Periodicamente,
o imperialismo americano trata de agredir Cuba, actual porta-estandarte do
socialismo, pelos mais variados meios: boicote económico, infiltração de
agentes, aliciamento de cidadãos cubanos para actos contra o Estado e a
propriedade do povo, campanhas de desinformação, etc. A vertente da
desinformação é constantemente utilizada, com alteração periódica do tema em
voga. O actual tema em voga é o dos «médicos cubanos». E, como sempre acontece,
o imperialismo encontra nos mais diversos paraísos «ocidentais» personagens que
consciente ou inconscientemente servem de caixa de ressonância da
desinformação.
Vem isto a
propósito de um artigo que o JN publicou no passado 23 de Outubro. Um artigo da
secção «Opinião» da autoria do Dr. Miguel Guimarães, Presidente do Conselho Regional
do Norte da Ordem dos Médicos: «Cuba e Portugal: direitos humanos são
negociáveis?».
Enviámos ao
JN um artigo respondendo às «denúncias» do Dr. Guimarães. Tinha quase o mesmo
número de palavras do supracitado. Foi rejeitada a sua publicação com base em
que teria sido um erro terem-no publicado na secção de «Opinião», dado ser reservada
a opiniões contratadas, e que não iriam repetir o erro… Aceitaram, contudo,
publicar uma versão resumida (cerca de 1/3 do original) que o próprio JN
elaborou. O texto final mereceu a nossa aprovação e saiu no JN em 24 de
Novembro. Embora contribuindo para o esclarecimento que desejávamos, o resumo
publicado é demasiadamente curto para um cabal esclarecimento. Aqui fica por
inteiro o que considerávamos importante dizer.
*
* *
O título do
artigo do Dr. Guimarães coloca uma pergunta de retórica. O conteúdo aborda o tema
de momento usado para atacar o regime cubano: a alegada «exploração humana», por parte de Cuba, dos seus compatriotas médicos
a prestar serviço em países carenciados de quadros médicos, ao abrigo de
contratos inter-governamentais.
O Dr.
Guimarães baseia a sua discorrência numa única fonte: um artigo da
revista brasileira «Veja». Artigo de Fevereiro
de 2014 expondo denúncias de uma médica (Ramona M. Rodriguez) integrante de
um contingente de 4.000 médicos cubanos, chegado ao Brasil em meados de 2013 no âmbito do programa brasileiro
«Mais Médicos».
À primeira
vista, as denúncias são chocantes e parecem substanciais. Resta saber se são
verdadeiras e qual o valor real do seu conteúdo. Desde já, um reparo. Qualquer
intelectual sensato e honesto, ao escrever sobre questões sociais, históricas
ou políticas, não se deve basear numa única fonte de informação. Ainda para
mais uma fonte pouco séria como a revista «Veja», conhecida no Brasil pelas
suas mentiras; uma fonte que se opôs ao programa da vinda dos cubanos ([1])
argumentando que Cuba tinha um dos piores sistemas de saúde do mundo (!) e «vai
inundar o Brasil com espiões comunistas». O intelectual sensato e honesto deve,
nas questões sociais, históricas ou políticas (e não só!), confrontar várias
fontes, questionar porque razão dizem o que dizem, e coligir dados factuais,
quantitativos e qualitativos, de fontes autorizadas, que alicercem as
afirmações. Pelos vistos, não o entende assim o Dr. Guimarães, Presidente do Conselho
Regional do Norte da Ordem dos Médicos.
Analisemos
as denúncias socorrendo-nos de fontes autorizadas governamentais do Brasil e de
Cuba, de organismos da ONU, da OMS, do Banco Mundial, e outras:
à «Para Ramona […] o maior motivo de
indignação foi perceber que obtinha apenas mil reais por mês, dos cerca de 10
mil que Brasília pagava tanto a Havana como a todos os colegas que integravam o
“Mais Médicos”. Desumanos e indignos 10%, que em Portugal representariam um
ordenado pouco superior aos 323 euros».
Esta
denúncia contém três erros. 1) Os médicos
cubanos recebiam 933 reais no Brasil e 1.400 reais numa conta em Cuba (Ministério
da Saúde do Brasil, [2]). Um total de 2.333 reais e não de 1.000 reais. Recebiam
também alojamento. 2) Só certos
profissionais não cubanos recebiam 10
mil reais e não «Havana». 3) Os índices de paridade de poder
de compra mostram que 1 € em
Portugal tinha, em 2013, um poder de compra de 2,56 € no Brasil ([3]). Os 933 reais, à taxa de câmbio usada pelo Dr.
Guimarães, correspondem a 301 €. Mas não basta aplicar a taxa de câmbio, como
fez o Dr. Guimarães. É que em termos de poder de compra os
301 € no Brasil correspondem, em média, a 771 € em Portugal ([3]). Os
1.400 reais em Cuba, fazendo contas semelhantes, correspondem em Portugal a
2.940 €. Portanto, um total de 3.711 €. Há muitos médicos portugueses cujo
ordenado (líquido ou bruto) é inferior.
à «Ramona […] denunciou a situação
esclavagista […] e obrigou o regime cubano a subir-lhes o ordenado».
1) Em 2013
o rendimento mensal mediano das famílias portuguesas foi inferior a 681 €
(tomando ano = 12 meses como no Brasil). Como 681 € é inferior a 771 €, temos de
concluir, de acordo com o Dr. Guimarães, que 50% da população portuguesa vive
numa «situação esclavagista». E se tivermos em conta os 3.711 € totais dos
médicos cubanos, a coisa complica-se: 99% dos portugueses, com rendimento
mensal abaixo de 3.014 € em 2013, também estariam numa «situação esclavagista»!
2) A ideia de que Ramona «obrigou o regime cubano» a subir ordenados é ridícula.
De facto, foi a 28 de Fevereiro (o mesmo mês das denuncias à «Veja») que o
aumento foi anunciado e esses aumentos passaram por negociações bilaterais
Cuba-Brasil que não se fazem de um dia para o outro. O aumento foi anunciado
pelo ministro de Saúde brasileiro ([2]). Os médicos cubanos passaram a ganhar
2.333 reais (os anteriores 933 + 1.400) e 571 reais passaram a ficar numa conta
em Cuba. Em suma, o governo brasileiro
(e não Cuba) pagou mais 571 reais por médico. O ordenado dos cubanos no Brasil
é agora de 2.333 reais, equivalente a 1.928 € em Portugal. Escravos?
à «mais de 30 médicos cubanos pediram
exílio o Brasil ou regressaram ao país de origem».
O ministro da Saúde brasileiro falou em Março de 2014 de 2 médicos que
pediram asilo e em 3 que estavam desaparecidos ([4]). Ou seja, 5/4.000 = 0,125%.
Os dados da cubainformacion.tv vão
mais longe: referem que 0,2% dos médicos abandonaram o programa, número aliás
inferior a qualquer dos outros países que enviou médicos neste programa e
inferior ao número de médicos brasileiros que desiste do programa: 8,4% ([5]).
(Curiosamente, nunca se fala dos que «desertam» para Cuba, como o destacado actor espanhol Willy Toledo, ou os
cubanos (incluindo médicos!) que pediram para regressar a Cuba depois de terem
experimentado algumas das maravilhas do capitalismo.)
à «[Ramona] vigiada 24 horas por dia por uma
“controleira”, também ela médica, mas cujas competências não passavam por
atender doentes […]».
1) A
"controleira" vigiava 24 horas por dia; i.e., não dormia. 2) Uma "controleira" sem
exercer medicina seria recambiada, dado que o governo brasileiro pagou para ter
médicos e não "controleiros". 3) O termo "controleira" é
uma alfinetada no PCP e ajuda a situar o Dr. Guimarães. Que, aliás, tinha
obrigação de lembrar-se que todas as missões de carácter humanitário (como por
exemplo as da ONU), têm um chefe de missão. E o papel do elemento sénior, chefe
de missão, é precisamente, sem descurar as suas tarefas específicas, estar
atento a problemas profissionais e pessoais que possam prejudicar a missão.
à «qualquer deslocação para fora da localidade
de trabalho tem de ser comunicada aos superiores e estão expressamente
proibidas declarações à Comunicação Social.»
O meu filho
trabalha no Brasil na função pública. Também ele não pode oficialmente
deslocar-se «para fora da localidade de trabalho» sem comunicar e obter autorização
superior. São estas as regras no Brasil, uma enorme república federativa de
vários estados e com regiões de travessia perigosa. Também se compreende a
proibição de «declarações à Comunicação Social». Qualquer declaração, ainda que
inocente, à Comunicação Social, poderia ser interpretada como posição oficial
de todos os médicos cubanos a trabalhar na mesma comunidade. Para não falar nas
distorções a que se prestaria, como a promoção a verdade absoluta das
«denúncias» de Ramona à «Veja». (Ramona vai agora para os EUA. Lá terá muitas
ocasiões de prestar declarações sobre Cuba à Comunicação Social.)
à «código disciplinar férreo […] proibidos
quaisquer contactos […] com habitantes locais “cuja conduta não esteja de
acordo com os princípios e valores da sociedade cubana" (sic)».
Todas as missões têm «códigos», regulamentos de conduta. Que a não
serem cumpridos implicam em sanção, como por exemplo a expulsão da missão. Qual
é, portanto, a surpresa? A proibição de contactos sociais é certamente um
disparate da «Veja», já que ao atenderem pacientes os médicos têm
necessariamente contactos sociais. No que concerne ao «cuja conduta não esteja
de acordo com os princípios e valores da sociedade cubana», que tanto choca o
Dr. Guimarães que ele até tem o cuidado de colocar «sic», parece apropriado
esclarecer o seguinte: Todas as missões de médicos cubanos têm sido elogiadas
por organismos da ONU ([6]), pela Organização Mundial de Saúde (OMS, [7]) e pela organização dos Médicos sem Fronteiras
([8]), pela sua conduta exemplar.
Ainda recentemente isso ficou demonstrado a propósito do ébola; Cuba foi o
primeiro país a oferecer médicos voluntários para África, numa clara
demonstração de conduta «de acordo com os princípios e valores da sociedade
cubana».
Depois de
apresentar as «denúncias» da «Veja» o Dr. Guimarães aborda a questão dos
médicos cubanos em Portugal. De facto, era aqui que ele queria chegar. As
«denúncias» serviram apenas de intróito para vituperar a presença de médicos
cubanos em Portugal, com a «transgressão dos direitos, liberdades e garantias
dos cidadãos». Para reforçar a argumentação refere que o British Medical Journal, em 2010 também estaria muito condoído com
a «clara violação dos direitos humanos, sociais, profissionais e laborais de 40
médicos» cubanos que vieram para Portugal. Até agora, que saibamos, não houve
nenhuma queixa desses médicos sobre uma alegada «clara violação dos direitos
humanos, sociais, profissionais e laborais». Já vimos que no Brasil tal «clara
violação» é uma balela. Cozinhada por aqueles a quem os médicos cubanos
incomodam nos seus direitos corporativos. E por Aécio Neves e seus apoiantes, adversários
de Dilma Rousseff cujo governo lançou o «Mais Médicos».
Deixando de lado
a «Veja» e os senhores doutores e professores do British Medical Journal, terrivelmente bem informados sobre o que
se passa em Portugal, o que se pode afirmar de concreto sobre as missões dos
médicos cubanos em várias partes do mundo? Já assinalámos atrás que as
apreciações oficiais são excelentes: ONU/Brasil ([6]): «Médicos cubanos revolucionam atendimento em comunidades no Espírito
Santo. Em um dos casos, profissionais de Cuba já conseguiram resolver o atraso
nas consultas de pré-natal, desenvolveram um programa de atendimento para os
casos de hipertensão e diabetes e sistematizaram as consultas domiciliares».
OMS ([7]): «"Cuba é conhecida mundialmente por sua capacidade de
formação de médicos e enfermeiros destacados, bem como pela sua generosidade em
ajudar outros países no caminho para o progresso", disse a Directora-Geral
da OMS». Inquéritos oficiais do Brasil: «Inquéritos de várias entidades à
população brasileira reportam percentagens de opinião favorável ao "Mais
Médicos" de 73,9% com 61% em Porto Alegre e 59,3% em Rio Grande do Sul, um
estado onde venceu Aécio contra Dilma». Para terminar, a opinião do Dr. José Antonio
Bastos, presidente de
Médicos sem Fronteiras de Espanha. «Me gustaría que comparásemos la respuesta del
Gobierno cubano y la del Gobierno español, por ejemplo. El Gobierno cubano ha
mandado 160 profesionales de salud que piensa aumentar a 300. Es el gobierno
que ha dado una respuesta más rápida, más eficaz y más contundente a esta
epidemia en el oeste de África. Eso es bastante impresionante, si comparamos
las posibilidades de cada gobierno". Acrescenta esta notícia da cubainformacion.tv que «La mayoría de
los grandes medios españoles han pasado por alto la incómoda comparación entre
Cuba y España.». Como
cá.
Como
contraponto às denúncias de Ramona é de elementar justiça citar as declarações
do médico cubano Oswaldo Aloma que há 14 anos trabalha no Brasil ([9]). Segundo
ele, as missões de solidariedade fazem parte do dia a dia do médico cubano e
todo o médico que se forma em Cuba -- onde
os estudos são totalmente gratuitos e onde não existe a mercantilização da
medicina -- sabe que em algum momento será convocado para estas funções por
que já faz parte da formação académica. Saberão (ou lembrar-se-ão) os leitores de
um programa semelhante que completava a «formação académica» dos médicos? Pois
foi o programa do Serviço Médico à Periferia, criado em 1975, em plena
«ditadura comunista». Os jovens médicos prestavam serviço durante 1 ano nas
regiões carenciadas do interior. Serviço que era obrigatório para prosseguir na carreira. Em 1979 recebiam cerca
de 20 contos por mês (para além de alojamento) que equivaliam a uns actuais
1.224 € mensais ([11]).
Em suma, com
mais e melhores fontes, desmorona-se a pilha de «denúncias» usada pelo Dr. Guimarães
para atacar a vinda de médicos cubanos para Portugal. Ele ainda termina dizendo
que «Nada me move contra os médicos cubanos». Certo. Só o regime de Cuba o
«move», como se infere de expressões como «os rigores do regime dos irmãos
Castro», «O “Big brother” do Governo cubano», «Os “novos negreiros”», «situação
esclavagista», e outras amabilidades. É claro que o Dr. Guimarães, como
qualquer cidadão, tem o direito de escolher as suas hostilidades. E se essas
hostilidades forem as «politicamente correctas» encontrarão certamente divulgação
assegurada e detalhada nos jornais e na televisão. Só que, quando a hostilidade
é posta ao serviço da distorção da verdade, deixa de ser um direito para ser um
defeito.
Quando pela
primeira vez lemos o título do artigo do Dr. Guimarães, ainda pensámos que ele
iria talvez comparar o estado da Saúde nos dois países, e mencionar, por
exemplo, os 30% de crianças pobres em Portugal. Ou o nosso aumento de suicídios
e de doenças infecciosas. Ou o aumento de mortalidade, nomeadamente infantil,
relacionada com o aumento de pobreza, conforme denunciado por figuras
destacadas da comunidade médica, bem como pelo Instituto Ricardo Jorge e pelo
Sindicato dos Médicos (mas, se bem me lembro, não pela corporativa Ordem dos
Médicos). E outras maravilhas do estado da Saúde em Portugal constantemente
divulgadas a nível oficial. Todas elas configurando graves atentados aos
direitos humanos. Todas, também, agravadas em resultado de negociações com a troika. Então, sim, ficaria plenamente
justificada a pergunta de retórica do título: «Cuba e Portugal: direitos
humanos são negociáveis?» É que Cuba não
sofre desses atentados aos direitos humanos. E, sim, os «direitos humanos não deveriam ser negociáveis». Como o
foram em Portugal.
Notas e Referências
[1] Até 2003 a «Veja» era favorável ao
programa do governo brasileiro, chegando a criticar o Conselho Federal de
Medicina por interpor uma acção pedindo o fim do convénio com Cuba. Só em
2013 mudou de 180º.
[2] http://gazetaweb.globo.com/noticia.php?c=362616&e=17
. Noticiado também na Folha de S. Paulo em 28/02/2014 e por outros órgãos noticiosos.
[3] O Banco Mundial disponibiliza os índices de Paridade de Poder de Compra (PPC)
para o consumo privado em http://data.worldbank.org/indicator/PA.NUS.PRVT.PP.
O país de referência é
os EUA (PPC=1). Consultando a tabela, vemos que, em 2013, 1 USD no Brasil tinha
o mesmo poder de compra que 1,79 USD nos EUA e 1 USD em Portugal tinha o mesmo
poder de compra que 0,7 USD nos EUA. Note-se que, embora expressos em USD, a
proporcionalidade dos PPCs mantém-se qualquer que seja a unidade monetária
utilizada. Logo, o poder de compra no Brasil, relativamente a uma (qualquer)
unidade monetária em Portugal é 1,79/0,7=2,56 vezes maior. Isto é, os 323 €
em Portugal «compravam» no Brasil, em 2013, o equivalente a 2,56x301 = 769 € em
Portugal.
[5] http://www.cubainformacion.tv/index.php/objetivo-falsimedia/58122-fracaso-estrepitoso-de-la-campana-mediatica-contra-medicos-de-cuba-en-brasil-solo-consigue-un-02-de-abandonos.
Ver também http://www.cubainformacion.tv/index.php/lecciones-de-manipulacion/54808-lo-que-no-nos-cuentan-la-embajada-de-eeuu-detras-de-la-campana-contra-cooperantes-medicos-de-cuba-en-brasil.
Os 8,4% são de fonte
autorizada brasileira: http://www.cartacapital.com.br/saude/mais-medicos-menor-indice-de-abandono-e-cubano-5227.html
.
[8] »Médicos sin Fronteras: Cuba ejemplo frente al ébola y España contraejemplo:
Medios españoles callan», cubainformacion.tv: https://www.youtube.com/watch?v=NdXMVBvzMaY.
Também vale a pena ver: https://www.youtube.com/watch?v=V61CWTLXM_M.
[10] Susete Francisco, Quando os serviços médicos saíram à rua, DN 25/4/1979 http://www.dn.pt/especiais/interior.aspx?content_id=1211699&especial=A%20revolu%E7%E3o%20de%20Abril&seccao=POL%CDTICA
[11] Os 20 contos de 1979 correspondem a nominalmente 99,76 euros. Mas esse valor tem de ser ajustado com as taxas de inflação (índices de preços no
consumidor) dos anos que medeiam entre 1979 e 2013, o
que corresponde a multiplicar por 12,27 (os valores das taxas podem ser
encontrados na Pordata).