segunda-feira, 24 de novembro de 2014

Algazarra sobre os Médicos Cubanos

    Periodicamente, o imperialismo americano trata de agredir Cuba, actual porta-estandarte do socialismo, pelos mais variados meios: boicote económico, infiltração de agentes, aliciamento de cidadãos cubanos para actos contra o Estado e a propriedade do povo, campanhas de desinformação, etc. A vertente da desinformação é constantemente utilizada, com alteração periódica do tema em voga. O actual tema em voga é o dos «médicos cubanos». E, como sempre acontece, o imperialismo encontra nos mais diversos paraísos «ocidentais» personagens que consciente ou inconscientemente servem de caixa de ressonância da desinformação.
    Vem isto a propósito de um artigo que o JN publicou no passado 23 de Outubro. Um artigo da secção «Opinião» da autoria do Dr. Miguel Guimarães, Presidente do Conselho Regional do Norte da Ordem dos Médicos: «Cuba e Portugal: direitos humanos são negociáveis?».
    Enviámos ao JN um artigo respondendo às «denúncias» do Dr. Guimarães. Tinha quase o mesmo número de palavras do supracitado. Foi rejeitada a sua publicação com base em que teria sido um erro terem-no publicado na secção de «Opinião», dado ser reservada a opiniões contratadas, e que não iriam repetir o erro… Aceitaram, contudo, publicar uma versão resumida (cerca de 1/3 do original) que o próprio JN elaborou. O texto final mereceu a nossa aprovação e saiu no JN em 24 de Novembro. Embora contribuindo para o esclarecimento que desejávamos, o resumo publicado é demasiadamente curto para um cabal esclarecimento. Aqui fica por inteiro o que considerávamos importante dizer.
*    *    *
    O título do artigo do Dr. Guimarães coloca uma pergunta de retórica. O conteúdo aborda o tema de momento usado para atacar o regime cubano: a alegada «exploração humana», por parte de Cuba, dos seus compatriotas médicos a prestar serviço em países carenciados de quadros médicos, ao abrigo de contratos inter-governamentais.
    O Dr. Guimarães baseia a sua discorrência numa única fonte: um artigo da revista brasileira «Veja». Artigo de Fevereiro de 2014 expondo denúncias de uma médica (Ramona M. Rodriguez) integrante de um contingente de 4.000 médicos cubanos, chegado ao Brasil em meados de 2013 no âmbito do programa brasileiro «Mais Médicos».
    À primeira vista, as denúncias são chocantes e parecem substanciais. Resta saber se são verdadeiras e qual o valor real do seu conteúdo. Desde já, um reparo. Qualquer intelectual sensato e honesto, ao escrever sobre questões sociais, históricas ou políticas, não se deve basear numa única fonte de informação. Ainda para mais uma fonte pouco séria como a revista «Veja», conhecida no Brasil pelas suas mentiras; uma fonte que se opôs ao programa da vinda dos cubanos ([1]) argumentando que Cuba tinha um dos piores sistemas de saúde do mundo (!) e «vai inundar o Brasil com espiões comunistas». O intelectual sensato e honesto deve, nas questões sociais, históricas ou políticas (e não só!), confrontar várias fontes, questionar porque razão dizem o que dizem, e coligir dados factuais, quantitativos e qualitativos, de fontes autorizadas, que alicercem as afirmações. Pelos vistos, não o entende assim o Dr. Guimarães, Presidente do Conselho Regional do Norte da Ordem dos Médicos.
    Analisemos as denúncias socorrendo-nos de fontes autorizadas governamentais do Brasil e de Cuba, de organismos da ONU, da OMS, do Banco Mundial, e outras:
   
à «Para Ramona […] o maior motivo de indignação foi perceber que obtinha apenas mil reais por mês, dos cerca de 10 mil que Brasília pagava tanto a Havana como a todos os colegas que integravam o “Mais Médicos”. Desumanos e indignos 10%, que em Portugal representariam um ordenado pouco superior aos 323 euros».
Esta denúncia contém três erros. 1) Os médicos cubanos recebiam 933 reais no Brasil e 1.400 reais numa conta em Cuba (Ministério da Saúde do Brasil, [2]). Um total de 2.333 reais e não de 1.000 reais. Recebiam também alojamento. 2) Só certos profissionais não cubanos recebiam 10 mil reais e não «Havana». 3) Os índices de paridade de poder de compra  mostram que 1 € em Portugal tinha, em 2013, um poder de compra de 2,56 € no Brasil ([3]). Os 933 reais, à taxa de câmbio usada pelo Dr. Guimarães, correspondem a 301 €. Mas não basta aplicar a taxa de câmbio, como fez o Dr. Guimarães. É que em termos de poder de compra os 301 € no Brasil correspondem, em média, a 771 € em Portugal ([3]). Os 1.400 reais em Cuba, fazendo contas semelhantes, correspondem em Portugal a 2.940 €. Portanto, um total de 3.711 €. Há muitos médicos portugueses cujo ordenado (líquido ou bruto) é inferior.
à «Ramona […] denunciou a situação esclavagista […] e obrigou o regime cubano a subir-lhes o ordenado».
1) Em 2013 o rendimento mensal mediano das famílias portuguesas foi inferior a 681 (tomando ano = 12 meses como no Brasil). Como 681 € é inferior a 771 €, temos de concluir, de acordo com o Dr. Guimarães, que 50% da população portuguesa vive numa «situação esclavagista». E se tivermos em conta os 3.711 € totais dos médicos cubanos, a coisa complica-se: 99% dos portugueses, com rendimento mensal abaixo de 3.014 € em 2013, também estariam numa «situação esclavagista»! 2) A ideia de que Ramona «obrigou o regime cubano» a subir ordenados é ridícula. De facto, foi a 28 de Fevereiro (o mesmo mês das denuncias à «Veja») que o aumento foi anunciado e esses aumentos passaram por negociações bilaterais Cuba-Brasil que não se fazem de um dia para o outro. O aumento foi anunciado pelo ministro de Saúde brasileiro ([2]). Os médicos cubanos passaram a ganhar 2.333 reais (os anteriores 933 + 1.400) e 571 reais passaram a ficar numa conta em Cuba. Em suma, o governo brasileiro (e não Cuba) pagou mais 571 reais por médico. O ordenado dos cubanos no Brasil é agora de 2.333 reais, equivalente a 1.928 € em Portugal. Escravos?
à «mais de 30 médicos cubanos pediram exílio o Brasil ou regressaram ao país de origem».
O ministro da Saúde brasileiro falou em Março de 2014 de 2 médicos que pediram asilo e em 3 que estavam desaparecidos ([4]). Ou seja, 5/4.000 = 0,125%. Os dados da cubainformacion.tv vão mais longe: referem que 0,2% dos médicos abandonaram o programa, número aliás inferior a qualquer dos outros países que enviou médicos neste programa e inferior ao número de médicos brasileiros que desiste do programa: 8,4% ([5]).
(Curiosamente, nunca se fala dos que «desertam» para Cuba, como o destacado actor espanhol Willy Toledo, ou os cubanos (incluindo médicos!) que pediram para regressar a Cuba depois de terem experimentado algumas das maravilhas do capitalismo.)
à «[Ramona] vigiada 24 horas por dia por uma “controleira”, também ela médica, mas cujas competências não passavam por atender doentes […]».
1) A "controleira" vigiava 24 horas por dia; i.e., não dormia. 2) Uma "controleira" sem exercer medicina seria recambiada, dado que o governo brasileiro pagou para ter médicos e não "controleiros". 3) O termo "controleira" é uma alfinetada no PCP e ajuda a situar o Dr. Guimarães. Que, aliás, tinha obrigação de lembrar-se que todas as missões de carácter humanitário (como por exemplo as da ONU), têm um chefe de missão. E o papel do elemento sénior, chefe de missão, é precisamente, sem descurar as suas tarefas específicas, estar atento a problemas profissionais e pessoais que possam prejudicar a missão.
à «qualquer deslocação para fora da localidade de trabalho tem de ser comunicada aos superiores e estão expressamente proibidas declarações à Comunicação Social.»
O meu filho trabalha no Brasil na função pública. Também ele não pode oficialmente deslocar-se «para fora da localidade de trabalho» sem comunicar e obter autorização superior. São estas as regras no Brasil, uma enorme república federativa de vários estados e com regiões de travessia perigosa. Também se compreende a proibição de «declarações à Comunicação Social». Qualquer declaração, ainda que inocente, à Comunicação Social, poderia ser interpretada como posição oficial de todos os médicos cubanos a trabalhar na mesma comunidade. Para não falar nas distorções a que se prestaria, como a promoção a verdade absoluta das «denúncias» de Ramona à «Veja». (Ramona vai agora para os EUA. Lá terá muitas ocasiões de prestar declarações sobre Cuba à Comunicação Social.)
à «código disciplinar férreo […] proibidos quaisquer contactos […] com habitantes locais “cuja conduta não esteja de acordo com os princípios e valores da sociedade cubana" (sic)».

Todas as missões têm «códigos», regulamentos de conduta. Que a não serem cumpridos implicam em sanção, como por exemplo a expulsão da missão. Qual é, portanto, a surpresa? A proibição de contactos sociais é certamente um disparate da «Veja», já que ao atenderem pacientes os médicos têm necessariamente contactos sociais. No que concerne ao «cuja conduta não esteja de acordo com os princípios e valores da sociedade cubana», que tanto choca o Dr. Guimarães que ele até tem o cuidado de colocar «sic», parece apropriado esclarecer o seguinte: Todas as missões de médicos cubanos têm sido elogiadas por organismos da ONU ([6]), pela Organização Mundial de Saúde (OMS, [7]) e pela organização dos Médicos sem Fronteiras ([8]), pela sua conduta exemplar. Ainda recentemente isso ficou demonstrado a propósito do ébola; Cuba foi o primeiro país a oferecer médicos voluntários para África, numa clara demonstração de conduta «de acordo com os princípios e valores da sociedade cubana».
    
    Depois de apresentar as «denúncias» da «Veja» o Dr. Guimarães aborda a questão dos médicos cubanos em Portugal. De facto, era aqui que ele queria chegar. As «denúncias» serviram apenas de intróito para vituperar a presença de médicos cubanos em Portugal, com a «transgressão dos direitos, liberdades e garantias dos cidadãos». Para reforçar a argumentação refere que o British Medical Journal, em 2010 também estaria muito condoído com a «clara violação dos direitos humanos, sociais, profissionais e laborais de 40 médicos» cubanos que vieram para Portugal. Até agora, que saibamos, não houve nenhuma queixa desses médicos sobre uma alegada «clara violação dos direitos humanos, sociais, profissionais e laborais». Já vimos que no Brasil tal «clara violação» é uma balela. Cozinhada por aqueles a quem os médicos cubanos incomodam nos seus direitos corporativos. E por Aécio Neves e seus apoiantes, adversários de Dilma Rousseff cujo governo lançou o «Mais Médicos».
    Deixando de lado a «Veja» e os senhores doutores e professores do British Medical Journal, terrivelmente bem informados sobre o que se passa em Portugal, o que se pode afirmar de concreto sobre as missões dos médicos cubanos em várias partes do mundo? Já assinalámos atrás que as apreciações oficiais são excelentes: ONU/Brasil ([6]): «Médicos cubanos revolucionam atendimento em comunidades no Espírito Santo. Em um dos casos, profissionais de Cuba já conseguiram resolver o atraso nas consultas de pré-natal, desenvolveram um programa de atendimento para os casos de hipertensão e diabetes e sistematizaram as consultas domiciliares». OMS ([7]): «"Cuba é conhecida mundialmente por sua capacidade de formação de médicos e enfermeiros destacados, bem como pela sua generosidade em ajudar outros países no caminho para o progresso", disse a Directora-Geral da OMS». Inquéritos oficiais do Brasil: «Inquéritos de várias entidades à população brasileira reportam percentagens de opinião favorável ao "Mais Médicos" de 73,9% com 61% em Porto Alegre e 59,3% em Rio Grande do Sul, um estado onde venceu Aécio contra Dilma». Para terminar, a opinião do Dr. José Antonio Bastos, presidente de Médicos sem Fronteiras de Espanha. «Me gustaría que comparásemos la respuesta del Gobierno cubano y la del Gobierno español, por ejemplo. El Gobierno cubano ha mandado 160 profesionales de salud que piensa aumentar a 300. Es el gobierno que ha dado una respuesta más rápida, más eficaz y más contundente a esta epidemia en el oeste de África. Eso es bastante impresionante, si comparamos las posibilidades de cada gobierno". Acrescenta esta notícia da cubainformacion.tv que «La mayoría de los grandes medios españoles han pasado por alto la incómoda comparación entre Cuba y España.». Como cá.
    Como contraponto às denúncias de Ramona é de elementar justiça citar as declarações do médico cubano Oswaldo Aloma que há 14 anos trabalha no Brasil ([9]). Segundo ele, as missões de solidariedade fazem parte do dia a dia do médico cubano e todo o médico que se forma em Cuba -- onde os estudos são totalmente gratuitos e onde não existe a mercantilização da medicina -- sabe que em algum momento será convocado para estas funções por que já faz parte da formação académica. Saberão (ou lembrar-se-ão) os leitores de um programa semelhante que completava a «formação académica» dos médicos? Pois foi o programa do Serviço Médico à Periferia, criado em 1975, em plena «ditadura comunista». Os jovens médicos prestavam serviço durante 1 ano nas regiões carenciadas do interior. Serviço que era obrigatório para prosseguir na carreira. Em 1979 recebiam cerca de 20 contos por mês (para além de alojamento) que equivaliam a uns actuais 1.224 € mensais ([11]).
    Em suma, com mais e melhores fontes, desmorona-se a pilha de «denúncias» usada pelo Dr. Guimarães para atacar a vinda de médicos cubanos para Portugal. Ele ainda termina dizendo que «Nada me move contra os médicos cubanos». Certo. Só o regime de Cuba o «move», como se infere de expressões como «os rigores do regime dos irmãos Castro», «O “Big brother” do Governo cubano», «Os “novos negreiros”», «situação esclavagista», e outras amabilidades. É claro que o Dr. Guimarães, como qualquer cidadão, tem o direito de escolher as suas hostilidades. E se essas hostilidades forem as «politicamente correctas» encontrarão certamente divulgação assegurada e detalhada nos jornais e na televisão. Só que, quando a hostilidade é posta ao serviço da distorção da verdade, deixa de ser um direito para ser um defeito.

    Quando pela primeira vez lemos o título do artigo do Dr. Guimarães, ainda pensámos que ele iria talvez comparar o estado da Saúde nos dois países, e mencionar, por exemplo, os 30% de crianças pobres em Portugal. Ou o nosso aumento de suicídios e de doenças infecciosas. Ou o aumento de mortalidade, nomeadamente infantil, relacionada com o aumento de pobreza, conforme denunciado por figuras destacadas da comunidade médica, bem como pelo Instituto Ricardo Jorge e pelo Sindicato dos Médicos (mas, se bem me lembro, não pela corporativa Ordem dos Médicos). E outras maravilhas do estado da Saúde em Portugal constantemente divulgadas a nível oficial. Todas elas configurando graves atentados aos direitos humanos. Todas, também, agravadas em resultado de negociações com a troika. Então, sim, ficaria plenamente justificada a pergunta de retórica do título: «Cuba e Portugal: direitos humanos são negociáveis?» É que Cuba não sofre desses atentados aos direitos humanos. E, sim, os «direitos humanos não deveriam ser negociáveis». Como o foram em Portugal.
    
Notas e Referências
    
[1] Até 2003 a «Veja» era favorável ao programa do governo brasileiro, chegando a criticar o Conselho Federal de Medicina por interpor uma acção pedindo o fim do convénio com Cuba. Só em 2013 mudou de 180º.
[2] http://gazetaweb.globo.com/noticia.php?c=362616&e=17 . Noticiado também na Folha de S. Paulo em 28/02/2014 e por outros órgãos noticiosos.
[3] O Banco Mundial disponibiliza os índices de Paridade de Poder de Compra (PPC) para o consumo privado em http://data.worldbank.org/indicator/PA.NUS.PRVT.PP. O país de referência é os EUA (PPC=1). Consultando a tabela, vemos que, em 2013, 1 USD no Brasil tinha o mesmo poder de compra que 1,79 USD nos EUA e 1 USD em Portugal tinha o mesmo poder de compra que 0,7 USD nos EUA. Note-se que, embora expressos em USD, a proporcionalidade dos PPCs mantém-se qualquer que seja a unidade monetária utilizada. Logo, o poder de compra no Brasil, relativamente a uma (qualquer) unidade monetária em Portugal é 1,79/0,7=2,56 vezes maior. Isto é, os 323 € em Portugal «compravam» no Brasil, em 2013, o equivalente a 2,56x301 = 769 € em Portugal.
[8] »Médicos sin Fronteras: Cuba ejemplo frente al ébola y España contraejemplo: Medios españoles callan», cubainformacion.tv: https://www.youtube.com/watch?v=NdXMVBvzMaY. Também vale a pena ver: https://www.youtube.com/watch?v=V61CWTLXM_M.
[10] Susete Francisco, Quando os serviços médicos saíram à rua, DN 25/4/1979 http://www.dn.pt/especiais/interior.aspx?content_id=1211699&especial=A%20revolu%E7%E3o%20de%20Abril&seccao=POL%CDTICA
[11] Os 20 contos de 1979 correspondem a nominalmente 99,76 euros. Mas esse valor tem de ser ajustado com as taxas de inflação (índices de preços no consumidor) dos anos que medeiam entre 1979 e 2013, o que corresponde a multiplicar por 12,27 (os valores das taxas podem ser encontrados na Pordata).