sábado, 29 de dezembro de 2012

A Economia convencional: uma pseudociência (Vb)

NOTA:
Por lapso, publicámos a parte VI antes da publicação da secção final, Vb, da parte V.
Aqui fica a correcção.

Vimos no artigo anterior (Va) como a economia convencional, neoclássica, trata a mercadoria «trabalho» como qualquer outra mercadoria: o preço da mercadoria – o salário – é fixado através da «lei da oferta e da procura»; isto é, pela intersecção das duas curvas «bem comportadas», uma descendente e outra ascendente. Se para mercadorias normais as assunções dos neoclássicos para chegar às ditas curvas eram já irrealistas, no caso do trabalho o irrealismo é ainda maior: os neoclássicos assumem, na sociedade capitalista, o trabalhador tão livre nas suas decisões como os próprios capitalistas! Assumem, inclusive, que o trabalhador é livre de escolher as horas de ócio que pretende!
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A teoria neoclássica da Economia convencional extrai de tudo isto várias conclusões políticas. Uma delas é a da futilidade de fixar um salário mínimo por legislação. O argumento é o seguinte: a imposição de um salário mínimo irá reduzir a procura de trabalhadores porque implicará um número de trabalhadores inferior ao imposto pela receita marginal (ver figura 1 do artigo anterior). Por outro lado, um salário mínimo implicaria (na curva da oferta) um maior número de horas de trabalho do que aquele que os trabalhadores estão dispostos a trabalhar. Os dois efeitos combinados levariam ao aumento do desemprego involuntário. Por muito boas que sejam as intenções sociais não é possível «vencer o mercado»: o mercado é que ditará sem apelo nem agravo qual a distribuição de rendimento e a taxa de desemprego. Tudo isto por causa da «lei» da procura e oferta de trabalho.
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Mas, será assim? Na realidade, mesmo pondo de lado o extremo irrealismo da construção teórica da «lei» da procura e oferta de trabalho, que apontámos, mesmo mantendo-nos dentro da lógica neoclássica, há vários problemas que totalmente invalidam essa teoria. Apontamos aqui quatro deles:
1 – A curva da oferta pode ser descendente
De facto, é tão fácil desenhar curvas de indiferença que resultam numa curva da oferta ascendente como outras que resultam numa curva da oferta descendente. A Figura 1 mostra uma situação em que a oferta é descendente. A lógica subjacente a este comportamento (supondo que o trabalhador é livre de escolher) é esta: com maior salário horário não preciso de trabalhar tantas horas para ter o rendimento que desejo.
 Fig. 1

Ao nível do mercado, tal como já vimos (Parte IIb) a curva da oferta de trabalho pode ter qualquer forma, podendo assim originar vários pontos de equilíbrio (vários pontos de intersecção com a curva da procura). Não sendo possível estabelecer, sem ambiguidades, um ponto relacionando a oferta de trabalho (dos trabalhadores) com a procura de trabalho (das firmas), a implicação disso é que a teoria económica convencional não consegue provar que o nível de desemprego é regido pelo mercado.
Para além disso, na situação da oferta de trabalho descendente teremos uma situação de mercado instável (ver figura 2), parecida com o exemplo de mercado instável da Parte IIa.

 Fig. 2

Inicialmente temos n1 trabalhadores com salário s1. Se a procura aumentar ligeiramente, dar-se-á uma progressão para n2 trabalhadores mas com um salário inferior: s2. Mas, a este nível salarial, a oferta é de n3 trabalhadores (mais trabalhadores ou mais horas de trabalho para obter um rendimento desejável), com n3 >  n2. Sabendo que n3 -  n2 estão no desemprego, o salário da procura pode baixar de novo, passando a estar n4 trabalhadores desempregados (e/ou subempregados), etc. A situação resvala para desemprego galopante que só legislação de salário mínimo pode estabilizar; precisamente a medida que os neoclássicos puros rejeitam.
2 – Trabalho e «liberdade»
Toda a teoria neoclássica assenta no pressuposto de que o trabalhador tem inteira liberdade de trabalhar as horas que quer. Tem tanta liberdade como o capitalista! Se não trabalha (com o mercado competitivo a funcionar em pleno) é porque prefere o ócio. Para os neoclássicos tudo tem a ver com as curvas de indiferença no plano ócio-rendimento. Acontece, porém, que estas duas variáveis não são independentes. De facto, os neoclássicos esquecem que para obter «prazer» do ócio é preciso rendimento! Se não há rendimento, para que serve o ócio? Só se for para dormir como fazem os sem-abrigo.
Pode-se argumentar que alguns trabalhadores têm bens próprios (terras, por exemplo) de que podem tirar rendimentos ou até capitais com que podem procurar singrar como capitalistas (a história só regista os raros exemplos bem sucedidos). Mas a esmagadora maioria dos trabalhadores não tem escolha possível; não tem a suposta «liberdade». Em vez da escolha entre ócio e rendimento só lhes sobra a escolha entre poder trabalhar ou ficar na penúria.
3 – Oferta e procura não são independentes
Aplicam-se aqui os mesmos argumentos já referidos na Parte IV que remontam aos trabalhos do economista Piero Sraffa. É impossível desenhar curvas de oferta e procura independentes: uma variação da oferta terá efeitos na distribuição de rendimento e, portanto, na procura. Basta lembrar que com menores salários e mais desemprego o consumo é menor, implicando uma diminuição da produção e consequente diminuição na procura de trabalhadores.
4 – Mercado não competitivo
Na prática não existem mercados perfeitamente competitivos. Neste caso, a ideia de que os trabalhadores recebem o valor da sua contribuição marginal para a produção, cai pela base. Os economistas neoclássicos concedem que, nesta situação, os rendimentos dos trabalhadores não são só determinados pela sua produção marginal mas também pelo poder relativo de negociação entre patrões e trabalhadores. Mas isto é uma justificação pela qual os trabalhadores se unem em sindicatos, precisamente aquilo que os neoclássicos rejeitam (o mercado deveria supostamente encarregar-se de tudo).
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Steve Keen menciona também a questão da banca, que tem influência no mercado de trabalho e que os neoclássicos não consideram. Refere ainda a que ponto chega o disparate dos economistas neoclássicos, citando e comentando uma passagem de um livro de texto académico (André Mas-Colell, Microeconomic Theory) em que o autor, para fazer vingar a ideia de agregar curvas individuais de procura numa curva de mercado (ideia cuja desmontagem analisámos nas Partes IIa e IIb), um tanto em desespero de causa, fundamenta a dita ideia apelando ao leitor para imaginar um «ditador benevolente» que ordena as coisas por forma a que a curva deva ser como se deseja!
E fundamentam-se políticas em todo o mundo capitalista com base nesta pseudo-ciência!

sexta-feira, 28 de dezembro de 2012

A Primavera Árabe. Parte II (Preâmbulo, Tunísia)

II – Da Dominação Colonial à Independência
Em meados do século XIX o império otomano estava em total decadência. A rapacidade dos senhores feudais turcos e guerras contínuas com províncias sublevadas tinha arruinado a agricultura e a economia, gerado fomes e epidemias. As consequências a nível militar não se fizeram esperar: o alistamento de tropas regulares diminui; o corpo de janízaros, que constituía uma ameaça permanente para os senhores feudais e mesmo para o próprio sultão, é extinto em 1826; o armamento das tropas torna-se obsoleto pelos padrões ocidentais. As potências europeias, em especial a Inglaterra e a França, aproveitam para se intrometer nas disputas autonomistas das províncias, fornecendo aos autonomistas apoio militar em troca de condições especiais no comércio e na economia em geral. A Inglaterra é a grande potência imperial do século XIX e princípios do século XX. A França constitui também uma potência de respeito. A burguesia da Itália, depois da unificação em 1861, segue nas peugadas da Inglaterra e França, qual chacal (como dizia Bismark) na recolha de «restos».
Um aspecto importante e distintivo do colonialismo europeu do mundo árabe é que as potências colonialistas procuraram sempre utilizar os bons serviços dos senhores feudais locais. Preservaram, até onde era do seu interesse, o modo de produção feudal e as relações feudais. Como consequência, o capitalismo no mundo árabe teve uma evolução muito lenta ([1]). Além disso, o facto de que o clero muçulmano era também peça do sistema feudal (possuía vastos domínios onde construía as mesquitas, ermitérios e escolas corânicas), conjugado com a ausência de uma ruptura com o sistema feudal, como aconteceu na Europa, levou a que quase todas as sublevações contra os opressores coloniais fossem enquadradas por religiosos e justificadas em termos religiosos. O mundo árabe não conheceu nada de parecido com a Grande Revolução Francesa, criadora da instituição de um estado laico ([2]). Não tinha burguesia suficientemente forte para isso. Ao invés, a submissão e associação da burguesia autóctone aos invasores estrangeiros, no saque das riquezas nacionais, levou os oprimidos árabes, os mais pobres dos pobres, a combaterem sob a bandeira de Alá os «modernismos» importados. Tal característica subsistiu até aos dias de hoje.
A colonização europeia do mundo árabe (ainda quando oficialmente denominadas províncias do império otomano) seguiu quase sempre uma mesma via evolutiva: a penetração progressiva do capital estrangeiro seguida da progressiva escravização financeira, imposta por pagamentos de dívidas às potências imperiais.
A partilha do mundo árabe foi uma das causas da 1.ª guerra mundial. As independências só surgiram depois da 2.ª guerra mundial.

Tunísia
Escravização financeira
A colonização da Tunísia foi levada a cabo pelos franceses, que já tinham penetrado em 1830 na vizinha Argélia do modo mais brutal (pela mão dos mesmos generais que massacraram dezenas de milhares de trabalhadores parisienses nas revoluções de 1848 e da Comuna de Paris em 1871).
Quando a França invadiu a Argélia em 1830 o Bei ([2]) e outros senhores feudais da Tunísia alegraram-se com o facto, devido a rivalidades com os feudais da Argélia. A França, aproveitando o pretexto, declarou hipocritamente a sua intenção de defender a autonomia da Tunísia. Em resposta, em 1836, a Turquia enviou uma armada à Tunísia; a França enviou uma armada contra os turcos que acharam preferível retirar sem combate. A França entrou então na Tunísia em 1837, apesar de objecções inglesas (não desejavam ver um território sob domínio francês próximo de Malta). O Bei procurou manobrar entre franceses e ingleses e modernizar o país e o exército.
Para as suas reformas o Bei contraiu empréstimos e firmou contratos junto da França e também da Inglaterra. Os empréstimos foram dissipados pelos cortesãos e senhores feudais. O exército continuou um exército de parada: as armas compradas aos europeus não disparavam, as munições não explodiam e os barcos afundavam-se. Em 1858 uma nova constituição era promulgada a qual seguia os ditames de «modernização» da Turquia, entre os quais a abertura ao capital estrangeiro. A Inglaterra correu a construir o caminho-de-ferro entre Tunis e Goleta. A França correu a construir o telégrafo, a apropriar-se de concessões latifundiárias e de minas. O dinheiro vinha dos bancos ingleses e franceses.
Em 1862 a dívida da Tunísia ascendia a 28 milhões de francos (MF), qualquer coisa como 60 milhões de euros de 2006 e correspondendo a cerca de 41% do PIB tunisino ([4]). Pode não parecer muito, actualmente, mas na época era considerado um montante elevado de dívida. Um consórcio de bancos franceses propôs um empréstimo que o Bei aceitou (em Março de 1863; houve suborno de ministros): 35MF. Destes, 9,8MF foram deduzidos a título de compensação pela dívida já existente e 20MF foram pagos em espécie: produtos franceses em stock! O Bei só recebeu 5,6MF. E isto «tudo» com a obrigação da Tunísia pagar 63MF (28MF + 35MF + um adicional de 13MF de comissões!) em 15 anos.
No espaço de um ano a dívida da Tunísia subiu de 41% do PIB para 93% do PIB!
Para satisfazer a dívida o Bei aumentou o imposto fixo (dito de capitação), igual para todos. Rebentaram revoltas populares, rapidamente esmagadas. Em 1865 o Bei contrai novo empréstimo: 25 MF. A «história» dos empréstimos repte-se até que em 1867 a dívida já ascendia a 125 MF, 175,5% do PIB! O Bei aceitou então uma Comissão Financeira Internacional dos banqueiros europeus, com poderes para controlar as receitas das alfândegas, e comprometeu-se a pagar por ano o correspondente a metade do orçamento de estado.
O protectorado francês
Isto não era suficiente para os apetites dos capitalistas franceses. Em 1881, aproveitando como pretexto um incidente fronteiriço (e uma situação internacional favorável do ponto de vista de partilha de interesses imperiais), um exército francês de 30 mil homens invadiu a Tunísia e entrou em Tunis. Oficialmente para impor ordem no país e nas suas finanças. O Bei não ofereceu resistência e aceitou um tratado de submissão à França, instituindo um «protectorado francês» (9 de Junho de 1881) que durou até 1956. Tiveram lugar insurreições populares no sul do país, prontamente esmagadas.
Em 1884 a Comissão Financeira Internacional foi extinta e todos os poderes de gestão financeira passaram para o governador-geral francês. Todas as forças militares e administração geral passaram a ser da competência do governador-geral, que exercia o poder nas províncias através de delegados franceses; a nível distrital a administração servia-se de kaids [5] tunisinos formalmente dependentes do Bei mas de facto dependentes do governador francês distrital e geral. A população rural, de facto, raramente via uma cara francesa e tinha a ilusão de que quem governava era o Bei. O poder estava todavia totalmente nas mãos do governador-geral, representante dos interesses dos banqueiros e grandes capitalistas franceses.
Note-se que a França não destruiu o sistema feudal tunisino, mas usou-o em seu próprio benefício. Os senhores feudais passaram a aliados dos franceses; o Bei recebeu 1,25 MF por ano como recompensa por ter atraiçoado o seu país.
Em 1885 foi decretada uma lei sobre a propriedade da terra, no âmbito da qual os franceses criaram um Tribunal da Terra e decretaram várias determinações legais (como a obrigação de provar com documentos exactos a pertença das terras) que «legalizaram» a apropriação forçada a favor de colonos franceses das terras individuais de proprietários árabes, comunais (das tribos) e das irmandades religiosas (waqfs). O esquema era simples: o governador-geral, em representação do «protectorado», estabeleceu um «fundo» de colonização das terras compradas em grandes lotes por banqueiros de Paris que nunca puseram os pés na Tunísia. Estes «proprietários tunisinos» compravam a baixo preço as terras do «fundo» e vendiam-nas a preços mais elevados a agricultores franceses que emigravam para a Tunísia. Enormes companhias foram criadas em França para a gestão deste saque. O escândalo foi de tal ordem que jornalistas e outras personalidades denunciaram o abuso; quase todos foram silenciados por suborno, através de ofertas chorudas de terras na Tunísia.
No saque de terras participaram também italianos que emigraram massivamente para a Tunísia instigados pelo seu governo.
O número de colonos cresceu rapidamente: 10.000 em 1891, 46.000 em 1911 e 144.000 em 1945. ([6]) As terras pertencentes a europeus eram as melhores, as de maior dimensão (média de 250 ha contra uma média de 6 ha para os tunisinos), as que usavam métodos mais avançados dado o acesso dos europeus a investimentos (Crédit Foncier de Tunisie), e as que davam maior rendimento. A título de exemplo, na altura da independência existiam 4.500.000 ha explorados; apenas 800.000 ha eram explorados por europeus. Globalmente, porém, as terras europeias apesar de corresponderem a 18% do total agricultado usavam 2,8 vezes mais tractores e obtinham rendimentos 3 vezes superiores aos dos tunisinos ([7,8,9]).
Quer nas terras dos colonos quer nas dos tunisinos persistiu o modo de exploração feudal: corveias, trabalho forçado. No sul do país ainda existiam escravos até 1890 (data da abolição final) empregues na construção de canais de irrigação e ao serviço de tribos nos oásis.
A colonização da Tunísia representou também o saque das matérias-primas (por exemplo dos depósitos de fosforite e das minas de chumbo) e um mercado para os produtos franceses que a breve trecho destruíram o artesanato local. Foram construídos caminhos-de-ferro para as exportações de matérias-primas.
O desapossamento dos agricultores tunisinos ou a sua falência em competir com o modo de exploração dos europeus e a destruição do artesanato levou à migração de população para as grandes cidades e a criação de imensos bairros de lata.
O governador-geral também contratou trabalhadores franceses para profissões mais técnicas. Os trabalhadores tunisinos passaram a ser cidadãos de segunda sem quaisquer direitos. O chauvinismo demonstrado pelos trabalhadores franceses separou-os das lutas reivindicativas dos tunisinos. Não existia o direito de reunião; a imprensa estava proibida de emitir opiniões independentes. As escolas, entretanto construídas, eram para os franceses e elites tunisinas.
Em 1905 formou-se o partido Republicano que incluía pequeno-burgueses franceses e intelectuais tunisinos nacionalistas. Rapidamente se cindiu formando-se o partido Tunisino que defendia reformas profundas.
Em Fevereiro de 1912 um grupo de trabalhadores tunisinos dos caminhos-de-ferro exigiu o fim da discriminação, reivindicando salário igual ao dos franceses pelo mesmo trabalho. Quando as autoridades recusaram a população urbana boicotou os caminhos-de-ferro; as autoridades prenderam os líderes do partido Tunisino e baniu-os. Depois da primeira guerra mundial formou-se o partido Destour («Constituição») representando a burguesia e intelectualidade urbana tunisinas. Apesar das limitações reformistas do Destour a sua contribuição para a criação de clubes e imprensa reivindicativa nacionalista foi positiva. Em 1934 a corrente mais progressista do Destour, liderada por Habib Bourguiba, formou o Neo-Destour. O novo partido defendeu as reivindicações das populações rurais, e incitou ao boicote dos produtos franceses e à desobediência civil. Limitando a sua luta ao objectivo de se apoderarem do aparelho de Estado, o Neo-Destour estabeleceu relações patrão-cliente com a burguesia tunisina, do tipo: se ajudares o Neo-Destour nós ajudamos-te.
Na frente laboral os trabalhadores tunisinos filiaram-se primeiro na CGT francesas. Depressa se deram conta, porém, que os patrões da CGT (ligados ao PS francês) tinham concepções chauvinistas e paternalistas, recusando a representação de tunisinos no órgãos dirigentes e não apoiando as reivindicações tunisinas de salário igual para trabalho igual. Em Agosto de 1924, numa greve de estivadores tunisinos não apoiada pela CGT os tunisinos, com elementos progressistas do Destour, formaram a CGTT (Confederation Génerale dês Travailleurs Tunisiens). Só tiveram o apoio do PCF. O dirigente local socialista da CGT condenou a CGTT pela sua «agitação nacionalista, fanática, xenófoba, apoiada pelos comunistas»! As autoridades exigiram que a CGTT se fundisse com a CGT. Perante a recusa, os dirigentes da CGTT foram presos e deportados.
Depois da segunda guerra mundial formou-se a UGTT (Union Génerale des Travailleurs Tunisiens) com apoio directo do Neo-Destour; tornou-se uma força de apoio a Bourguiba e seus aliados ([9]) na liderança do Neo-Destour.
Em 1956, depois de vários anos de manobrismo de Bourguiba, o governo francês aceitou conceder a independência à Tunísia. Os interesses do imperialismo francês não eram muito afectados por esta independência e, na altura, tinha outras preocupações: a Argélia e a Indochina.

[1] V. Lutsky (1969) Modern History of the Arab Countries. Progress Pub., Moscovo. Este é um livro fundamental no tema.
[2] Note-se que nem mesmo a revolução inglesa de 1680 conduziu à formação de um corpo de necessidades e ideias conducentes a um estado laico. Pelo contrário. As lutas da burguesia inglesa contra o feudalismo foram conduzidas e justificadas sob a bandeira da religião (puritanos, quakers, etc.).
[3] Título feudal de alguns governadores de províncias otomanas, mesmo quando estas já se tinham praticamente autonomizado do império.
[4] Os nossos cálculos baseiam-se na base de dados históricos de Angus Maddison, The World Economy: Historical Statistics (disponível na Internet) que publica os dados do PIB da Tunísia para 1820 e 1870 em GK dólares de 1990 (GK$). Por interpolação, o PIB para 1862 é de 685 GK$. Os dados do PIB da França de 1862, publicados pelo INSEE, permitem estabelecer a correspondência para esse ano entre o franco de 1938 e o GK$: 1 F1938 = 1,365 GK$1990. A depreciação do franco de 1862 até 1938 pode obter-se combinando informação do INSEE (recua até 1911) com outras fontes, por exemplo J.M. Jeanneny (1988) Monnaie et Mécanismes monetaires en France de 1878 à 1939, Revue de l'OFCE, 28:24:5-53. Chega-se a um factor de conversão de 7,4 F1875 = 7 F1911 = 1 F1939. Estes nossos cálculos são confirmados pela conversão entre 1860 e 1940 usando a tabela de conversão disponível em http://www.histoire-genealogie.com/spip.php?article398&lang=fr. Note-se que o franco se manteve bastante estável entre 1860 e 1880. Assim, o PIB da Tunísia em 1862 deveria corresponder a 67,8  milhões de francos da época.
[5] Chefe distrital na Tunísia.
[6] wikipedia. Confirmado por outras fontes.
[7] A Nicolai (1956) Approche structurelle et effet de domination. Ume application: la Tunisie. Revue Economique, 7:5, 738-776.
[8] A Nicolai (1962) Tunisie: fiscalité et developpement. Tiers-Monde, 3:11, 429-478.
[9] HM Woodward (1994) Rethinking anti-colonial movements and the political economy of decolonization: the case of Tunísia. Arab Studies Quarterly, 16:1.

segunda-feira, 17 de dezembro de 2012

A Economia convencional: uma pseudociência (VI)

VI. Capital e taxa de lucro
Seguindo o livro de Steve Keen (Professor de Economia e um keynesiano; ver artigos anteriores, nomeadamente o primeiro) vamos abordar neste artigo a questão do capital. Os economistas usam o termo «capital» quer para designar uma quantidade de dinheiro quer um conjunto de maquinaria; neste último caso abstraem das diferenças entre máquinas diversas e usam o valor em dinheiro da maquinaria. Contudo, uma análise do processo produtivo pelo qual mercadorias são produzidas usando outras mercadorias e trabalho, mostra que o valor monetário da maquinaria não pode ser usado como um substituto da quantidade de maquinaria usada na produção.
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A economia convencional fornece uma explicação da taxa de lucro em termos análogos à explicação dos salários que vimos na Parte V (o mercado estabelece o salário tendo em conta a produtividade marginal do trabalho): uma firma procurando maximizar o seu lucro pedirá empréstimo de capital até que a sua contribuição para a produção iguale o custo do empréstimo. O custo do empréstimo é a taxa de juro; a contribuição marginal do capital é a taxa de lucro.
A soma de todas as curvas de procura (pedido de empréstimo) de capital corresponde à curva descendente da procura de mercado de capital. A curva ascendente da oferta de capital dependerá da taxa de juro (logo, das vontades individuais de fornecer capitais). Estamos de novo no cenário áureo da economia convencional, que já vimos repetido mais de uma vez nos artigos anteriores: Uma curva de procura descendente intersecta uma curva ascendente de oferta num ponto de equilíbrio: a taxa de lucro de equilíbrio.
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A questão está em saber se faz sentido agregar as curvas de procura e oferta de capital como se faz no caso de mercadorias e de trabalho. No mercado de capital teríamos milhares de produtos (as mais diversas máquinas e dispositivos, instalações, etc.) figurando na rubrica "capital". Uma alteração do preço do capital afectará numerosas indústrias e, por conseguinte, a distribuição de rendimento. Vamos, então, começar por ver, para uma firma, como exprimir o rendimento de trabalhadores e capitalistas:
Rendimento = salário´n.º de trabalhadores + capital´taxa de lucro
A parcela "salário´n.º de trabalhadores" corresponde ao rendimento dos trabalhadores (para simplificar supomos que todos ganham o mesmo). A parcela "capital´taxa de lucro" corresponde ao rendimento dos capitalistas. Se, por exemplo, investiram 100 mil euros de capital e a taxa de lucro é de 15%, o rendimento dos capitalistas será de 15 mil euros.
Podemos, agora, determinar como varia o rendimento com uma variação do capital:
Variação do rendimento com o capital é igual a:
a)      Variação do salário com o capital ´ n.º de trabalhadores, mais
b)      Variação do capital com o capital ´ taxa de lucro, mais
c)      Capital ´ variação da taxa de lucro com o capital.
O argumento neoclássico para uma firma é o seguinte: o salário e a taxa de lucro não variam com o capital. Pode-se aumentar ou diminuir o capital investido que isso não tem influência sobre o salário e a taxa de lucro. Logo, os termos (a) e (c) valem zero. Por outro lado, como o termo "Variação do capital com o capital" vale 1, obtém-se:
Variação do rendimento com o capital = taxa de lucro
Embora esta igualdade seja uma aproximação razoável para uma firma, ela não pode ser usada para um agregado de firmas porque, obviamente, qualquer variação de capital em uma ou mais firmas irá condicionar a respectiva produção com consequências a nível dos salários e das taxas de lucro. Estas variações irão, assim, alterar a distribuição de rendimento entre trabalhadores e capitalistas, alterando também os padrões de consumo. O mesmo argumento é aplicável ao trabalho.
Na realidade, em vez da crença neoclássica de que é o mercado que determina univocamente a distribuição de rendimento, através dos mecanismos de equilíbrio de preços de mercado que já descrevemos (mecanismos baseados na produtividade marginal do trabalho e do capital), pelo contrário, é a distribuição do rendimento que determina os preços. Distribuição de rendimento em grande parte independente das produtividades marginais do trabalho e do capital, mas fortemente dependente do poder político relativo das duas classes sociais.
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Na economia convencional todos os itens correspondentes a capital são agregados com base nos respectivos preços. Contudo, tal prática corresponde a um círculo vicioso: o preço de um item de capital depende da taxa de lucro, e a taxa de lucro varia quando os preços variam! Steve Keen expõe no seu livro a forma como Piero Sraffa resolveu esta questão da agregação de capitais, tendo em conta a taxa de lucro e a relação entre esta e a relativa repartição de mais valia da produção (excedente sobre o capital e os salários) entre trabalho e capital. Vamos aqui omitir esta exposição que não é importante para os nossos propósitos.
Steve Keen desmonta também o argumento de muitos neoclássicos, com especial relevo dos neoliberais, de que, como disse Milton Friedman, uma teoria não deve ser julgada pelas suas assunções mas sim pelas suas predições (!) Logo, para estes «cientistas» uma teoria pode estar completamente incorrecta; logo que forneça boas predições, está tudo bem! Infelizmente, para eles, ocorreram as crises das bolhas (dot.com, bolhas imobiliárias) e a crise do euro, que bem mostraram quão eficientes foram as «teorias» deles nas predições.
O livro de Steve Keen contém também uma larga e interessantíssima discussão sobre o que chama de «loucura» das metodologias usadas pelos economistas neoclássicos bem como a que erros espantosos de análise pode conduzir a crença neoclássica de que a economia pode ser analisada como se fosse uma sequência de situações estáticas, de equilíbrios estáveis, em vez de, pelo contrário, ter em conta o comportamento dinâmico ao longo do tempo; comportamento dinâmico esse que permite ter em conta a possibilidade de ocorrerem equilíbrios instáveis ([1]).
No próximo artigo iremos abordar a questão de porque razão os economistas neoclássicos «não viram o que estava para acontecer» (Why they didn't see it coming, prafraseando uma afirmação de Ben Bernanke, presidente do Banco Central dos EUA, figura incensada por todos os neoliberais, que afirmou publicamente «we didn't see it coming.») relativamente à Grande Recessão da crise imobiliária dos EUA, crise essa que contribuiu como despoletadora da crise do euro (ver nosso artigo «A Crise do Euro»).

[1] Usando o formalismo matemático, o comportamento estático corresponde a resolver sistemas de equações algébricas; o comportamento dinâmico implica a resolução de sistemas de equações diferenciais, uma área bem mais difícil do que a das equações algébricas. Contudo, com os modernos computadores, lidar com sistemas de equações diferenciais passou a ser bem mais fácil dado poderem ser usados métodos de simulação numérica cuja implementação não levanta especiais problemas. Steve Keen, refere, quanto a isto, o grande conservadorismo da Economia, que se atrasou face a todas as ciências no uso de novas áreas de conhecimento matemático e de cálculo numérico.

segunda-feira, 10 de dezembro de 2012

A Primavera Árabe. Parte I (conclusão)

I - O Mundo Árabe antes da Dominação Colonial
Aquilo que hoje se designa por «mundo árabe» ¾ países do norte de África e do Médio Oriente ¾ foi durante vários séculos «mundo turco». Em 1514 o sultão otomano Selim I conquistou o Norte do Iraque e a partir daí os turcos otomanos continuam a sua progressão de conquista do mundo árabe (Síria e Palestina em 1516, Egipto em 1517, Argélia em 1533, Tunísia em 1534, Tripoli na Líbia em 1551) e de territórios europeus (Balcãs, Grécia, Creta, etc.), vindo a constituir o Império Otomano ([1]).
Era um império feudal, parcialmente esclavagista, e fortemente militarista. Em todos os territórios árabes, como na própria Turquia, dominavam grandes senhores feudais que exploravam cruelmente (corveias, numerosos impostos, ausência total de direitos, humilhação constante pelos Senhores e seus servidores, etc.) os camponeses ¾ os fellah, servos da gleba ¾ adstritos (eles e descendentes) aos seus vastos domínios, bem como as pequenas comunidades obrigadas a pagar tributos pesados em espécie, incluindo produtos de artesanato e artigos de luxo. Os senhores feudais eram os chefes militares turcos ou de etnias que ajudaram a conquista turca (principalmente albaneses e circassianos), a nobreza dos países conquistados, os grandes dignitários da administração turca central e local, e figuras proeminentes do clero muçulmano.
O esclavagismo subsistia em muitos domínios, quer ligado aos trabalhos penosos (por exemplo, nas explorações mineiras) quer como servidores domésticos. Existiam mercados de escravos em várias cidades do Império, nomeadamente em Alexandria e Argel.
Subsistiam também em larga escala ¾ e na realidade, subsistiram até ao tempo actual ¾ as organizações tribais e nomádicas (curdos, berberes, beduínos, etc.) um pouco por todo o Império, principalmente no Norte de África e na península arábica. As organizações tribais e nomádicas eram caracterizadas por fortes relações patriarcais.
O poder militar do Império Otomano tinha como núcleo duro as divisões de infantaria dos janízaros, soldados profissionais recrutados à força, ainda em criança, de povos subjugados, em particular de entre os cristãos da Albânia, Grécia, Bósnia, Sérvia e Bulgária. Eram submetidos a treino militar constante e severa disciplina. Recebiam salários e pensões de reforma. Tornaram-se guerreiros temíveis, de extraordinário fanatismo ao serviço do Império.
Existia uma ligação profunda entre clero e administração civil. A lei corânica imperava em tudo. O sultão tornou-se a breve trecho na suprema autoridade religiosa (Califa). Esta supremacia religiosa na sociedade é típica, aliás, do Próximo Oriente e remonta a muitos séculos atrás (impérios babilónico, assírio, persa, etc.) tendo raízes profundas nas sociedades patriarcais e no «modo de produção asiático» extremamente conservador do Próximo Oriente. Constitui uma marca distintiva entre o mundo do Próximo Oriente e o mundo ocidental.
Outra importante marca distintiva entre o feudalismo do mundo árabe e o feudalismo ocidental era o sistema de «capitulações». As capitulações eram certificados concedidos a mercadores europeus que lhes concediam direitos especiais de comércio e certos privilégios (por exemplo, de construção de armazéns e feitorias). A breve trecho todo o comércio, e actividades produtivas a ele ligado (oficinas artesanais), passou a estar nas mãos de estrangeiros, particularmente europeus: gregos, judeus, venezianos, etc., e mais tarde franceses e ingleses.
O sistema de capitulações, combinado com as extorsões monstruosas dos senhores feudais com vista a adquirir produtos de luxo ocidentais e com as constantes lutas internas dos senhores feudais, imprimiu uma evolução do feudalismo árabe em tudo diferente do ocidental. Em vez do sistema de corporações e da formação de cidades mercantis que vieram a determinar a transição europeia para o capitalismo nos séculos XVII e XVIII, o mundo árabe experimentou o exaurir das forças produtivas e veio a efectuar a transição para o capitalismo, submissivamente, pelas mãos dos capitalistas e colonialistas europeus.
*    *    *
Antes da entrada em força do capitalismo europeu no mundo árabe, na última metade do século XIX, era esta a situação:
No Egipto, como noutras regiões do Império, tinham-se afirmado as tendências autonomistas. Depois da derrota dos dirigentes mamelucos (casta militar que dominou o Egipto medieval, parecida com a dos janízaros) por um exército turco comandado por um chefe janízaro albanês, O Egipto veio a consolidar a sua posição de Estado desenvolvido no mundo turco. A breve incursão Napoleónica no Egipto não alterou esta situação. Os Paxás do Egipto introduziram várias reformas progressistas (escolas, hospitais, segurança do trânsito de caravanas, etc.) mas mantendo no essencial o sistema feudal. Os Paxás sentiam admiração pela civilização europeia e eram fortemente inclinados a favor da França. O reconhecimento da suzerania turca tornou-se quase simbólico.
A Síria era campo de batalha entre os senhores feudais autóctones e via de comunicação da tropas turcas sempre que procediam ao esmagar de rebeliões no Líbano e no Iraque. No período de 1831 a 1833 foi também palco de luta entre tropas egípcias e turcas. Um conjunto de reformas turcas progressistas (o tanzimat de 1839) com vista a acabar com os janízaros e o sistema de feudos militares originou uma rebelião conduzida por forças clericais reaccionárias. Mais tarde a Síria foi também influenciada pelo movimento waabista, de um Islão ascético com muitas semelhanças com os actuais talibã.
As cidades costeiras da Tunísia (e da Argélia) e Tripoli na Líbia eram praças-fortes dos piratas barbarescos do Mediterrâneo. Os frutos da pirataria e da exploração do campesinato eram repartidos entre os senhores locais e o Sultão turco. No vasto interior subsistiam as mesmas tribos e relações de clã e patriarcais vindas de tempos imemoriais.
[1] V. Lutsky (1969) Modern History of the Arab Countries. Progress Pub., Moscovo. Um livro imprescindível no tema.

sexta-feira, 7 de dezembro de 2012

A Economia convencional: uma pseudociência (Va)

V. A «mercadoria» trabalho
Temos vindo a seguir o livro de Steve Keen (Professor de Economia e um keynesiano; ver artigos anteriores, nomeadamente o primeiro) onde ele desmonta de forma arrasadora a Economia convencional, dita neoclássica (a que é ensinada nas Universidades), desmontagem essa assente em sólidos resultados teóricos e empíricos da autoria de um grande número investigadores (incluindo neoclássicos!).
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No presente artigo vamos analisar a questão do trabalho. Esta questão é analisada pelos neoclássicos como se o trabalho fosse uma mercadoria como outra qualquer, sujeita à lei da oferta e da procura.
Já vimos em artigos anteriores que as ideias neoclássicas sobre a curva da procura de mercado, assumindo «consumidores racionais» não é como os neoclássicos gostariam que fosse: uma curva simplesmente descendente. De facto, demonstra-se que a curva pode ter qualquer outra forma. Isto para já não falar em que a assunção de «consumidores racionais» é um mito sem aplicabilidade no mundo real. Por outro lado, vimos também, que não existe uma curva da oferta num «mercado perfeitamente competitivo». Tal ideia assenta, como vimos em artigo anterior, numa falsa assunção matemática.
Os neoclássicos abordam a questão do trabalho, nomeadamente a questão da fixação do salário, usando as noções erradas sobre curvas da procura e da oferta de mercado. Iremos ver que, mesmo partindo dessas assunções que sabemos inválidas, mesmo assim as análises económicas neoclássicas do mercado de trabalho estão erradas. Este é um dos temas em que a motivação ideológica neo-clássica, de defesa do capitalismo, é mais patente.
*     *     *
Um primeiro aspecto a ter em conta é que para a Economia convencional o «trabalho» é um factor de produção como qualquer outro, seja ele maquinaria ou matéria-prima. Mais: para os neoclássicos o trabalhador ao vender o seu trabalho toma essa decisão de forma tão independente como o capitalista. Trabalha ou não, conforme quiser. Nesta concepção o desemprego existe porque os trabalhadores não querem trabalhar (!).
Vejamos porque razão os neoclássicos são levados a tais conclusões, tão do agrado dos capitalistas.
Uma diferença importante entre o trabalho (considerado aqui como quantidade de trabalho efectivo) e qualquer outra mercadoria ¾ como as laranjas e maçãs que considerámos ao tratar da curva da procura de mercado ¾, é que no caso do trabalho as decisões sobre oferta são tomadas pelos consumidores (os agregados familiares que fornecem trabalho) e não pelos produtores (como para as laranjas e maçãs), enquanto as decisões sobre procura são tomadas pelos produtores (as firmas que contratam trabalhadores) ao contrário do que acontece com outros bens.
Portanto, para a «mercadoria» trabalho há uma inversão de perspectiva relativamente a outras mercadorias: o que é oferta para outras mercadorias é procura para o trabalho e vice-versa.
Comecemos, então, por analisar a procura da «mercadoria» trabalho. Essa procura depende de decisões das firmas de contratar trabalhadores para produção com lucro. Estamos, assim, do ponto de vista neoclássico, numa situação parecida com a da oferta de mercadorias que tratámos nas partes III e IV. Vamos usar os dados da mesma tabela 1 apresentada na parte IV, mas agora concentrando a nossa atenção no trabalho, que passa a ser a nossa variável de referência, ao contrário do volume de produção (quantidade de unidades produzidas), como no artigo anterior. A tabela 1 abaixo reproduz a tabela 1 da parte IV, com excepção da coluna «Receita marginal do trabalho» cujos valores se obtêm multiplicando a «Produção marginal» pelo preço de mercado que tínhamos já considerado: 4 €.

Tabela 1
N.º de trabalha-dores
Produção
Produção marginal
Total de salários
Custo total
Custo marginal
Receita total
Receita marginal do trabalho
Lucro
1
49
49
1000
251000
20,4
196
196
-250804
2
100
51
2000
252000
19,6
400
204
-251600
10
633
79
10000
260000
12,7
2532
316
-257468
100
21153
361
100000
350000
2,8
84612
1444
-265388
304
138488
724
304000
554000
1,4
553952
2896
-48
305
139212
724
305000
555000
1,4
556848
2896
1848
401
211187
761
401000
651000
1,3
844748
3044
193748
500
284677
709
500000
750000
1,4
1138708
2836
388708
664
380948
425
664000
914000
2,4
1523792
1700
609792
700
394515
329
700000
950000
3,0
1578060
1316
628060
725
401807
256
725000
975000
3,9
1607228
1024
632228
726
402060
253
726000
976000
4,0
1608240
1012
632240
750
407187
177
750000
1000000
5,6
1628748
708
628748
800
411634
1
800000
1050000
1000,0
1646536
4
596536



De facto, na concepção neoclássica, o salário é uma constante, tal como considerámos na tabela 1 (1000 €), constante essa que é fixada pelo mercado de trabalho em que cada firma é um actor muitíssimo pequeno. A receita que a firma faz ao empregar o último trabalhador corresponde à coluna de «receita marginal do trabalho». Conforme tínhamos visto no anterior artigo, a produção marginal correspondente à tabela 1 tem uma evolução parabólica; logo, a receita marginal do trabalho, que é dada pela simples multiplicação da produção marginal pelo preço de mercado, é também parabólica, conforme mostra a figura 1.
 Fig. 1. Produção marginal e receita marginal do trabalho. A escala vertical deve ser lida em unidades produzidas no que se refere à produção marginal e em € no que se refere à receita marginal.
  
Na figura 1 sabemos que só a partir de 401 unidades produzidas o custo marginal começa a crescer e eventualmente se atingirá o lucro máximo (ver artigo anterior). Esta evolução corresponde ao ramo descendente da parábola da produção marginal, consubstanciando a ideia neoclássica da produtividade decrescente com o número de trabalhadores (que já vimos estar errada mas vamos continuar com se nada fosse). Assim, o ramo descendente da receita marginal que se obtém com o trabalho (a traço sólido e grosso na figura 1) corresponde àquilo que os neoclássicos consideram ser a procura de trabalho de uma firma: uma curva descendente, tal como deve ser qualquer curva da procura de uma firma.
A firma continuará a empregar trabalhadores até atingir o valor do salário imposto pelo mercado. No presente exemplo, para um salário de 1000 € a firma empregará 726 trabalhadores (receita marginal = 1012 €) o que corresponde precisamente ao valor do lucro máximo que vimos no artigo anterior. Se o salário fosse de 2000 € a firma só empregaria 632 trabalhadores.
Se a figura 1 fosse decomposta em trabalhadores de nível salarial diferente obteríamos a explicação neoclássica da razão pela qual os trabalhadores têm diferentes salários: são diferentes porque a receita marginal também é diferente. As desigualdades sociais são assim entendidas como justas porque correspondem a contribuições diferentes para a produção.
No entender dos neoclássicos a curva do procura de trabalho não é mais do que uma média pesada das curvas individuais das firmas o que leva a obter uma curva descendente da procura de trabalho, no mercado de trabalho.
*     *     *
Vejamos agora a questão da oferta de trabalho. Os economistas neoclássicos seguem aqui uma concepção que remonta a Jeremy Bentham (1748-1832), a concepção hedonista da Economia: para os potenciais trabalhadores, trabalhar é sempre um desprazer; só o ócio dá prazer. Os potenciais trabalhadores só trabalham porque necessitam de um rendimento. Desta forma, a oferta de trabalho rege-se pelas curvas de indiferença que já encontrámos a propósito da procura de mercadorias (ver Partes IIa e IIb), curvas essas referentes aqui a dois «bens» apenas: o tempo de ócio e o rendimento.
O raciocínio neoclássico é o seguinte: cada trabalhador tem as suas preferências entre ter mais tempo de ócio ou ter maior rendimento. Podemos, então, fazer como fizemos na Parte IIb para a procura de laranjas e maçãs: conceber uma superfície de «prazer» cuja altura aumenta com o tempo de ócio e o rendimento. As curvas de indiferença, tal como no caso das laranjas e maçãs, correspondem a um nível de prazer constante.
A figura 2 mostra três curvas de indiferença. Cada uma das curvas corresponde a um dado nível de «prazer», embora os economistas não indiquem como medi-lo. Tal como para as laranjas e maçãs trata-se de uma valoração subjectiva. O valor não é indicado na figura 2; sabemos apenas que quanto mais afastada está a curva da indiferença da origem dos eixos maior é «prazer». Numa dada curva o trabalhador obtém o mesmo «prazer» para qualquer combinação de rendimento e tempo de ócio correspondente a um ponto da curva. É-lhe, portanto, indiferente operar num dado ponto da curva ou noutro qualquer. Se o leitor achar tudo isto muito exótico e afastado do mundo real, tem toda a razão. Nenhum trabalhador do mundo determina as suas curvas de indiferença quando se candidata a um trabalho. Mas é assim que a Economia convencional trata a questão e vamos continuar a seguir esta linha de raciocínio.

Fig. 2. Curvas de indiferença ócio-rendimento.

No caso das laranjas e maçãs procurava-se determinar pontos de operação tendo em conta o orçamento disponível para aquisição de bens. Um orçamento constante correspondia a uma recta no gráfico das curvas de indiferença. No caso presente as rectas de «orçamento» constante são, efectivamente, rectas de salário horário constante. Existe também um aspecto específico neste caso: é que todas as rectas de salário horário constante começam em 24 horas, o máximo tempo de ócio possível.
A figura 2 mostra três destas rectas, para salários horários de 8€, 6€ e 4€. Consideremos a recta de 8€/hora. À medida que diminui o tempo de ócio (logo, aumenta o tempo de trabalho), o rendimento aumenta proporcionalmente como é óbvio. O que faz o trabalhador «racional» para escolher qual o valor óptimo do tempo de trabalho (como se o trabalhador pudesse escolher isso!)? Determina qual a curva de indiferença tangente à respectiva recta (azul). No ponto de tangencia o trabalhador obtém o maior «prazer» possível. No caso da figura 2 isso corresponde a trabalhar 24 – 14 = 10 horas diárias, auferindo um rendimento diário de 8´10 = 80 €. A construção repete-se para outros valores de salários horários. Entretanto, o artificialismo de tudo isto torna-se ainda mais gritante!
Os neoclássicos continuam em frente impávidos e serenos: Usando os valores dos salários horários e os valores dos tempos de trabalho, traçam a curva da oferta de 1 trabalhador «racional» mostrada na figura 3.

 Fig. 3. Curva da oferta de trabalho construída com os valores indicados na figura 2.

As curvas de oferta de trabalho de todos os trabalhadores são depois somadas para obter a curva de oferta de trabalho no mercado de trabalho. Comentaremos no próximo artigo estas construções.