Lemos recentemente um livro fascinante de
João Varela Gomes (VG): Esta Democracia
Filofascista (edição do autor, distribuição Terramar, Lisboa, 1999). VG
discorre sobre vários temas relacionados com o bom acolhimento que as
democracias burguesas «ocidentais» dispensam a fascistas e suas ideias.
Notavelmente em Portugal, onde teve lugar em 1974-75 uma revolução «rumo ao
socialismo». Um aspecto importante do livro é que as suas teses continuam
actuais, com previsões confirmadas. De há 15 anos atrás. Em particular, no
capítulo II intitulado «Imperialismo, Hoje».
O coronel Varela Gomes tem hoje 90 anos. Uma
vida de luta pela liberdade do povo, de homem vertical que nunca se vergou ao
fascismo nem ao capitalismo. Como capitão, comandou o histórico assalto ao quartel de Beja, em 1962, em pleno fascismo. A
acção não teve êxito. Ferido gravemente, VG esteve entre a vida e a morte. Julgado
pelo tribunal «Plenário» fascista em 1964, aí fez um depoimento de invulgar coragem.
Contra a vontade do seu advogado, como disse a esposa: «ele foi para tribunal
instigar que outros fizessem o que eles [VG e outros] tinham feito. Instigar
à revolta». Passou seis anos de prisão maior com maus-tratos. A esposa,
corajosa antifascista, também esteve presa. Com a Revolução de Abril, VG foi
integrado no exército e teve acção destacada no processo revolucionário,
designadamente na célebre 5.ª Divisão do EMGFA, o único apoio firme da
revolução, do MFA. Afastado e perseguido pela contra-revolução do 25 de
Novembro, VG nunca deixou de denunciar os contra-revolucionários, mormente os
soaristas aliados à CIA. Figura incómoda do actual regime filofascista, VG tem denunciado certeiramente em
livros, jornais e revistas, o imperialismo, o neoliberalismo e a venalidade
de renegados e esquerdalhos. Tem também dado contribuições importantíssimas
sobre a história da resistência e da revolução portuguesas, de que possui
conhecimento profundo e testemunho pessoal. Os seus livros (todos
excelentes!) tiveram de ser editados pelo autor ou por pequenas editoras
amigas. VG foi homenageado em 2012 na Voz do Operário. Apraz-nos registar que
a AOFA se lembrou dos seus 90 anos como «viçoso guerreiro, militante por uma sociedade igualitária e
justa» (http://aofaportugal.blogspot.pt/2014/05/joao-varela-gomes-90-anosmuitos-amigos.html).
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Folheemos o «Imperialismo, Hoje», capítulo
II do livro. VG começa por referir a desagregação da URSS e consequências
disso na hegemonia imperial dos EUA, desmascarando de passagem a tese dos
«dois imperialismos». Passando à agressão americana na Jugoslávia, diz assim:
«Torna-se cada dia mais patente a semelhança do plano estratégico em curso,
com a Mittelleuropa do sonho da expansão germânica, retomado por
Hitler [...]: um só bloco económico estendendo-se desde o mar do Norte ao
golfo Pérsico, enfeudando os estados e as nações que
habitassem esse espaço vital (na concepção imperialista germânica).
Provoca um frémito de terror constatar que a Croácia se tornou independente
devido ao auxílio militar alemão (instrutores, equipamento, doutrina); com a
recuperação dos ustachis (nazis croatas); a benção do Vaticano
(segunda chancelaria a reconhecer o novo estado, logo a seguir à alemã); com
a instauração de um regime de censura e partido único dirigido pelo sinistro
Tudjman. Igualmente pavorosa foi a criação artificial de uma Bósnia muçulmana
[...] hoje em dia, para todos os efeitos, um protectorado americano, exercido
directamente por um procônsul born in USA.»
Mais adiante, uma previsão clara (há 15 anos atrás!) do que veio depois: «Pode
com facilidade adivinhar-se qual a fase que se segue na expansão do domínio
americano/Nato no flanco sul da Europa. Consolidado o protectorado, com o
respectivo dispositivo militar de ocupação implantado até à Macedónia [...] a
progressão para Este não encontrará obstáculos dignos de registo». VG prevê a
fácil absorção da Roménia e Bulgária, para então dizer: «Depois fica em
caminho o mítico objectivo do espaço vital hitleriano: a Ucrânia. Rendição
aparentemente mais complicada, mas não o suficiente para deter a voracidade
hegemónica imperialista. Já por lá passeiam, impunemente, pelas ruas de Kiev,
os antigos colaboradores com o invasor nazi, ostentando fardas e braçadeiras
com a cruz gamada.»
Seguem-se apreciações sobre a ONU -- «No
presente quadro de ruptura do direito internacional -- com a ONU condenada a
seguir o destino inglório da sua antecessora, a Sociedade das Nações; com a
aceitação do princípio da agressão com fins humanitários (passe o paradoxo)»
--, e sobre «onde se situam, que partido tomam os jornalistas, cronistas e
opiniocratas em geral, incluindo os que manejam o discurso historiográfico»
-- «Pois no sítio do costume, onde é que havia de ser! Ao lado dos poderosos,
na sua função de cães de guarda do sistema, repetindo como papagaios a voz do
dono [...] Alguns até querem ser mais papistas que o papa. Na ânsia de
anunciar mortes e massacres, de exaltar as maravilhas destrutivas do aparato
bélico americano, o poder mortífero dos soldados humanitários, tornam-se
repulsivos, mesmo obscenos. (Ao espírito ocorre a imagem de funcionários
nazis congratulando-se pela produtividade do último modelo de câmara
crematória [...])».
Por fim, um olhar sobre os EUA -- «Ora,
parece indispensável, em observação final, esclarecermo-nos um pouco sobre a
identidade político-social da superpotência que actualmente domina os
destinos do planeta, e, presumivelmente, continuará a fazê-lo pelas próximas
décadas» --, desta forma:
«Um primeiro aspecto digno de realce envolve
a tradição moralizante da acção diplomática dos EUA, numa pretensiosa postura
de superioridade ética, fazendo gala dum ridículo puritanismo [...]. Ora, não
pode haver contraste maior, contradição mais flagrante, que a que existe
entre essa alienação moralista e a realidade brutal da formação histórica, de
costa-a-costa da federação dos estados americanos do norte». Referindo várias
guerras de agressão expansionista dos EUA até «à presente façanha, de
hipocrisia refinada, da “agressão com fins humanitários”», VG recorda que os
EUA «autoproclamados apóstolos dos direitos das minorias étnicas, nasceram e
cresceram levando a cabo um dos mais terríveis genocídios (uma das mais
completas «limpezas étnicas») da história da humanidade [...] mediante o
extermínio cruel e sistemático da totalidade da população original ameríndia,
da qual restam uns quantos exemplares, confinados em reservas como animais
raros para exposição» para concluir «A realidade americana actual é filha e
herdeira desse longo passado de massacres e violência, de ódio racial, da lei
do mais forte, de pistoleiros à solta com licença para matar, de aventureiros
ávidos de confisco, de apropriação e roubo. [...] Os EUA não têm pois a mínima
autoridade moral para dar lições de conduta ética seja a quem for».
Passando ao tempo actual, VG assinala as condições
esquálidas em que vivem as «minorias» étnicas «Vítimas da desconfiança
latente da burguesia instalada, sujeitos a apartheid habitacional e
social, vigiados por milícias armadas racistas, por múltiplas organizações de
defensores da ordem e do american way of life.», acrescentando «Com efeito, a sociedade americana não é --
nunca foi, nem conseguirá vir a sê-lo -- o melting pot de que se
orgulhavam os idealistas wilsonianos. Melhor comparado, é uma marmita de
pressão onde fervilham, sem se decomporem, contradições, ódios, conflitos
raciais e de classes, o pavor de perder estatuto social, a insegurança» o que logo nos traz à mente a brutalidade,
bestialidade e hipocrisia da repressão dos humildes e explorados nos
«incidentes» de Ferguson e noutros locais. Uma constante da história dos
EUA (com a KKK e grupos afins à solta e impunes).
Pelo meio, uma reflexão -- «Sim, há boa
gente nos States. Infelizmente não são suficientes para alterarem a prática
política e a ideologia militante da superpotência americana. A qual continua
a ser dirigida pelos interesses da grande burguesia capitalista, agora na
fase da globalização económica e financeira, e prosseguindo um projecto de
domínio mundial» -- para finalizar assim a análise dos EUA, quanto a nós com
inteira pertinência:
«A direcção imperialista tem perfeita
consciência das tensões explosivas que se entrecruzam no interior da
sociedade americana. E essa é uma das motivações -- e não das menores -- do
expansionismo exterior, das agressões, ingerências e conquistas. Já assim o
tinha entendido o império romano no início da nossa era. No dia em que, por
qualquer razão, o escape da expansão externa não possa mais ser utilizado, em
que se perfile no horizonte da classe média americana o espectro da depressão
económica, rebentará com enorme fragor a marmita de ódios e desesperos
ocultos, sob a capa da hipocrisia ética/religiosa/moralista. A violência
irracional faz de tal modo parte integrante da personalidade americana que,
caso a humanidade vier a soçobrar no holocausto nuclear sê-lo-á, sem sombra
de dúvida, por iniciativa da classe governante do último império capitalista.»
Fazemos votos para que a divulgação deste
pequeníssimo segmento da obra de Varela Gomes possa motivar novas leituras
deste lutador tenaz, bem formado e informado, de prosa clara e incisiva.
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We
finished reading a fascinating book written by João Varela Gomes (VG): “Esta Democracia Filofascista” (“This Philofascist
Democracy”, author’s edition, distributed by Terramar,
Coronel
Varela Gomes is now 90 years old. A lifetime fighting for people’s freedom,
as a vertical man, who never bent to fascism and to capitalism. As a captain,
he commanded the historical attack to the
barracks of Beja in 1962, in full fascism. The action didn’t succeed.
Seriously wounded, VG was then between life and death. He stood trial by the
fascist “Plenary” court in 1964, where he made a speech of unusual courage,
against the will of his attorney, as told by his wife: «he went to court to
instigate others to do what they [VG and others] had done. To instigate to revolt».
He passed six years in major prison and ill-treated. The wife, a courageous antifascist,
was also put in jail. VG was integrated in the army with the April Revolution
and had an outstanding action in the revolutionary process, namely in the
famous 5th Division of the Gen. Staff of A. F., the only firm
support of the revolution, of the Movement of A.F. Banned and persecuted by
the counter-revolution of 25 November, VG never stopped exposing the
counter-revolutionaries, above all the Soares-ists allied to the CIA. A
discomforting character to the present philofascist regime, VG denounced
right on target the imperialism, the neoliberalism, the venality of renegades
and “leftoids”, in books, newspapers and magazines. He also gave outstanding
contributions to the history of Portuguese resistance and revolution, of
which he has deep knowledge and personal witnessing. His books (all
excellent!) had to be edited by the author or by small friendly editors. A homage was paid to VG at the Worker’s Voice in
2012. We also note
with pleasure that the Officers’ Association of the Armed Forces praised his
90th anniversary as a “fresh
warrior, militant for a fair and egalitarian society” (http://aofaportugal.blogspot.pt/2014/05/joao-varela-gomes-90-anosmuitos-amigos.html).
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Let us
browse through the book chapter II, “Imperialism Today”. VG starts by mentioning
the
Further
on, a clear forecast (15 years ago!) of
what came next: “One can easily guess which stage comes next in the
expansion of the American/NATO domination to the southern European flank. Once
consolidated the protectorate, with the respective military apparatus of
occupation implanted up to
VG then
presents appreciations on the UN – “In the present framework of breach of
international laws -- with the UN doomed to the inglorious destiny of its
predecessor the League of Nations; accepting the principle of aggression with
humanitarian aims (pass the paradox)” --, and on “where are situated, which
party follow journalists, chroniclers, opinion makers in general, including
those handling the historiographic discourse” – “Well, they situate in the
usual place, where do you think they are? Side by side with the power-holders,
in their mission of watchdogs of the system, repeating as parrots the
master’s voice [...] Some even want to be more popish than the Pope. In their
eager to announce deaths and massacres, to exalt the destructive wonders of
the American bellicose apparatus, and the deadly power of the humanitarian
soldiers, they become repulsive, even obscene. (The image of Nazi clerks
congratulating on the productivity of the last model of crematory oven, jumps
to mind [...])”.
Finally,
a look to the USA – “Now, it seems indispensable, as a final observation, to
clarify ourselves a bit about the politico-social identity of the superpower
that presently dominates the destinies of the planet and, presumably, will go
on doing that for the next decades” -- , in this manner:
“A first
aspect worth emphasizing entails the moralizing tradition of the
Moving to
the present time, VG comments on the squalid conditions in which live the
ethnic “minorities”, “Victims of the latent mistrust of the well-installed
bourgeoisie, subject to housing and social apartheid, under vigilance
by racist armed militias, by multiple organizations of defenders of the order
and the American way of life
[sic]”, adding: “In fact, the American society is not -- never was and
never will succeed to be -- the melting pot [sic] which the Wilsonian
idealists were proud of. As a better analogy, it is a pressure cooker
where boil, without decomposing, contradictions, hatreds, racial and class
conflicts, the dread of losing social status, the insecurity”, and this brings to mind the brutality, the
bestiality and hypocrisy of the repression of the downtrodden and explored
ones in the “incidents” of Ferguson and other places. A systematic
phenomenon in the history of
Incidentally,
a consideration -- «Yes, there are good people in the States [sic]. They are unfortunately not
enough to change the political practice and the militant ideology of the
American superpower, which goes on being led by the interests of the
capitalist big bourgeoisie, now in the stage of economic and financial globalization, pursuing
a project of world domination” – ending his overview of the analysis of the
USA as follows, and in our opinion with entire pertinence:
“The
imperialist leadership is perfectly aware of the explosive tensions
criss-crossing the heart of the American society; one of the motivations –
and not the smallest one – of the external expansionism, of the aggression,
meddling and conquest. The same had already been understood by the
We hope
that the publicizing of this very short segment of Varela Gomes works may
motivate new readings of this tenacious fighter, well-formed and informed, of
clear and sharp prose.
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