um valor máximo (40.000$) usando logaritmos, de forma a impor uma subida constrangida do PIB (detalhes em http://hdr.undp.org/en/statistics/data/calculator). A partir de 2011 o IDH passou a usar o PNBpc em vez do PIBpc.
[9] O chamado histograma da distribuição (de IG por países).
[10] O IG do Império Romano, segundo as melhores estimativas, andaria entre 0,42 e 0,44: Scheidel, W., Friesen, S. (2010). The Size of the Economy and the Distribution of Income in the Roman Empire.  Journal of Roman Studies, 99. Este estudo baseou-se numa grande variedade de documentos. Os valores de IG reportam-se a 150 D.C.
[11] A correlação é uma medida de associação entre duas variáveis, calculada pelo produto dos desvios de cada variável face à respectiva média. Este produto é dividido por um termo de normalização de forma a obter valores entre -1 e 1; em ambos estes casos as variáveis estão totalmente relacionadas entre si, mas no primeiro caso (-1) quando uma aumenta a outra diminui, enquanto no segundo (1) ambas aumentam ou diminuem conjuntamente.
[12] «Estatisticamente significativa» significa que a probabilidade de encontrar o valor em causa e nas condições em causa devido ao acaso é muito baixa. Concretamente, no caso presente, a probabilidade de encontrar, por puro acaso, uma correlação de -0.32 entre duas variáveis respeitantes a um conjunto de 124 países é muito baixa: 0,0003.
[13] A correlação de 0,42 entre IG e PBRZ é um valor estatisticamente muito significativo.
[14] O diagrama de dispersão de IG e PBRZ.
[15] Note-se que é de esperar que o limiar de pobreza usado por cada país para definir PBRZ obedeça a considerações de «politicamente correcto». Uma definição imparcial teria de fixar um certo valor de rendimento mínimo per capita (por exemplo, 1,5 ou 2 dólares por dia) e em PPC (paridade de poder de compra). Dados de pobreza segundo esta perspectiva imparcial existem, mas são mais escassos (muitos países não fazem as contas segundo esta perspectiva).