I
Com uma dívida pública de perto de 180% do PIB,
os resgates concedidos à Grécia tornaram-se impagáveis. Portugal, com uma
dívida pública da ordem dos 130% está na mesma situação. Muitos economistas de
várias ideologias, incluindo prémios Nobel, reconhecem isso. Lá como cá, os empréstimos
contraídos com o incentivo e amén da «solidariedade europeia» -- para comprar tudo
e mais alguma coisa às grandes corporações sediadas na Alemanha, França e
Holanda -- amarrou os países a dívidas que os tornaram alvos fáceis da predação
do grande capital imperialista. Uma velha receita, já bem testada pelo
imperialismo. A predação foi (é) levada a cabo pela política de «austeridade»,
que funciona como um enorme aspirador de dinheiro das camadas mais pobres para
encher os cofres dos imperiais, aumentando as desigualdades sociais e destruindo
o sector produtivo de capitais nacionais, amarrando, o que sobra das ruínas, aos
interesses de corporações transnacionais que se aproveitam dos salários de
miséria por muitas horas de trabalho e sem direitos laborais, aceites em
situação de desespero. Enfim, a epítome da exploração humana do grande capital,
de um capitalismo moribundo que já nada tem a oferecer senão miséria para as grandes
massas da população.
Tudo isto temos vindo a afirmar,
argumentadamente, desde que iniciámos o presente blog em Setembro de 2012. Entretanto, o quadro destrutivo da
austeridade tornou-se de tal forma patente e gritante que até Juncker da CE e
Lagarde do FMI se viram obrigados a vir a público em 2015 reconhecer que teria
havido «erros». Mais espantoso ainda: em Abril de 2015, Paulo Batista, um
brasileiro director executivo do FMI afirmou a um canal de TV grego que os
vários resgates à Grécia não tinham sido para os gregos... «eles [os resgates]
deram dinheiro para salvar os bancos alemães e franceses, e não a Grécia»1.
Isto, num quadro em que, quem tem beneficiado
com o euro, tem sido prioritariamente a Alemanha, com uma balança comercial de
saldo positivo sempre crescente, enquanto as balanças comerciais da Grécia e
Portugal têm acumulado saldos negativos2.
II
A Grécia era (é) o elo mais fraco da série de
países europeus susceptíveis de ataque económico imperial bem sucedido. Trata-se
do país da Zona Euro mais endividado, mais permeável à chantagem da «austeridade»
dos imperiais Alemanha, França e seus satélites, nomeadamente a Holanda. Não
por acaso o actual e patético presidente do Eurogrupo, o mocinho de recados imperiais
Jeroen Dijsselbloem – um dos mais encarniçados e vocais contra o governo grego
--, é membro do Partido do Trabalho (!) e ministro das finanças holandês na
coligação governante liderada pelo Partido Liberal.
Já vimos (http://revolucaoedemocracia.blogspot.pt/2015/02/syriza-salvacao-do-capitalismo-syriza.html)
que o Syriza -- coligação de múltiplas tendências ideológicas, que se aliou a
um partido de direita nacional-populista – tinha (tem) um programa cheio de
contradições e formulações utópicas que não ultrapassam o pensamento keynesiano
de salvação do capitalismo, defendendo o que alguns designam por «capitalismo
humanista», uma contradição nos termos. Entre outras coisas, o programa do
Syriza não toca no sector bancário, e os seus dirigentes, com destaque para
Tsipras e Varoufakis, defendem a permanência na UE e no euro. Precisamente
porque o Syriza não encara outra via de solução que não seja o capitalismo puro
e simples, esse mesmo Syriza, apesar de criticar a «austeridade» de que os
imperiais não abdicam, permanece numa atitude de «quanto mais me bates mais
gosto de ti». Compreende-se, assim, que o Syriza fosse fazendo cedências
sucessivas às imposições da troika até um ponto em que teve mesmo de parar
porque, caso contrário, perderia a sua base de apoio, suicidar-se-ia como coligação
partidária.
No final as propostas do Syriza e das
«instituições» (novo nome da troika) estavam próximas, subsistindo apenas três
diferenças2:
Proposta
grega
|
Proposta
da troika
|
Dívida
|
|
• Insiste na reestruturação da dívida.
|
• Não especifica medidas de reestruturação da dívida, embora o FMI
contemplasse a ideia.
|
Reformas
Sociais
|
|
• Sobe a idade da reforma para 67
anos em 2025. Contribuições para a saúde sobem para 5%. |
• Sobe a idade da reforma para 67
anos em 2023. Contribuições para a saúde sobem para 6%. Fim dos complementos para idosos pobres. |
Impostos
|
|
• Aumenta a receita do IVA em
0,74%. IRS sobe para 29%. |
• Aumenta a receita do IVA em
1%. IRS sobe para 28%. |
A diferença na reestruturação da dívida, o fim
de complementos para idosos pobres e o aumento do IVA (nomeadamente na
restauração, que passaria para 23%, afectando os lucros do forte sector grego
do turismo), foram determinantes da ruptura das negociações.
III
A troika, porém, entendeu não aceitar uma
convergência com a proposta do Syriza. Como porta-vos dos interesses
imperialistas, entenderam que seria um perigoso precedente em futuras
negociações com a Grécia e com outros países. Aceitar a proposta do Syriza
seria aceitar uma afirmação de defesa de soberania, ainda para mais proveniente
de um governo conotado com a esquerda. A troika foi, por isso, mais inflexível
do que os próprios credores! Estes, acreditaram que estaria para breve a
assinatura de um acordo.
As negociações, entre chantagens e ultimatos, tiveram
de tudo. Desde as atitudes sobranceiras do FMI (Lagarde disse que o governo
grego tinha «falta de maturidade») e paternalistas de Juncker, às atitudes de
arruaceiro do ministro das finanças alemãs, Schauble. O primeiro, começou com
festinhas na cara de Tsipras e afivelou aquilo que funcionários da UE
classificaram de «um interesse paternal e “pedagógico” [!] por Tsipras, explicando-lhe
como as negociações iriam decorrer4.»
Antes do
referendo, porém, Juncker largou a máscara. Juntamente com Schauble e outros
imperiais fez campanha aberta e aguerrida pelo «Sim». Acusou o governo de traição
e de mentir sobre a bondade da proposta da UE «Eu culpo o governo [grego] de
dizer ao público coisas que não são consistentes com o que disse» e acrescentou
que «um voto “Não” seria o mesmo que a Grécia cometer suicídio». Schauble, por
sua vez, afirmou: «Este governo não fez nada acerca da crise. Não podem esperar
que iremos falar com eles.» A ideia de remover o governo do Syriza para
instalar um governo agradável aos imperiais (repetindo o que se passou na
Itália) foi sempre clara. O representante da Esquerda alemã disse-o sem
contradição (os imperiais, agora, sentem-se à vontade nestas coisas) no
Parlamento (Bundestag): «Vocês querem
remover o governo esquerdista da Grécia. É isso que vocês querem.» Mais um
exemplo do que significa, de facto, a palavra «democracia» nos regimes de
democracia burguesa.
Citamos aqui uma passagem de um artigo do
jornal do PCP que constitui uma boa síntese da situação: « O cinismo pétreo
perante o drama real de um país que nos últimos cinco anos viu a economia
afundar-se em 25 pontos percentuais e enfrenta uma situação de desastre social
e humanitário atinge níveis atrozes. A UE deixou cair a máscara da “coesão” e “solidariedade”
para desvelar a sua real natureza exploradora, de instrumento ao serviço dos
interesses do grande capital e das potências que conformam o directório de
Bruxelas, com a Alemanha à cabeça. O percurso grego desde a aplicação do memorandum da troika mostra
que está em causa, não apenas, uma agenda de expropriação e destruição da
economia e soberania nacionais, mas também a desestabilização profunda do
“regime”, visando a consagração de um poder antidemocrático.»5
IV
O Syriza, a fim de obter legitimidade popular
da sua decisão, levou a cabo um referendo a 5/7/2015 sobre a aceitação ou não
da proposta da troika condicionadora da extensão do resgate financeiro à
Grécia. Ganhou o «Não» por clara maioria: 61%.
Os
resultados deste referendo constituíram uma importante afirmação de soberania
do povo grego face á política de diktat imperial da UE-troika. Uma afirmação de
vontade democrática e popular de decidir soberanamente do seu próprio futuro,
livre de submissão e ingerência da UE-troika.
Foi, portanto, um resultado importante – e o
Syriza merece crédito por isso --, animador da luta dos povos europeus
oprimidos pelas políticas imperiais do grande capital.
Não se deve, contudo, ir mais além do que isso
nas conclusões. Seria errado, por exemplo, concluir, como diz um jornal, que «A
Grécia disse “não” à austeridade no referendo de ontem». A proposta do Syriza é de «austeridade» para os trabalhadores e de
pactuação com o capital (com umas pequenas limadelas nos barcos com mais de
dez metros e nas receitas do jogo) e, como já vimos, o Syriza afirma não querer
nem sair do euro nem da UE, o que necessariamente acarreta levar a cabo uma
política de austeridade6. É
certo que afirma também querer implementar uma política de desenvolvimento, mas
o «como» tal pode ser implementado não é claro, e quanto a nós é utópico (ver http://revolucaoedemocracia.blogspot.pt/2015/02/syriza-salvacao-do-capitalismo-syriza.html).
Aliás, logo após o referendo, Tsipras disse querer um acordo com os credores
«imediatamente» e Varoufakis reuniu-se com os banqueiros para que estes
abrissem os bancos. O entendimento com o império na base de um impossível
«capitalismo humanista» continua a ser o núcleo duro da política do Syriza. O
império sabe disso e irá aproveitar-se disso. Já veio afirmar depois do
referendo que (afinal) um «acordo» ainda é possível.
V
Os nossos opiniosos do costume fizeram – como era
de esperar -- coro com o império. Procuraram desacreditar o governo grego, dando-lhe
cores de esquerda que não tem e acusando-o de «não ter juízo» ou de ter «várias caras». Trataram também
de convencer a opinião pública de que Portugal não seria afectado pelo
que se decidisse quanto à Grécia, mesmo no caso de saída do euro. Serviu-lhes
como argumento a famosa «almofada» anunciada pela ministra das finanças. Almofada
que estaria em 14.900 M€ (milhões de euros) mas que, com a amortização da
dívida, deverá estar em 9.800 M€ no final do ano. Além disso, foi noticiado a 2
de Julho p.p. que a venda do BES só recupera cerca de metade do dinheiro
injectado pelo Estado7, o que representa um rombo de 2.400 M€. (A
propósito, isto confirma o que já tínhamos dito em 4/8/2014: http://revolucaoedemocracia.blogspot.pt/2014/08/mais-um-buraco-para-o-povo-tapar-sim.html
.) Novo corte na almofada que agora estará em 7.400 M€. Um incumprimento grego subtrairia
mais 263 M€ de títulos de dívida grega a que a banca
portuguesa está expostá8, com possíveis consequências na almofada.
Mas há outro grave factor de contágio de
Portugal. É que o actual incumprimento grego (1.600 M€) e os próximos
incumprimentos, ou ameças deles, podem desencadear uma cadeia de exigências por
parte dos credores (como o BCE que tem a receber 6.500 M€ da Grécia em Julho)
com consequências catastróficas para Portugal. Para já, a taxa de juro da
dívida pública portuguesa a 5 e 10 anos deu um salto de 1,663% em 6/3/2015 para
3,08% em 29 de Junho passado. Um descontrolo da taxa de juro tendo em conta o
panorama de retracção internacional do crédito exacerbado pela crise grega,
terá certamente efeitos desastrosos em Portugal. Tanto mais desastrosos quanto
continuarem as políticas já conhecidas do PSD-CDS-PS (http://revolucaoedemocracia.blogspot.pt/2015/06/programas-ps-e-psdcds-mesma-coisa-e.html
). E Portugal é o elo mais fraco que se segue.
Referências
[1] A notícia foi dada em canais de TV
estrangeiros e outros meios de comunicação. Que saibamos, não foi dada em
Portugal. Ver, p. ex., http://www.zerohedge.com/news/2015-03-04/imf-director-admits-greek-bailout-was-save-german-french-banks
[2] Eugénio Rosa, Grécia
: um país e um povo em luta pela sua dignidade e pelo seu futuro, 5-7-2015, http://www.eugeniorosa.com/Sites/eugeniorosa.com/Documentos/2015/24-2015-Grecia.pdf
[3] JN, 30 de Junho de 2015
[4] A Greek challenge for 'Mr Europe' Juncker,
Business News, Jul 4, 2015, http://www.reuters.com/article/2015/07/04/us-eurozone-greece-juncker-europe-insigh-idUSKCN0PE0AM20150704
[5] “O caldeirão grego”, “Avante!” 2/7/2015
[6] O Partido Comunista Grego esclarece bem
este aspecto fulcral do Syriza. Contudo, recomendou o voto nulo no referendo, o
que não entendemos. Quanto a nós, parece-nos uma deserção da luta de massas em
nome de um purismo teórico.
[6] JN, 2 de Julho de 2015 (Venda do “BES bom”
renderá apenas 2500 milhões de euros. Fundo de resolução injectou 4,9 mil milhões)
[7] Silvia Merler, Who’s (still) exposed to Greece?, 29/1/2015, http://www.bruegel.org/nc/blog/detail/article/1557-whos-still-exposed-to-greece/