Num nosso
anterior artigo («Portugal em queda livre»: http://revolucaoedemocracia.blogspot.pt/2013/07/portugal-em-queda-livre.html
) mencionámos os «arranjos» de fixação de preços entre empresas (como EDP,
transportes, comunicações, etc.) e o sector financeiro, «arranjos» que
alimentam défices de biliões de euros que mais tarde os bancos vão receber por
via dos resgates. Mencionámos, a esse propósito, uma entrevista do economista
José Gomes Ferreira, na SIC em 25/3/2013, onde este esclarece bem a questão. http://www.youtube.com/watch?v=KhH3diNzhRQ.
Referimos, então,
que o povo (o povo trabalhador) é duplamente roubado: roubado pelos preços artificialmente
elevados e roubado mais tarde para realimentar os cofres bancários. Enquanto o
segundo tipo de roubo é mensal (cortes em salários e pensões, etc.) ou anual
(impostos) e «dá logo nas vistas», o primeiro é um roubo diário -- diariamente
consumimos água e electricidade, pagamos transportes, etc.-- que «dá menos nas
vistas»; um roubo camuflado, insinuante e sub-reptício para o qual os
porta-vozes do capital arranjam justificações enganadoras nos media (inflação,
aumento do preço do petróleo, etc. Eles até nem têm culpa, coitados!).
É sobre esse tipo
de espantoso roubo diário que nos
vamos aqui debruçar. E vamos fazê-lo divulgando (contribuindo para divulgar)
uma carta aberta da autoria de Agostinho Lopes, militante destacado do PCP e
ex-Deputado na AR, carta essa que tem vindo a circular na Internet. Fazemo-lo por uma dupla razão:
a) Porque é uma
carta inteiramente e excepcionalmente esclarecedora da questão (muito mais do
que a entrevista de JG Ferreira), revelando um excelente acompanhamento e
estudo do tema. Por isso mesmo merecedora da mais ampla divulgação possível. Consideramo-la de leitura indispensável!
b) Porque é de
toda a justiça realçar que, muito antes de JG Ferreira, o PCP tinha (e tem)
vindo sistematicamente a denunciar a situação e, para além disso, a lutar na AR
contra a roubalheira de que somos vítimas. Tem, portanto, inteira razão
Agostinho Lopes quando intitula a carta «Os que acordaram agora e os que nunca
dormiram».
Segue-se a
referida carta com algumas notas nossas de esclarecimento de termos e siglas
entre parênteses rectos. (A carta, infelizmente, pelo uso de siglas não
definidas e certo jargão técnico perfeitamente escusável, compromete a
divulgação por uma larga audiência; divulgação tão necessária!!!)
* * *
«Os que acordaram
agora e os que nunca dormiram
Carta a José Gomes Ferreira
Assunto:
"rendas excessivas" em sectores protegidos e entrevistas do ministro
da Economia e Emprego Álvaro Santos Pereira e do ex-secretário de Estado da
Energia Henrique Gomes
por Agostinho
Lopes (*)
06MAI13
Caro José Gomes
Ferreira
Ao visionar duas
entrevistas recentes na SIC Notícias, com o ministro da Economia e Emprego
(23ABR13) e com o ex-secretário de Estado da Energia Henrique Gomes (24ABR13)
lembrei anteriores declarações suas, entrevistado a 25 de Março, na Edição da
Tarde do SIC Notícias, sobre a captura de "rendas excessivas" por
determinados sectores económicos, e que na altura, me suscitou a ideia de lhe
escrever. Não o fiz então, faço-o agora, no contexto da mesma matéria reavivada
pelas referidas entrevistas.
Valorizando o
conjunto das denúncias feitas nas entrevistas, pela sua real importância para a
generalidade dos portugueses, consumidores domésticos, e para a competitividade
das empresas portuguesas, permita-me tecer algumas considerações e fazer alguns
possíveis esclarecimentos.
De forma
veemente, o JG Ferreira pronuncia-se contra as "rendas excessivas"
capturadas por alguns sectores económicos/empresas, ditos produtores de bens e
serviços não transaccionáveis [bens e serviços que, ao contrário dos
transaccionáveis, não são susceptíveis de transacção nos mercados
internacionais -- devido, p. ex. a custos de transporte proibitivos face ao
valor intrínseco, ou por estarem intimamente relacionados com localização específica
-- sendo apenas transaccionáveis no mercado interno: água, electricidade,
combustíveis, transportes, saneamento, iluminação pública, etc.], e os grupos
financeiros portugueses como os principais destinatários finais dessas
"rendas". "O último beneficiário é o sector financeiro",
diz e bem o JG Ferreira. Mas há afirmações suas que me merecem alguns
comentários.
Repara [Refere] JG
Ferreira que o conhecimento de tais "rendas excessivas" se verificou
com o Programa da Troika. "A Troika chegou e viu"! Que ninguém fez ou
tinha feito nada sobre o assunto. "Tudo isto acontece e o país assiste
impávido e sereno". Que a excepção é o ministro Álvaro Santos Pereira, que
por isso mesmo "os lóbis querem deitar abaixo". Que em vez da
liberalização, o necessário era "tabelar o preço" e dizer-lhes,
"vendem abaixo desta tabela". Que há um responsável de uma dessas
empresas que diz, como o "consumo está a cair" o "preço tem de
subir". E ninguém o contraria"! Para respeitar a "Lei da
concorrência" "estamos a prejudicar os consumidores". Nos
combustíveis "low cost" "ninguém deixa instalar estas
bombas". Etc, etc, etc. (Possíveis erros na transcrição das citações!)
Ora a história
destes assuntos, nomeadamente em matéria de electricidade, gás natural e
combustíveis, não é bem assim!
Talvez não se
tenha dado por ele, com a ideia de que o PCP é uma histórica aldeia gaulesa
irredutível, mas não tem grande importância!
O que é certo é
que todas estas questões e problemas foram, ao longo dos últimos anos, muitas e
muitas vezes denunciadas pelo PCP. Que não se limitou às denúncias, mas
apresentou soluções! Houve de facto muita gente distraída! Mas não foi o PCP.
Numa Audição Parlamentar após a sua demissão, o Eng. Henrique Gomes, referiu
que aqueles sectores e aquelas empresas têm um enorme poder sobre os órgãos de
comunicação social (e não só, digo eu, e dirá, também, certamente o J G
Ferreira!)! Daí uma enorme cortina de silêncio, que continua até hoje, e até se
adensa…sobre estas questões e o PCP! [O controle da classe capitalista sobre os
media que temos sistematicamente referido nos nossos artigos.]
Andou muita gente
distraída sobre as denúncias e intervenções do PCP sobre o assunto. Para não
maçar muito, e sem ir muito atrás, algumas breves lembranças.
No já longínquo
ano de 2006, intervindo na Assembleia da República (AR) a 17 de Dezembro, sobre
o aumento dos preços de venda de electricidade, referimos os vícios
genéticos/estruturais desses preços como resultado da "remuneração da
produção vinculada no âmbito dos CAE [Contratos de Aquisição de Energia], o
excesso de produção térmica, o preço da electricidade paga na cogeração, o
preço da electricidade produzida por via eólica, entre outros".
Quantas vezes
referimos as consequências da segmentação (o dito, "unbundling"),
numa das reestruturações da EDP, entre a produção e a distribuição, liquidando
a perequação [repartição equitativa] de custos que havia ao longo da cadeia de
valor do sistema e "inventando" em consequência o "Défice
Tarifário" e os custos do acesso à Rede. Ou o caso absolutamente
extraordinário, entre as empresas portuguesas, da justificação da ERSE [Entidade
Reguladora dos Serviços Energéticos] da subida desses custos (acesso às redes),
porque havia redução de consumo – não é apenas o empresário, citado por JG
Ferreira! (A ERSE, diz o mesmo por exemplo para o abastecimento do GN [gás
natural]: "Deste modo, o menor consumo de gás natural perspectivado para o
próximo ano, face ao considerado nas tarifas actualmente em vigor, resulta num
aumento dos custos unitários do acesso" (Comunicado da ERSE de 15JUN12)
E tudo isto
acontecia, enquanto a EDP, ia somando lucros anuais (desde 2005) superiores a
mil milhões de euros! Já posteriormente, quantas vezes denunciámos o escândalo
da garantia de potência, oferecida pelos Governos PS aos grandes
electroprodutores (66,6 milhões em 2011!)? Ou os escandalosos mais de 24
milhões de euros anuais pagos na factura de electricidade de cada cidadão, de
"rendas" das terras das barragens – expropriadas há décadas pelo
Salazar a preços de miséria a muitos pequenos agricultores! (De 2010 para 2011
estas rendas passaram de 13,406 para 24,205 milhões, porque uma Portaria
(542/2010 de 21 de Julho) passou o indexante de actualização do IPC [índice de
Preços no Consumidor] para uma taxa swap (por onde andava já este bicho!!!)
interbancária acrescida de meio ponto percentual!
E sobre os preços
dos combustíveis, onde as "rendas excessivas" estão muito mais bem
disfarçadas, quantas vezes questionou o PCP sucessivos ministros da Economia e
secretários de estado da Energia, e a Autoridade da Concorrência (e até a
Comissão Europeia por escrito e o Comissário da Concorrência Almunia
oralmente), relativamente a uma questão que o JG Ferreira levanta!
O facto dos
preços em Portugal antes de impostos, serem mais elevados do que na
generalidade dos países da União Europeia, decorrente dos diferenciais
adicionados aos índices Platts de Roterdão (referência para Portugal), serem
maiores no nosso país! O que ninguém percebe, excepto a AdC [Autoridade da
Concorrência], que o justifica pela posição periférica do País!!! Mas como, se
os combustíveis consumidos cá, são produzidos, em geral, cá? AdC com uma também
extraordinária, concepção do funcionamento do mercado grossista dos
combustíveis líquidos… como é verificável num dos seus Relatórios sobre o
assunto. Ou porque razão, o País não criou uma efectiva concorrência aos combustíveis
líquidos, pelo uso do GN Comprimido (GNC) e GN Liquefeito (GNL), e expansão do
uso do GPL, no transporte rodoviário, com o estabelecimento de redes nacionais
de abastecimento de GNC e GNL, e alargamento da rede já existente de GPL!
(Anote-se: uma recente Comunicação da CE (COM(2013) 17 final) e uma consequente
Proposta de Directiva comunitária (COM(2013) 18 final), avançam exactamente
nesta direcção! E questionar porque razão sucessivas maiorias PS, PSD e CDS
chumbaram (três ou quatro vezes) o projecto de lei do PCP para a criação da
rede nacional de GNC! E quantas vezes reclamamos da dita rede combustíveis low
cost, de que se fala há anos?
E a pergunta a
que nenhum Ministro respondeu (nem a AdC, que considerava que nas suas
investigações, não tinha que analisar os lucros das empresas, apesar de
confrontada com evidentes lucros de monopólio!) porque razão se multiplicaram
por 5 os lucros da GALP quando por decisão do Governo PSD/CDS, foram
liberalizados a partir de 1 de Janeiro de 2004, os preços dos combustíveis
líquidos! De uma média de lucros anuais (depois de impostos) entre 2000/2003 de
138,8 milhões de euros, a GALP teve entre 2004 e 2011, uma média de 667,8
milhões de euros!
Quantas vezes,
apresentamos projectos de resolução (PJR), com recomendações aos governos,
visando atenuar, reduzir, eliminar essas rendas. Para não o sobrecarregar com
informação excessiva, veja, por exemplo, o PJR 449/XII/2ª (Preços de Energia
compatíveis com o poder de compra dos portugueses e a produtividade da economia
nacional), e os PJR 277/XII/1ª (Preços máximos nos combustíveis, travar a
especulação e PJR 343/XII/1ª (Uma estratégia para a promoção de combustíveis
alternativos na mobilidade rodoviária) já com o actual Governo e maioria
PSD/CDS! (documentos anexados).
E quantas vezes,
foram chumbados pelo PS, PSD e CDS, os requerimentos do Grupo Parlamentar do
PCP, para que fossem ouvidos os responsáveis da EDP e GALP sobre a origem dos
(super)lucros das suas empresas? Muitas vezes! Com o registo, de que alguns
colegas jornalistas do JG Ferreira, apodavam tais tentativas do PCP, de
esclarecer as "rendas excessivas", como atitudes demagógicas!
Quem tiver
dúvidas sobre o que afirmamos, pode retirá-las facilmente, pela leitura da
intervenção do PCP sobre a matéria, acessível e disponível na página da net da
Assembleia da República. Vantagens das novas tecnologias…
Caro JG Ferreira
Estes problemas
são de facto há muito conhecidos e denunciados pelo PCP. Eles têm como raiz
principal (mas não única) a privatização de grandes empresas públicas de bens e
serviços essenciais, em sectores de bens não transaccionáveis (BnT), muitas
vezes monopólios públicos, transformando-as em monopólios (se quiser, em
oligopólios, com uma empresa dominante) privados. Associando processos de reestruturação,
como o referido para a EDP, e a (aparente) liberalização dos respectivos
mercados.
Aliás, a predação
dos sectores de BnT sobre os sectores de bens transaccionáveis (BT) (empresas
exportadoras, PME da indústria, agricultura, pescas) até está calculada. No
livro "O Nó Cego da Economia", Vitor Bento, aponta um valor
equivalente a 15% do PIB entre 1990 e 2010! Questão que várias vezes levantei
nos debates travados na AR! É fácil perceber a enorme "fraude" e
mistificação, com que tantos, tantas vezes abordam o problema da
competitividade da economia portuguesa, sem qualquer referência a esta
predação!
E a montagem
(desmantelando outras estruturas públicas) de custosas entidades ditas
reguladoras, como a prática evidencia não regulam nada… Alguém, já se
interrogou (agora que se está novamente a legislar na AR sobre as ditas
entidades) porque razão a ERSE não viu, não descobriu, não detectou, ao longo
de anos de actividade, os 4 mil milhões de euros de rendas excessivas, que o
Estudo externo mandado fazer a pedido da Troika, calculou?!
Mas é evidente,
que as ditas entidades reguladoras não se libertam das teias/malhas
(teóricas/neoliberais, relações de poder, promiscuidade política) da estrutura
monopolista do sector de BnT! Nem os governos.
Como muito bem
diz o JG Ferreira, "enquanto o governo não disser assim: quem manda no
país não são meia dúzia de banqueiros e os presidentes das grandes empresas que
estão no PSI 20, na Bolsa, quem manda no país não são eles, isto não
muda"!
E não vai mudar,
porque os que estão neste governo, como nos anteriores são os "paus
mandados" dos mandantes, a tal "meia dúzia de banqueiros e os
presidentes das grandes empresas que estão no PSI 20"!
E o ministro
Álvaro, pese a sua farronca, não é melhor que os outros. Faz é um esforço para
passar por entre os pingos da chuva… É fácil ver (um dos rapazes da Troika
sinalizou-o recentemente), em matéria de rendas excessivas quase tudo continua
como dantes, quartel-general em Abrantes! Na energia eléctrica, o corte de 1800
milhões (menos de 50% das rendas excessivas calculadas por entidade externa!)
que era para ser feito até 2020, já foi alisado para lá dessa data até 2030, ou
seja até 2020 o corte fica em 1 200 milhões.
Se quiser um
Balanço recente sobre a matéria, é ler o recente estudo de Eugénio Rosa
"Rendas (lucros) excessivas da EDP…" de 02MAI13 em www.eugeniorosa.com!
E porque na sua
entrevista se falou da nova Lei da Concorrência, uma das ditas reformas
estruturais de que se gaba o ministro A Santos Pereira, o JG Ferreira já se
questionou, porque razão a dita legislação nada avançou nas matérias
"posição dominante colectiva" e "abuso de dependência
económica"? De facto o governo PSD/CDS, o ministro Álvaro com a tutela do
tema, e a sua maioria na Assembleia da República, e também com a ajuda do PS,
concretizaram uma alteração minimalista e insuficiente da legislação, impedindo
– pela inviabilização das propostas do PCP – o desenvolvimento legislativo de
três questões fundamentais: a introdução do conceito de "posição dominante
colectiva" (hoje presente em legislação de outros países europeus), o
aperfeiçoamento e tipificação do "abuso de posição dominante" e
sobretudo do "abuso de dependência económica", e ainda a introdução
do conceito de "dumping" e a sua penalização em termos
concorrenciais. Ora eram estes progressos legislativos que poderiam fazer
alguma mossa aos monopólios do sector de BnT!!!
É fácil perceber,
porque razão António Mexia abriu a garrafa de champanhe, quando o Governo se
viu livre de Henrique Gomes! (Poucos meses antes (Dezembro de 2011), em audição
parlamentar, tinha eu feito uma profecia ao então secretário de Estado sobre o
seu destino, caso levasse até ao fim a sua missão. Não me enganei!)
E não é difícil, compreender
a situação de promiscuidade EDP/poder político dominante: basta olhar para a
fotografia a duas páginas do Conselho de Supervisão da EDP, na revista da EDP
nº 25 de fevereiro/março 2012. Só ex-ministros PS, PSD e CDS são seis (com o A
Mexia são sete)! Só representantes visíveis da Banca e Grupos do PSI 20 (BCP,
BES, Liberbank, J. Mello, Colep/BIG, CIMPOR, CIN) são outros tantos! Todos,
naturalmente, fanáticos da austeridade e dos baixos salários (dos outros)!
Acredite, JG Ferreira, a fotografia ampliada, dava um excelente cenário/pano de
fundo para um debate nos Negócios da Semana, sobre energia eléctrica…
Pedindo-lhe
compreensão para a extensão da missiva,
Com os meus
melhores cumprimentos,
[*] Agostinho
Lopes, responsável pela Comissão de Assuntos Económicos junto do CC do PCP e
ex-Deputado na AR »