quinta-feira, 24 de julho de 2014

Megaritmostiflose... ou outra coisa?

    Na Palestina decorre mais uma operação de agressão fascista das forças armadas israelitas. Começou por bombardeamentos e agora é já uma invasão terrestre. O PM israelita de extrema-direita Netanyahu já disse que estão prontos «para tomar toda a faixa de Gaza». Revelou o que sempre quis.
    A actual agressão deu-se a pretexto do sequestro seguido de assassínio de três colonos adolescentes por um grupelho de marginais na Cisjordânia. Apesar da zona não ser controlada pelo Hamas e do Hamas negar o envolvimento, isso não serviu de nada. Vários factos são suspeitos: o imediato atribuir de culpas ao Hamas sem quaisquer provas; o estilo amador como foi conduzido o sequestro, cujos erros, conforme referido por vários comentadores, teriam acabado por causar o assassinato; o facto de os serviços secretos israelitas saberem, poucas horas a seguir ao sequestro, que os raptados estavam mortos; apesar disso, a campanha nos media «Tragam de volta os nossos rapazes» continuou durante semanas para incitar à agressão; a forma como foi lançado o ataque (logística e escalonamento) aponta para que o plano da agressão já tinha sido elaborado, só faltando a provocação final para convencer a «opinião pública». Agressão de uma crueldade e brutalidade inteiramente desproporcionadas, na faixa de Gaza e não na Cisjordânia.
    As pressões internacionais tinham recentemente levado a retomar (mais uma vez!) as conversações de paz. Já perdemos a conta a quantas houve desde que em 1948 a ONU decidiu que na antiga Palestina nasceriam dois Estados. O Estado de Israel nasceu. Nasceu com o apoio dos judeus ricos da América. Nasceu para ser o cão de fila dos interesses imperialistas, guardando os poços de petróleo do Médio Oriente. Com a complacência benevolente dos Estados árabes reaccionários onde o capital é quem mais ordena, como a Arábia Saudita, Oman, Emiratos do golfo pérsico e o Egipto de Sadat e Mubarak. Nasceu à custa de massacres de vítimas indefesas, como as de Deir Yassin e de Jennin. Com todas as marcas de atrocidade próprias dos genocídios. Atrocidades (p. ex., em Deir Yassin os soldados-terroristas judeus cortaram abdómenes de mulheres grávidas e massacraram bebés nas mãos das mães) e crimes de guerra que vitimaram centenas de palestinos. Crimes que continuam impunes. Uma contabilização muito por baixo das vítimas de 1947-48 (não tem em conta todos os massacres, que foram inúmeros) consta na tabela abaixo:

Os 702 palestinos aqui contabilizados foram massacrados para
que Israel nascesse.
Local do massacre
Data
Mortos
Yehida
13/12/1947
31
Khisas
18/12/1947
10
Qazaza
19/12/1947
5
Al-Sheikh
1/1/1948
40
Deir Yassin
9-10/4/1948
107
Naser Al-Din
13-14/4/1948
50
Beit Daras
21/5/1948
50
Dahmash Mosque
11/7/ 1948
350
Dawayma
29/10/1948
90
TOTAL
-
702

    Israel nasceu como Estado Sionista (o sionismo é a versão racista do nacionalismo judeu) com discriminação racista contra os seus cidadãos árabes, obrigados a passes e controlos de passagem como os negros o eram no regime do apartheid da África do Sul, e inclusive racismo entre as várias estirpes de proveniência dos judeus (sefarditas, askenazi, oriundos da Etiópia, oriundos da Somália, etc.). Num documentário que vimos num canal de TV holandês, sobre os controlos de passagem a que os israelitas obrigam os seus cidadãos árabes, um soldado israelita, entrevistado sobre a necessidade dos passes para os árabes, comentava que os palestinos eram como os macacos.
    Um mito muito divulgado pelos sionistas e seus apoiantes (em particular, os imperialistas britânicos e ianques), que encontra eco nos meios de comunicação portugueses, é que os israelitas não faziam(em) mais do que defender-se. Totalmente falso. Os massacres decorreram de ataques premeditados e bem preparados a vítimas indefesas. Até fontes imperialistas reconhecem isso. Uma grande parte das vítimas era mulheres e crianças. Estes massacres de 1947-48 espalharam o terror na população e levaram à diáspora palestina para os países limítrofes (Jordânia, Líbano, Síria, Egipto). Como consequência da preparação e do factor surpresa dos ataques o número de baixas israelitas foi extremamente reduzido. Por exemplo, no massacre de Deir Yassin morreram, segundo a wikipedia, apenas 4 judeus: 1 judeu para 27 palestinos.
    Assim, nasceu o Estado de Israel. O Estado da Palestina que estava previsto nascer nunca nasceu. As conversações e cimeiras sucederam-se sem resolver este problema básico: dar à nação palestina o seu Estado, conforme a resolução da ONU de 1948. As autoridades sionistas sempre usaram um jogo duplo: por um lado, como propaganda em declarações à imprensa, mostravam-se de quando em quando disponíveis para o diálogo; por outro lado, arranjavam sempre desculpas para protelar encontros e decisões recorrendo sistematicamente a provocações. As provocações israelitas eram e são de vários estilos. O mais comum é este: constroem colonatos ilegais, os palestinos obviamente revoltam-se por se verem espoliados dos seus terrenos e casas, recebem os espoliadores à pedrada, e os israelitas respondem às pedras com tiros a matar e apressam-se a afivelar a máscara de vítimas dizendo que têm de adiar as conversações porque os árabes «querem destruir o Estado de Israel». É certo que existem grupelhos palestinos que têm cometido actos terroristas. Mas isso é um fenómeno esporádico e de pequena dimensão. O que não quer dizer que não lamentemos as vítimas e não repudiemos o terrorismo contra civis em todas as suas formas. Além disso, deve-se ter em conta que Israel também tem os seus grupelhos terroristas. Ainda agora, no início desta «crise de Gaza», três extremistas judeus raptaram um adolescente palestino de 16 anos, Mohammed Abu Khdeir, e mataram-no incendiando-o vivo (noticiado em alguns meios de comunicação, incluindo o The Guardian e, parcialmente, o jornal israelita Haaretz). Portanto, ao contrário do que os meios mais alinhados com o imperialismo pretendem fazer crer – e aqui incluímos claramente os jornais portugueses DN, JN, CM e Público, bem como todos os canais de TV portugueses – o terrorismo não é um exclusivo dos palestinos. Desde o nascimento de Israel que ficou claro e comprovado por factos que terroristas é coisa que não falta entre os sionistas.
    A propósito de «colonatos». Há certas palavras tão badaladas que aos mais distraídos parecem ter-se tornado inócuas. Mas, afinal, colonatos são a expressão do colonialismo. Se há colonatos quer dizer que há colonos; colonos que ocupam as terras dos «selvagens»; neste caso, dos palestinos. Ora, a ONU, na sua resolução 1514 (XV) de 14 de Dezembro de 1960 (Declaration on the Granting of Independence to Colonial Countries and Peoples) condenou o colonialismo. Apesar disso, aí estão os EUA, a UE e os Ban-Ki-Moons sempre a dar pancadinhas de encorajamento nas costas dos Sharons, Olmerts e Netanyahus. Quando têm alguma frase de desagrado ela soa no género «seus mauzinhos! Não deviam fazer isso...», mas os israelitas já há muito sabem o que significam tais frases de desagrado e fica tudo na mesma porque o dinheiro e os interesses imperiais falam mais alto. Isto é, na mesma não fica. Apesar das muitas condenações que são meros exercícios de retórica, a espoliação de casas e terras para os colonos continua.
   
O Estado da Palestina não nasceu. Não nasceu porque, além de isso ser contrário aos interesses dos sionistas que querem reconstituir o «Grande Israel», um Estado Palestino de alguma forma servindo de tampão e empecilho às incursões punitivas dos sionistas na região (Líbano, Síria, Jordânia, Egipto) não interessa aos imperialistas. (Nada de impedir Israel de punir quem deseja libertar-se da garra dos imperialistas!) Por isso mesmo passam sempre uma esponja por cima dos massacres, provocações e tácticas dilatórias dos sionistas.
    
    No início do artigo, dissemos: «mais uma operação de agressão fascista das forças armadas israelitas». E, se calhar, há leitores que pensarão: «Lá está este fulano a exagerar. Então não se está mesmo a ver que Israel é um Estado democrático?» Impõe-se aqui uma justificação, já que procuramos sempre não afirmar nada que não tenha sido devidamente pensado e ponderado; podemos, obviamente, falhar nessa intenção e estamos sempre prontos a aceitar correcções fundamentadas. Passemos à justificação.
    Devemos, primeiro que tudo, ter em conta que a actual época histórica é bem diferente da dos fascismos de Mussolini, Hitler, Franco e Salazar. Não existe uma URSS forte, com uma economia socialista, apoiando (apesar de vários erros) as lutas dos trabalhadores em todo o mundo e revoluções socialistas como as de Cuba, China e Vietname. O capitalismo neoliberal e cada vez mais reaccionário dos EUA (já pensaram bem no que Obama prometia e no que fez e está a fazer?) e seus aliados permite facilmente a existência de algo que era impensável no tempo de Mussolini e Hitler: Estados pluripartidários, com eleições parlamentares, mas com continuadas políticas essencialmente fascistas, que esmagaram brutalmente os direitos dos trabalhadores, que possuem meios de controlar qualquer embrião de dissidência a nível global (lembremo-nos do sistema PRISMA do NSA revelado por Snowden e outros) tomando medidas preventivas e preemptivas, que controlam os maiores meios de comunicação social formatando o pensamento dominante nas populações, e que têm vindo a cultivar o racismo e a xenofobia como forma de lançar trabalhadores contra trabalhadores, nações contra nações. E fazem tudo isto sem, para já, grande oposição por parte dos trabalhadores, porque estes estão divididos, confundidos, a maioria crente de que «não há alternativa», e sem liderança à altura da situação por parte de partidos operários e comunistas (onde se instalou o rotineirismo e a debilidade e fossilização ideológicas). Ora, se o esclarecimento, liderança e capacidade de luta dos trabalhadores são reduzidos, é claro que o grande capital pode passar sem o totalitarismo de Hitleres para os controlar, conduzindo, apesar de tudo, políticas do mesmo cunho.
     A actual «passividade» portuguesa é o reflexo desta divisão, confusão, crença de que o capitalismo é inelutável, debilidade ideológica e de actuação da esquerda consequente. Exemplos de Estados actuais, pluripartidários e com «democracia parlamentar» mas essencialmente fascistas: Ucrânia (governado pelos fascistas do Sector Direito que inclusive já ilegalizou o partido comunista), Geórgia, Moldóvia, Hungria, Colômbia. Outros Estados oscilam entre políticas abertamente fascistas e outras mais tradicionais da «direita democrática». É o caso de Israel. O Likud, partido de Netanyhu, é o partido que mais tem dominado a política de Israel (com breves interregnos da direita trabalhista) e que se declara neo-sionista e nacional-liberal. No fundo o que isto quer dizer é que está ao serviço do capital mais reaccionário (nacional-liberal) e de que quer ocupar as terras palestinianas de Gaza, Judeia e Samaria (pedra chave da ideologia neo-sionista) supostamente por razões religiosas (!). Hitler também era nacional-socialista e queria ocupar o leste europeu porque os alemães precisavam de «espaço vital». Quer seja por «espaço vital» quer seja por «motivos religiosos» vai dar ao mesmo: trata-se de uma simples pretexto para justificar uma política de rapina.
    Tal como Hitler precisou de provocações para «justificar» e iniciar guerras de agressão há muito planeadas, também Netanyahu age da mesma forma. A actual agressão a Gaza começou com o sequestro de um judeu e rapidamente escalou para um ataque frontal à faixa de Gaza com o uso desproporcionado de força, conforme referido por alguns meios de comunicação e pela ONU. Note-se que entre a população árabe também há elementos venais prontos a colaborar com os serviços secretos israelitas na montagem de provocações.
    Parece-nos que está assim justificada a nossa afirmação de «agressão fascista».
    Os israelitas têm também procurado justificar os seus ataques como necessários para destruir as bases de mísseis do Hamas (partido filiado na Irmandade Muçulmana, que tem a seu favor lutar pela auto-determinação palestina, mas a desfavor o seu obscurantismo religioso e, no passado, actos terroristas). Todavia, neste último ataque não foi o Hamas a iniciar ataques com mísseis. Mísseis, aliás, que têm provado ser muito ineficazes face aos meios de que dispõe Israel de os detectar e abater.
    Muitos comentadores ligados ao governo de Israel também tocam muito na tecla de que o Hamas não reconhece Israel. O Hamas responde, e com razão, como é que pode reconhecer um Estado que só os oprime e lhes nega o direito à existência. Não nos esqueçamos que, como disse alguém, a faixa de Gaza é como o ghetto de Varsóvia, com Israel a proibir todos os movimentos para fora da faixa e inclusive a interditar o seu abastecimento em bens de primeira necessidade! Alimentos, medicamentos e outros bens só através de túneis que comunicam com o Egipto. Os 1,8 milhões de habitantes de Gaza suportam todos os dias uma vida de desespero, cativos e cercados por um poder militar brutal, sob constantes incursões arbitrárias de soldados, tanques e aviões que atiram a matar. Quando José Saramago em visita à Palestina comparou a faixa de Gaza ao campo de concentração de Auschwitz, estava, em muitos sentidos, dentro da razão.
*    *    *
    Na agressão injustificada à faixa de Gaza em 2008 morreram 1400 palestinos (5000 ficaram feridos), a maioria dos quais civis, mulheres e crianças. Israel usou armas proibidas incluindo armas de fósforo. Dos israelitas morreram 13 (4 por fogo amigo).
    Na agressão injustificada à faixa de Gaza em 2012 morreram 133 palestinos e 3 israelitas.
    Os media ocidentais falaram até à exaustão sobre o soldado israelita Gilad Shalit sequestrado pelo Hamas e que veio a ser libertado e de boa saúde durante uma troca de prisioneiros. Mas não falam das 1500 crianças palestinianas mortas pelos sionistas desde 2000.
    Segundo um relatório da ONU (United Nations Office for the Co-ordination of Humanitarian Affairs, http://www.ochaopt.org/documents/CAS_Aug07.pdf ) de 2000 até 2007 tinham morrido 4228 palestinos e 1024 israelitas, dos quais 855 crianças palestinas e 116 israelitas.
    No actual ataque de Israel a Gaza, que já mereceu um levantamento de inquérito da ONU por suspeitas de crimes de guerra dos israelitas, o balanço das vítimas em 19 de Julho é este: 299 mortos palestinos, 13 israelitas. Dos 299 palestinos 60 são crianças.
    Para nós, todos os mortos inocentes, sejam palestinos ou israelitas, são de lamentar. Mas é óbvio que, dentro do lamento geral, não podemos perder de vista a diferença entre os que morreram e não tiveram culpa nenhuma disso (como civis e, acima de tudo, as crianças) que é o caso da esmagadora maioria das vítimas palestinas, e os participantes directos nos massacres, que é o caso dos soldados israelitas.
    Também não podemos perder de vista a desproporção dos números. Cada morto é de lamentar, mas 100 mortos são 100 vezes mais de lamentar que um morto.
   
Por isso mesmo aqui registamos a nossa indignação perante o jornalismo imoral dos países ocidentais, incluindo o dos media portugueses acima citados – DN, JN, CM, Público, canais de TV --, que martelam até à exaustão a morte de, por exemplo, uma criança israelita, mas remetem ao silêncio ou trivializam como simples estatística a morte de milhares de crianças palestinas.
   
    Quando manifestavávamos esta nossa indignação a um médico cujo nome esquecemos, dizia-nos ele que se tratava de uma doença. A maior parte dos jornalistas ocidentais que trabalham ao serviço do capital contraem uma doença conhecida por megaritmostiflose, a cegueira aos grandes números...
   
*    *    *
   
    Na manhã de 29 de Novembro de 1864 as forças do Coronel John Chivington, pregador metodista, atacaram de surpresa a aldeia cheyenne de Sand Creek. A aldeia era legal, obedecendo ao Tratado de Fort Wise. No tipi do chefe cheyenne, que defendia uma convivência pacífica, estava até hasteada a bandeira dos EUA! Mas, recentemente, tinha sido encontrado ouro nas Montanhas Rochosas, perto do acampamento índio... O religioso Chivington disse então: «Maldito seja quem simpatize com os índios!... Eu vim para matar índios e acredito que é justo e honroso usar quaisquer meios sob o céu do Senhor para matar índios... Matem-nos e escalpem-nos, grandes e pequenos; as lêndeas criam piolhos.»
    Não esqueçamos que no Oeste americano a palavra de ordem era: «um bom índio é um índio morto».
    Na noite de 28 de Novembro os 700 soldados de infantaria e cavalaria tinham bebido até à embriaguez, para ganhar «coragem» e festejar antecipadamente a vitória. Na manhã de 29 os guerreiros não estavam na aldeia, tinham ido caçar búfalos. Só estavam pouco mais de 130 índios, velhos, mulheres e crianças. Foram quase todos massacrados. Mais tarde, os seguintes testemunhos foram ouvidos no Congresso: «Vi corpos jazendo cortados aos pedaços [...] mulheres cortadas aos pedaços... com facas, escalpadas; com os cérebros para fora; crianças de dois e três meses»; «dedos e orelhas eram cortados dos corpos para tirar as jóias. O corpo de Antílope Branco [...] foi o alvo principal. Além de o escalparem cortaram-lhe o nariz, as orelhas e os testículos – neste caso para fazer um saquinho para o tabaco»
    Morreram 133 índios, 105 dos quais mulheres e crianças. Das forças de Chivington morreram 24, muitos por fogo amigo devido ao estado de bebedeira.
    Uns dias mais tarde, em 17 de Dezembro, começava assim a notícia do massacre de Sand Creek no jornal Rocky Mountain News: «Entre os brilhantes feitos de armas das guerras com os índios a recente campanha dos voluntários do Colorado figurará na história com poucas que rivalizem, e nenhuma que a exceda nos resultados finais.»
    Atentemos: 133 índios mortos para apenas 24 baixas dos voluntários de Chivington. Então não é um resultado final excelente?
*    *    *

Megaritmostiflose? Não. É outra coisa. Para os sionistas e seus apoiantes imperialistas, bem como para toda a corja jornalística que, ao seu serviço, envenena as mentes da população, «um bom palestino é um palestino morto».

segunda-feira, 21 de julho de 2014

Jornalismo ao serviço da reacção: o abate do avião MH17

    O recente abate do MH17 da Air Malaysia sobre as imediações de Donetsk desencadeou uma onda de histeria reaccionária nos meios de comunicação alinhados com o imperialismo ianque. Os factos não importam aos novos cruzados anti-russos. O que importa é debitar mentiras e veneno, por todo o lado, mesmo ao nível de autoridades governamentais, para justificar a cruzada anti-russa.
    Vejamos alguns factos:
   
    - No passado Domingo o JN, no seu destaque do dia na contra-capa, verberava de indignação contra a falta de dignidade dos rebeldes pró-russos que bêbados e agressivos tinham impedido o acesso aos monitores  da Organização de Segurança e Cooperação da Europa (OSCE). Contudo, quem lesse com atenção o artigo no interior do jornal via que só um monitor, de nacionalidade holandesa, disse isso: que tinham sido impedidos de chegar ao local por rebeldes pró-russos que «pareciam bêbados» e agressivos. «Pareciam». Quantos monitores compõem a missão da OSCE a Donetsk? O JN, estranhamente, não o diz. E dizemos estranhamente porque essa informação  existia e se o JN no artigo mencionava «um» nada mais natural do que esclarecer «em quantos». Esclarecemos nós, com base em informação oficial. São 30. Portanto, um em 30. E esse trigésimo foi suficiente para desencadear a verborreia pró-ianque do escrevinhador do destaque do JN. Quem será este reles escrevinhador que se esconde no anonimato?
   
    - Mas é assim tão estranho que os rebeldes pró-russos impedissem o acesso aos monitores da OSCE, se é que isso de se deu no Sábado? Nem por isso. Quer fossem rebeldes pró-russos quer outros quaisquer é habitual um impedimento inicial de acesso para proteger a zona do desastre e controlar a detecção e posse das caixas negras. Sempre tal acontece em todos os desastres de aviação. Seja como for, foi divulgada no Domingo a comunicação oficial da missão OSCE dizendo que já tinham tido acesso ao local.
   
    - Os meios ligados ao imperialismo ianque também fizeram correr o rumor de que os rebeldes teriam levado e destruído as caixas negras. Era mentira. As caixas negras já foram entregues pelos rebeldes a quem de direito: aos representantes da Air Malaysia.
   
    - O escrevinhador do destaque também se mostrava indignadíssimo com o roubo dos cartões de crédito das vítimas por parte dos rebeldes. Papagueava Cameron, PM do Reino Unido, que pôs a correr esse rumor. No Domingo o rumor tinha caído. Neste momento ainda não foi apresentada qualquer evidência desse facto.
    
    - Obama e Cameron têm-se desfeito em iracundas acusações contra a Rússia. Obama, naquele seu estilo definitivo e inapelável de ser humano excepcional, integrante do grupo dos donos do mundo, disse estar convicto da culpa dos russos, que supostamente teriam fornecido os mísseis terra-ar aos rebeldes e que o sistema de satélites dos EUA teria imagens de que o míssil foi disparado pelos rebeldes. A Rússia já pediu, logo no início, para que os EUA apresentassem as imagens. Os EUA ainda não apresentaram as imagens que dizem ter.

    - O regime fascista de Kiev também se destaca, obviamente, na campanha anti-russa. Apresentou uma gravação audio que supostamente mostrava os rebeldes a referirem-se ao abate do avião. Técnicos russos analisaram a gravação e denunciaram-na como uma falsificação, construída à custa de colagens.
   
    - Entretanto, grassa por toda a UE uma santa indignação anti-russa. Tudo serve aos media para propagar essa santa indignação. Desde rumores não confirmados ou ridículos a simples distorções da verdade. Uma distorção (por omissão) serviu ao PM holandês (Mark Rutte do Partido Liberal, um partido historicamente de alma e coração com os meios mais reaccionários dos EUA) para exibir a sua tremenda indignação numa declaração pública. Relacionava-se com uma imagem de um rebelde a exibir uma boneca achada nos destroços do avião, numa atitude que os media holandeses consideraram de exibição de troféu. Isso bastou para Rutte classificar o acto como revoltante. Só que a imagem era uma imagem. Uma imagem de um vídeo. E quem visse o vídeo todo veria que em vez da atitude de exibir troféu se tratava sim de uma atitude de homenagem. O rebelde, depois de ter levantado a boneca no ar – a imagem que tanto desgostou Rutte --, tirou o boné da cabeça em sinal de respeito e benzeu-se fazendo o sinal da cruz.
   
    (A propósito, a maior parte das vítimas do MH17 eram holandeses e a Holanda tem-se claramente destacado entre os países da UE pelo seu alinhamento fortemente reaccionário e pró-imperialista. Conforme vimos acima, o monitor da OSCE que  achou os rebeldes bêbados e agressivos, era holandês. Não admira.)

    Portanto, do lado dos que acusam os rebeldes, temos mentiras, prováveis falsificações, rumores e factos por confirmar. Quer isto dizer que os rebeldes estão ilibados? Não afirmámos isso. Parece-nos que a evidência até agora encontrada é ainda bastante insuficiente para chegar a uma conclusão definitiva. A análise das caixas negras certamente irá contribuir para isso.
    Note-se que não seria de admirar se os rebeldes tivessem abatido o avião, tanto mais que já foram bombardeados por aviões de Kiev voando a elevada altitude que lançaram bombas incendiárias. Só em Lugansk, os mortos já somam mais de 500. Se estivéssemos no lugar dos rebeldes (que não possuem aviões) estaríamos sempre prontinhos a abater aviões que nos sobrevoassem, em antecipação a qualquer ameixa caída do céu.
    Mas há um conjunto de factos que apontam para a culpabilidade directa ou indirecta de Kiev e seus apoiantes, os imperialistas ianques e europeus- Ei-los:
   
    -  Na altura do voo do MH17 existiam dois lançadores de mísseis terra-ar Buk, das tropas de Kiev, perto de Donetsk.
   
     - Foram retirados depois do abate do avião.
   
    - A rota do voo foi alterada pela torre de controlo de Kiev, quando o MH17 se aproximava da Ucrânia (proveniente de Amsterdão). Foi alterada de forma a passar por cima da zona de guerra perto de Donetsk. É uma rota bastante diferente da que os voos precedentes da Air Malaysia tomavam de Amsterdão para Kuala-Lumpur.
   
    - A torre de controlo de Kiev, também inexplicavelmente, deu instruções ao MH17 para baixar a sua altitude de 600 metros.
   
    - Na altura do abate do MH17 foi detectado por radares russos um jacto militar ucraniano Su-25 voando próximo. O jacto, logo a seguir afastou-se e desapareceu.

   Todos estes factos foram documentados com imagens numa conferência de imprensa do Ministério da Defesa russo. As autoridades russas já disseram que iam entregar as imagens e documentação a uma comissão de inquérito internacional.

    Todos estes factos são premeditadamente omitidos pelos  media «ocidentais».

    De facto, logo no início, surgia a pergunta: o que fazia um avião comercial voando por cima de uma zona que toda a gente sabe ser uma zona de guerra?
    Agora, com os novos factos revelados pelos russos, a interrogação sobe de tom. Porque razão a torre de controlo de Kiev deu instruções ao MH17 de seguir outra rota e de baixar a altitude voo? (Instruções a que o MH17 obedeceu.)

    Desde o início que Kiev, com apoio dos EUA e UE, tem tentado montar uma provocação, envolvendo a intervenção da Rússia, ainda que débil. Provocação que justificasse uma agressão militar da NATO e a completa subjugação de toda a Ucrânia. Agora, o incidente com o MH17, parece mais uma provocação. A questão das vítimas, para os fascistas e imperialistas é de somenos. Já no passado tiveram lugar provocações neste estilo. Para os fascistas e imperialistas as vítimas inocentes de provocações ou de agressões são apenas «collateral damage». Na defesa dos interesses egoístas dos 1% do topo a moral deles não é a nossa. E o jornalismo reaccionário esquece quaisquer considerações deontológicas e éticas.

quarta-feira, 16 de julho de 2014

A história ignominiosa do PS: de 1 de Janeiro a 25 de Abril de 1975

    Vimos como o PS, no período inicial da Revolução, se autoproclamava socialista, marxista e até revolucionário (http://revolucaoedemocracia.blogspot.pt/2014/06/a-historia-ignominiosa-do-ps-de-abril.html ). O abraço de Mário Soares dado a Álvaro Cunhal, quando este regressou do exílio, parecia sincero. O PS parecia posicionar-se como defensor de medidas anti-capitalistas colaborante na construção de uma democracia rumo ao socialismo.
    Este posicionamento do PS, que agora sabemos através de factos objectivos ter sido uma cortina de fumo, começa a mudar no período agora em análise.
    O acontecimento mais marcante deste período é o golpe militar (putsch) spinolista do 11 de Março de 1975, derrotado pela mobilização popular dinamizada pelo PCP, MDP/CDE, e outras forças de esquerda.
    A atitude do PS perante o golpe militar irá constituir uma de muitas demonstrações da duplicidade que o PS assume durante todo o período.

De 1 de Janeiro a 25 de Abril de 1975
A fase de duplicidade do PS

    Vimos como a seguir à intentona Palma Carlos os II e III Governos Provisórios, encabeçados pelo coronel (depois, brigadeiro) Vasco Gonçalves, militar que participara na construção do MFA e gozava da sua inteira confiança, implementaram e apoiaram uma série de medidas democráticas. Nas autarquias, nas empresas, na zona do latifúndio, assistia-se a importantes acções de massas reclamando medidas mais avançadas, de cariz socialista. Os meios do MFA, nomeadamente as suas assembleias, também se pronunciavam no mesmo sentido.
    A seguir à derrota da intentona spinolista de 28 de Setembro de 1974 o III Governo Provisório procura ganhar um maior dinamismo na implementação de medidas democráticas urgentes, que ao mesmo tempo consolidem a revolução. (Procura também resolver rapidamente as questões levantadas com a independência das ex-colónias, tema tutelado por Mário Soares enquanto ministro dos Negócios Estrangeiros. Não iremos prestar atenção a este tema.)
    Note-se que todos os governos provisórios tiveram participação importante do PS. No III Governo Provisório, o PS, embora não criticando substancialmente as medidas tomadas por esses governos, tratou de começar a propalar a tese de que os governos de Vasco Gonçalves eram governos comunistas. Esse mito, que veio mais tarde a ser martelado pela comunicação social já ao serviço do PS e demais forças de direita, perdura até hoje.
    Vejamos, concretamente, a constituição do III Governo Provisório:

Primeiro-Ministro
Vasco Gonçalves (oficial do exército)
Ministros sem pasta
Vítor Rodrigues Alves (oficial do exército)
Ernesto Melo Antunes (oficial do exército)
Joaquim Magalhães Mota (PPD)
Ministro da Defesa Nacional
Silvano Ribeiro (oficial da marinha)
Ministro da Coordenação Interterritorial
António de Almeida Santos (PS)
Ministro da Administração Interna
Manuel da Costa Brás (oficial do exército, ministro do I Gov. Constitucional do PS)
Ministro da Justiça
Francisco Salgado Zenha (PS)
Ministro da Economia
Emílio Rui Peixoto Vilar (Presidente da SEDES, ministro do I Gov. Constitucional do PS)
Ministro das Finanças
José da Silva Lopes (independente, veio a fazer parte do PRD e depois do PS)
Ministro dos Negócios Estrangeiros
Mário Soares (PS)
Ministro do Equipamento Social e Ambiente
José Augusto Fernandes (oficial do exército)
Ministro da Educação e Cultura
Manuel Rodrigues de Carvalho (oficial do exército)
Ministro do Trabalho
José Costa Martins (oficial da força aérea)
Ministro dos Assuntos Sociais
Maria de Lurdes Pintassilgo (católica militante, chefiou o V Gov. Constitucional)
Ministro da Comunicação Social
Jorge Correia Jesuíno (oficial da marinha)

    Para além dos militares, temos 3 PSs, 1 PCP e 1 PPD. Dos independentes, dois são da confiança do PS (Rui Vilar fez parte do I Governo Constitucional do PS e  Silva Lopes primeiro entrou no PRD e depois no PS) e uma (M. L. Pintassilgo), quando primeira-ministra do V Governo Constitucional, recheou-o apenas de PSs e PSDs. Quanto aos militares, Vítor Alves e Melo Antunes, elementos destacados do Grupo dos Nove e co-autores do golpe do 25 de Novembro, eram claramente pró-PS. Costa Brás também era pró-PS, por isso mesmo entrou no I Governo Constitucional do PS. Logo, um total de 9 elementos pró-PS: 3 militantes e 6 apoiantes (Rui Vilar, Silva Lopes, M. L. Pintassilgo, Vítor Alves, Melo Antunes, Costa Brás). Do lado do PCP, para além de Álvaro Cunhal (ministro sem pasta), só se podem apontar como elementos sensíveis às posições do PCP -- mas, de forma alguma apoiantes claros do PCP; não houve, por exemplo, uma versão PCP do «Grupo dos Nove» -- Vasco Gonçalves, Costa Martins e Correia Jesuíno.
    Em suma, a influência do PS no governo -- ainda para mais com pastas tão importantes como a  Administração Interna, a Justiça, a Economia, as Finanças, os  Negócios Estrangeiros -- era maioritária. Contudo, fora do governo, quer em Portugal quer no estrangeiro, o PS comportava-se como oposição ao governo! (Isso mesmo foi assinalado com perplexidade por Rosa Coutinho em 11/1.) O problema é que, embora o PS tivesse influência maioritária a sua influência não era total, e num governo sob vigilância da esquerda militar (Vasco Gonçalves, Costa Martins e Correia Jesuíno), com MFA e massas populares a reclamar medidas socialistas, o PS não tinha margem de manobra para abertamente lançar o marxismo e o socialismo ao charco e construir o que sempre teve em mente: o capitalismo «social-democrata» da CEE. O socialismo e marxismo proclamado em palavras pelo PS (pelos seus dirigentes) era uma cortina de fumo, destinada a aumentar a sua base de apoio entre os trabalhadores (inicialmente assaz escassa) de forma a poder arremessá-la contra a revolução, sob a capa da defesa contra uma suposta ditadura do PCP.
    O objectivo central do PS começa a cristalizar-se: combater tudo que seja esquerda consequente, com um conhecimento fundamentado do que representa uma via socialista, nomeadamente, nesta fase, a influência do PCP.
    Com esse objectivo o PS exibe, neste período, uma atitude de duplicidade. Por um lado, continua a dizer-se a favor do socialismo e até aceita conversações com o PCP no seguimento do putsch do 11 de Março. Mantém também, como vimos, uma participação importante no III Governo Provisório. Por outro lado, começa a trocar «socialismo» por termos ambíguos («revolução libertadora») e a preparar uma vasta aliança anti-PCP e anti quaisquer forças consequentes de esquerda (esquerda militar, MDP/CDE, forças sindicais); aliança que vai desde as forças declaradamente de direita até aos partidos esquerdistas demagógicos e virulentamente anti-PCP (MRPP, AOC, OCMLP, FEC-ML; a burguesia citadina criou-os em grande número). Alguns partidos esquerdistas onde militavam democratas honestos (UDP, PRP) não participaram nessa aliança; contudo, as suas tiradas maximalistas e a sua posição frontal contra os governos de Vasco Gonçalves (os únicos consequentemente de esquerda que alguma vez existiram em Portugal!!!) foram aproveitadas pelo PS. Nesta vertente, o PS e os partidos de direita usaram perante o povo despolitizado uma táctica perversa do tipo «preso por ter cão, preso por não ter»: tanto usavam as tiradas maximalistas para acusar o PCP de não ser de esquerda, como colavam e faziam passar por propósitos do PCP o maximalismo da UDP, PRP, etc., para assustar a população e criar confusão e instabilidade. Os ataques descabelados e até provocatórios da UDP, PRP, etc., contra os governos de Vasco Gonçalves figurarão indelevelmente na História como nódoas ignominiosas desses partidos.
    A fraseologia dúplice do PS oscila entre a defesa do «socialismo democrático» e o ataque ao «social-fascismo» e ao «capitalismo de Estado». Na base do «socialismo democrático» unem-se o PPD e o CDS que rapidamente compreenderam que nesta fase lhes convinha encostarem-se ao PS; no ataque ao «social-fascismo» e ao «capitalismo de Estado», juntam-se os grupos esquerdistas. O PS emerge, assim, como esgrimista-mor desta aliança anti-PCP perante o MFA, com vista a desligá-lo do PCP e seus aliados democráticos consequentes; procura também criar instabilidade e indisciplina militar, desligando por cansaço e frustração os elementos menos esclarecidos do MFA de uma perspectiva socializante (o que veio a acontecer).
    O ataque do PS ao rumo socializante do 25 de Abril iniciou-se num comício realizado a 14 de Janeiro de 1975.
1975
Janeiro
Notícia
Comentário
2/1. Mário Soares ao Le Figaro (jornal da direita francesa): «não é vontade do povo cair noutra ditadura». Diz ainda que o PCP tem tentado eliminar socialistas da cena política e que o PCE observa com ansiedade a situação criada pelos comunistas portugueses.
Já vimos e ainda veremos, mais do que uma vez, Soares a anunciar no estrangeiro as suas intenções. Vemo-lo aqui inaugurando o mito da «ditadura» do PCP. O direitista Santiago Carrilho serve-lhe de apoio. O mito é destinado a justificar a necessidade de afastar o PCP e o honesto e consequente Vasco Gonçalves e a travar as medidas socializantes em curso (mais tarde, a liquidá-las inflectindo para o capitalismo neoliberal).
3/1. Salgado Zenha: «é necessário [efectuar-se] a união dos partidos democráticos ao MFA».
Leia-se: «é necessário que PS, PPD, CDS e PPM se unam e levem o MFA a afastar-se do e afastar o PCP».
14/1. Manuel Alegre em comício do PS: «quanto mais nos atacam mais força temos; quanto mais dizem que somos um partido da burguesia mais trabalhadores acorrem a inscrever-se».
O PS procurando aparecer como um partido dos trabalhadores. Atraíu de facto muitos trabalhadores, incluindo os influenciados pelos emigrantes na França, Alemanha, etc., que diziam maravilhas da social-democracia.
14/1. Manuel Alegre em comício do PS diz que, depois de duas tentativas contra-revolucionárias da direita [crise Palma Carlos e o 28 de Setembro], surgiria uma «tentativa contra-revolucionária de esquerda encabeçada pelo PCP que visaria um adiar das eleições e a destruição do PS».
O PS procura apresentar-se como representante civil da linha do MFA, que propugna eleições, enquanto o PCP seria contra-revolucionário e planearia adiar eleições. Nunca tal plano ou tentativa do PCP foi provada existir. Existia, sim, a «tentativa contra-revolucionária» de Spínola de que o próprio Alegre estava a par. Na realidade, quando Alegre fala de «tentativa contra-revolucionária de esquerda encabeçada pelo PCP» está premeditadamente a procurar desviar as atenções no sentido errado.
Toda esta tirada de Manuel Alegre, típica no bombástico cobrindo como folha de parra o disparate, mostra bem o calibre deste figurão que até hoje se mascara de esquerda. E convence(u) muita gente, incluindo o BE!
14/1. Sotomayor Cardia em comício do PS: «o povo português recusa ser imolado nos altares do estalinismo».
Típica tirada dramatico-histérica de Cardia («imolado nos altares»!) para assustar com o papão do «estalinismo».
14/1. Mário Soares em comício do PS: «não toleraremos que os comunistas sejam anti-socialistas».
Auto-vitimização e embuste. Veremos mais adiante o PS a recusar todas as tentativas de entendimento propostas pelo PCP e até pelo MFA, escolhendo em vez disso um entendimento com a direita. Isto diz bem da tristeza de Soares por os comunistas serem «anti-socialistas». E, claro, pretende-se desviar as atenções do anti-comunismo do PS.
17/1. Juventude do PS: «para quem se define como marxista a via para a sociedade socialista deverá ser simultaneamente revolução dialéctica e  oiginal.»
A JS ainda não está bem alinhada pela política oficial. Note-se o uso do termo «marxista» sem entender nada do assunto («dialéctica» surge a despropósito – toda a revolução é dialéctica --, apenas porque foi lido esse termo em algum lado e soa bem).
23/1. Mário Soares a Le Nouvel Observateur: «Não queremos mais capitalismo de Estado.»

Soares sabe que o Le Nouvel Observateur é porta-voz dos esquerdistas franceses e que estes caracterizaram o sistema económico da URSS como «capitalismo de Estado». Não interessa nada que tal caracterização seja falsa e que, provavelmente o próprio Soares não soubesse muito bem o significado concreto de «capitalismo de Estado». Não importa. Contra o PCP vale tudo. Que Soares tenha depois inflectido para o capitalismo neoliberal diz bem da sua suposta repugnância pelo capitalismo. Mas só o «de Estado», claro.
26/1. AOC: «União com o PS para combater o social-fascismo».(*)
A Aliança Operário-Camponesa de Artur Albarrã nunca teve operários nem camponeses. A sua existência efémera destinou-se simplesmente a debitar fel no tempo antena contra os «sociais-fascistas» do PCP, servindo de apoiante de «esquerda» ao PS. O maoísta MRPP era também um perito nessa arte, organizando pogroms contra militantes do PCP.
(*) O termo «social-fascista» foi usado pela primeira vez pelos elementos mais consequentes da esquerda alemã (nomeadamente, o Partido Social-Democrata Independnte, os chefes conselhistas e a Liga Spartakista depois Partido Comunista Alemão) para justamente verberar os líderes do Partido Social-Democrata alemão (o equivalente ao nosso PS) que, tendo começado por liquidar a revolução alemã não recuando nesse mister em usar forças militares e policiais para chacinar operários num banho de sangue, veio a aliar-se com a direita abrindo o caminho à ascensão de Hitler. Em Portugal o termo foi usado ao contrário: pela direita para verberar a esquerda consequente.

O imperialismo começa a mostrar o músculo: a 6/1 entram no Tejo forças navais da OTAN. A direita desencadeia greves nos liceus, onde a juventude é facilmente manipulável; a 13/1 jovens do MRPP e do CDS de um liceu do Porto aparecem unidos a destruir propaganda e bancas do PCP. O PPD protesta junto ao Ministério de Educação por o manual de ensino «Introdução à Política» qualificar a social-democracia de «demotecnocracia» excluindo-a do parágrafo relativo ao socialismo: «é grave  a qualificação e é grave a insinuação» (21/1). PCP afirma haver provas de que os grandes bancos financiaram o 28 de Setembro (24/1). Os meios financeiros britânicos queixam-se por a mão-de-obra barata ter acabado em Portugal (25/1).
O MFA é institucionalizado (Conselho dos 20) em 8/1. O governo anuncia em 20/1 um plano económico com 70 medidas urgentes e a 26/1 é aprovada a lei do arrendamento rural.

Março
Notícia
Comentário
5/3. Jaime Gama: «as notícias [de golpe eminente] são completamente falsas e inserem-se numa campanha anti-socialista que arrancou há algum tempo»

A revista alemã Extra noticiava a eminência de um golpe em Portugal em que estariam envolvidos o governo da RFA e a ala direita do PS. Embaixadores europeus, incluindo o alemão, consideraram fantasiosa a notícia. Não era, como se veio a saber. Jaime Gama, da ala direita do PS, aproveitou para fazer contra-propaganda.
12/3. Comunicado do PS: «importa confiar nos comandos do MFA.»

É noticiado o golpe spinolista do 11 de Março. O papel do PS nele é dúbio. O comunicado PS é expectante (a ver para onde correm as águas) e não condenatório do golpe. Curiosamente o comunicado do PPD é bem mais à esquerda: «Fomos surpreendidos [...] elementos reaccionários atentaram contra as liberdades [...] apela-se aos democratas para que se unam e tornem realidade o programa do MFA».
13/3. PS aceita dialogo com o PCP se PCP aceitar resultados das eleições renunciando pretensões hegemónicas.

Fogo de vista para sacudir incómodas suspeições de envolvimento no 11 de Março. O PS nunca veio a aceitar o diálogo com o PCP. Nunca se colocou, aliás, a questão do PCP não aceitar resultados de eleições, ou a questão de uma pretensa hegemonia.
19/3. Mário Soares: «É muito bonito falar contra o capitalismo, falar da revolução socialista, mas é preciso resolver o problema dos 200 mil desempregados. E se o trabalho escassear quem sofre? Os capitalistas ou as classes trabalhadoras? [...] não é a fazer festas ao leão que resolveremos o problema pois poderemos ficar sem um braço»
Linguagem colorida para disfarçar o oportunismo de direita. Socialistas à la Soares sempre arranjam desculpas para adiar o seu auto-proclamado socialismo. Neste caso como noutros recorrendo a falsas desculpas. Só o socialismo pode resolver e em todas as experiências históricas resolveu o problema do desemprego. E em 1975 a taxa de desemprego era bem menor que hoje: 3%!
19/3. Salgado Zenha: «propomos reformas anti-capitalistas; devemos optar por uma via de liberdade, de socialismo e de independência nacional»
Afirmações grandiloquentes. Nunca o PS e muito menos Zenha apoiaram ou aplicaram medidas anti-capitalistas e de socialismo. E sempre conduziram o país numa via de perda de soberania.
20/3. Mário Soares: «é preciso libertar o povo das suas angústias». António Macedo do PS: «uma democracia pluralista e progressiva». Manuel Canijo do PS: «a revolução autêntica é a revolução libertadora.»
O PS começa a alijar a carga do «socialismo», que pode trazer «angústias» ao povo, substituindo-a por «revolução libertadora».
22/3. PS: «socialismo sim, ditadura não»
O «ditadura não» procura assustar contra uma suposta ditadura do PCP. O «socialismo sim» esteve na génese do «socialismo» em que agora vivemos.

    Em Março tinha chegado a Portugal o novo embaixador dos EUA, Frank Carlucci, que viria mais tarde a preparar, com a colaboração de Mário Soares, o golpe provocatório do 25 de Novembro. Conotado com a CIA, Carlucci apressou-se a dizer «nunca trabalhei nem trabalho para a CIA». Era falso, como foi depois confirmado.
    A 2 de Março a UDP acusa a «polícia do PC» de furto de documentos. Nada se provou de tal «furto». Toda a atitude da UDP, inclusive a fraseologia difamatória («polícia do PC»!) constitui um exemplo das provocações anti-PCP que tanto ocuparam os esforços da UDP. O saneamento de elementos fascistas é posto em lei, de forma firme (8/3). O PCP avisa contra a escalada de provocações e rumores destinados a assustar a população, nomeadamente o rumor de que os comunistas estariam a preparar uma «matança da Páscoa» (soube-se mais tarde que este rumor foi criado de propósito e trazido de Espanha por spinolistas aos seus camaradas e apoiantes em Portugal para os incitar ao golpe).
    A 11 de Março tem lugar o célebre golpe montado por Spínola e correligionários, com destaque para oficiais reaccionários da Força Aérea. O RAL 1, onde se aquartelavam as tropas mais de esquerda e fiéis ao MFA, é bombardeado na manhã de 11 de Março por aviões, e atacado por forças da GNR e tropas paraquedistas de Tancos. Muitos populares aproximam-se das forças da GNR e de Tancos convencendo-os de que estão no lado errado e de que foram manipulados pelos reaccionários (o que era verdade, pelo menos para a grande maioria). O golpe esboroa-se e Spínola com outros foge para Espanha. Posteriormente o comandante da GNR e soldados de Tancos declararam que tinham sido mobilizados para o golpe com o pretexto de impedir a «matança da Páscoa».
    A posição do PS perante o 11 de Março é dúbia. De facto, sabe-se hoje, por afirmações entretanto colhidas dos próprios socialistas, que: 1.º O PS tinha relações habituais com spinolistas (elementos spínolistas tinham mesmo assistido ao Congresso do PS em Dezembro de 1974, por convite); 2.º Um dos elementos de contacto com os spinolistas era o grande «socialista» Manuel Alegre; 3.º O PS tinha conhecimento do golpe; 4.º O PS não entrou no golpe mas também não o denunciou; ficou à espera de ver para onde caíam as águas. Como gritou alguém na manifestação de vitória contra o golpe: «O golpe falhou, o PS disfarçou». Se o golpe tivesse vencido, comunistas e militares de esquerda teriam sido presos. No mínimo. Já havia listas de elementos a abater.
    Com a vitória do 11 de Março a revolução acelera-se. A 14 de Março o MFA institucionaliza o Conselho da Revolução. São nacionalizados os bancos (14/3) e as companhias de seguros (16/3). São pedidas explicações ao parlamento de Bona (17/3) sobre ajudas alemãs a Spínola, bem documentadas no livro de Gunther Wallraf «A Descoberta de Uma Conspiração» (Bertrand, 1976).
    O MFA suspende a legalização administrativa de três partidos que se tinham destacado em múltiplas acções provocatórias antes do 11 de Março: AOC, MRPP e PDC (Partido da Democracia Cristã) (21/3). O PS manifestou-se contra essa ilegalização. Dias depois (24/3) condena o assalto oficial à sede do MRPP por tropas do MFA. O general pró-spinolista e anti-comunista ardoroso Galvão de Melo (ex-membro da JSN) disse, na altura, assim: «Se tivesse 18 anos seria do MRPP».
    A 22/3 o senador norte-americano James Buckley ameaça Portugal com uma intervenção e o patrão das Indústrias Lusitanas de Óptica Lda. investe de automóvel um grupo de operários que se barricam dentro da fábrica. Um exemplo da crescente disponibilidade para a violência por parte do patronato. A 24/3 é publicamente denunciada pelo Quartel-General do Porto (brigadeiro Corvacho) a existência do ELP (Exército de Libertação Português) e mostrados documentos deste «exército» contra-revolucionário actuando no Norte do país e para quem o PCP é o «inimigo n.º 1». São presos cabecilhas do ELP.
    A 27/3 o PCP declara como urgente levar a cabo a Reforma Agrária (comício no Palácio de Cristal). A 31/3 o MES (onde militou Jorge Sampaio) declara: «denunciámos claramente os objectivos [contra-revolucionários] do PS».

Abril
Notícia
Comentário
2/4 Mário Soares diz em comício no Algarve que votar no socialismo era «votar por melhores condições de vida dos trabalhadores. Sem exploradores nem explorados». Manuel Alegre esclarece: «um socialismo bem português mais avançado e diferente de muito da Europa.»
Soares soa ainda a socialismo. Mas o esclarecimento de Alegre diz-nos como o mestre deve ser interpretado. Socialismo sim, mas «bem português» de casta comprovada e de barrete na cabeça. Ainda por cima «mais avançado e diferente de muito da Europa.». Avançadíssimo e originalíssimo. Nada dessa Europa de trazer por casa. Este farsante do Alegre é de ir às lágrimas.
7/4 Mário Soares: «A desordem não é revolucionária não é socialista; é fascista. E isso pova que as sementes do fascismo têm frutificado em certos partidos que se dizem da esquerda.[...] Não contem connosco para caucionar ditaduras».
Ataque cobarde ao PCP. Esquece-se de dizer que quem era vítima de violência nas sessões de esclarecimento era precisamente o PCP. E atacado precisamente por PSs de mãos dadas com PPDs e CDSs.
11/4 Declaração do PS relativa às próximas eleições: «vamos em conjunto escolher o socialismo e a liberdade».
Muito bem. Veremos, mais tarde, como a vitória do PS trouxe o apregoado socialismo e liberdade.
14/4: Salgado Zenha em comício em Gaia: «o socialismo não se erguerá com chinfrim no meio da rua.».
Nada de chinfrim nas ruas. Tudo sentadinho em suas casas esperando que o PS construa o socialismo.
15/4 Militante do PS num comício: «uma conspiração permanente existe contra o PS tanto porque o PS é o único obstáculo às tiranias...» .
Militante sintonizado com a direcção do partido.
15/4 José Magalhães Godinho (jurista e militante histórico do PS): «se for necessário dar tiros para construir o socialismo o PS também os dará».
Ah, grande PS! Os corajosos e revolucionários doutores do PS! Sobre «tiros para construir o socialismo» veremos mais tarde.

    O mês de Abril é marcado pela campanha eleitoral para a Assembleia Constituinte, com eleições marcadas, de acordo com o programa do MFA, para 25 de Abril de 1975.
    Todos os partidos de direita se vestem de cores socialistas. Vejamos o caso do PPD: «A liberdade, a democracia e o socialismo a que o nosso povo aspira» (propaganda eleitoral, 2/4); «é proposto [aos portugueses] um caminho progressista que se afasta do oportunismo das opções neoliberais de última hora» (comício em Torres Vedras em 4/4; estás a ouvir, ó Passos Coelho?); «participação dos trabalhadores na gestão dos sectores nacionalizados» (J. A. Seabra em entrevista ao JN, 5/4); «Bases programáticas do PPD: democracia económica; subordinação do poder económico ao poder político. O PPD não é capitalista, nem comunista, nem marxista. O PPD é o partido da social-democracia.» (7/4); Emídio Guerreiro: «[são precisas] medidas revolucionárias para acabar com o desemprego» (13/4); «a nossa prioridade é acabar com os pobres» (comício em 22/4); Pinto Balsemão: «temos mesmo de ganhar as eleições; tornaremos Portugal mais rico, mais lúcido, mais forte e mais esclarecido» (uma pérola de demagogia pronunciada a 32/4).
    O CDS também não fica muito atrás: Galvão de Melo a 10/4 pronuncia-se pelo «socialismo em liberdade» e Amaro da Costa em comício em Famalicão a 22/4 diz que «CDS é um partido que defende a liberdade e não a burguesia.»
    Entretanto, o PCP sofre boicotes constantes a comícios e sessões de esclarecimento, em especial no interior do país, por vezes com violência (7/4, 21/4). Em Aveiro desencadeia-se uma autêntica campanha anticomunista a cargo dos partidos da direita e do clero local (18/4) Por todo o país inúmeras missas dominicais são convertidas pelo clero em comícios anti-comunistas, assustando as populações com as aldrabices do costume (vão roubar as terras, vão acabar com a religião, etc.). Correm também rumores. Por exemplo, de que os sapatos fabricados no nosso país iam ser vendidos abaixo do preço (60$00) à URSS (correu antes de 15/4 e foi desmentido).
    A 8/4 a Assembleia do MFA consagra a opção socialista: «iniciar de forma decidida [a construção de] uma economia socialista.» A 10/4, o CR do MFA, precavendo-se do pior, propõe aos partidos políticos a assinatura de um acordo constitucional definindo a estrutura dos órgãos de poder da futura Constituição e suas atribuições, as condições de vigência e revisão da Constituição, os pontos programáticos a incluir na Constituição e o estatuto autónomo das Forças Armadas. Este «1.º Pacto MFA- Partidos», como ficou conhecido, foi subscrito por 12 partidos: CDS, FSP, MDP/CDE, PCP, PPD, PS, FEC-ML, LCI, MES, etc.
    A revolução avança: o governo anuncia a 13/4 que vão prosseguir as nacionalizações e será garantido o preço dos bens essenciais; a 16/4 são nacionalizados os sectores da energia, dos transportes e das comunicações; a 18/4 é anunciado um projecto de diploma da segurança social abrangrendo as camadas mais desfavorecidas; a 19/4 o governo anuncia a reforma agrária e o aumento do salário mínimo; a 20/4 é rconhecido o carácter socialista da revolução.
    Vasco Gonçalves esclarece, contudo, a 9/4, que «antes do socialismo teremos de percorrer um caminho de transição». O PCP alerta para o facto de que as reservas financeiras baixam assustadoramente (2 milhões de contos em 2 meses). Entretanto, a sabotagem económica pelos capitalistas está em marcha. A 2/4 são denunciadas fraudes e operações ilegítimas da banca, descobertas depois das nacionalizações: empréstimos de milhares de contos a gente graúda da banca, financiamento de empresas fantasmas, fugas ao fisco e desvios de capitais são alguns dos processos da banca para sabotar a economia.
    A 25/4 têm lugar as primeiras eleições em liberdade, após o fascismo.
    A 27/4 são anunciados os resultados oficiais:
   
PS                    37,8 % (115 deputados);
PPD                 26,4% (80 deputados)
PCP                 12,5% (30 deputados)
CDS                7,6% (16 deputados)
MDP/CDE      4,1% (5 deputados)
UDP                0,8% (1 deputado)