quinta-feira, 9 de julho de 2015

Reflexões sobre o Derrube do Comunismo (Palestra de Michael Parenti)

    Temos produzido neste blog muitos trabalhos que denunciam o capitalismo e a sua vertente neoliberal e imperialista. É um tema prioritário dada a situação de crise em Portugal e correspondentes injustiças sociais praticadas pelo capitalismo neoliberal e imperialista.
    Embora tenhamos apontado o socialismo como a única perspectiva concreta e credível de superação do capitalismo, não nos temos debruçado, nem sobre os actuais países socialistas e a caminho do socialismo, nem sobre a experiência histórica do socialismo em países ex-socialistas. É uma omissão que procuraremos reparar em próximos artigos. Pareceu-nos, entretanto, que nada melhor para iniciar tal reparação do que apresentar a tradução de uma importante palestra de Michael Parenti, com o título acima (https://www.youtube.com/watch?v=BYVes44hcJg). Note-se que, quando Parenti fala em «derrube do comunismo», está a usar uma expressão popular para designar o derrube do socialismo construído em vários países sob a liderança de Partidos Comunistas e Operários. Nunca nenhum Partido Comunista e Operário desses países construiu uma sociedade comunista ou reclamou tê-la construído.
    Depois de uma breve introdução biográfica de Michael Parenti, passaremos à apresentação da palestra.
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    Oriundo de uma família de trabalhadores italo-americana, Michael Parenti ingressou primeiro no mundo do trabalho, tendo depois progredido nos estudos até se doutorar em ciências políticas pela Yale University. Ensinou em vários colégios e Universidades, nos EUA e noutros países. Marxista e um dos principais analistas políticos progressistas dos EUA, Parenti escreveu numerosos trabalhos de investigação histórica e política, que compreendem mais de 550 artigos em revistas académicas, periódicos políticos e jornais, bem como 24 livros. É um autor premiado e palestrante internacionalmente conhecido. É membro da comissão editorial das revistas New Political Science e Nature, Society and Thought.
    Os livros e palestras de Michael Parenti são altamente informativos e incisivos, revelando um conhecimento e investigação profundos dos temas que aborda e uma análise lúcida da realidade. Atingem um público amplo nos EUA e noutros países. Os seus livros e artigos têm sido usados em cursos universitários. Alguns dos seus trabalhos estão traduzidos em mais de 20 línguas, mas, infelizmente e pelo que pudemos apurar, não em português de Portugal.
    
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Reflexões sobre o derrube do comunismo
Palestra de Michael Parenti, anos 90
Traduzida por Carlos Marques
Julho de 2015
[As notas no final do texto e as insertas no texto entre parênteses rectos, são do tradutor]
    
«O assunto é muito vasto e muito complicado. O meu interesse é ser claro e transmitir informação nas minhas palestras e fazer com que as pessoas pensem no assunto em questão. Não tenho pretensões de ter as respostas definitivas sobre este assunto muito complexo. O que vos quero dar é um esquema geral, pôr as coisas em perspectiva e dar muita informação sobre o assunto, informação que vou coligir num novo livro que estou a escrever chamado “Memórias das Políticas Futuras”.
   
Eu penso que o derrube -- e eu chamo-lhe derrube e não queda do comunismo --, o derrube do comunismo foi o que ocorreu, sendo a maior parte do crédito por este feito das forças ocidentais que incansavelmente se dedicaram a essa tarefa, usando de todos os meios ao seu dispor, exceptuando o ataque nuclear. O fim do comunismo ocorreu espantosamente com pouquíssima violência. Os comunistas entregaram o poder quase sem dispararem um tiro; com a excepção da Roménia em que houve algumas mortes, e três mortos na Polónia. Lech Walesa gabou-se de “terem tomado o poder derrubando os comunistas sem sequer partirem uma janela”. Isso diz mais acerca dos seus oponentes do que acerca de ele próprio. E diz algo que não está de acordo com a visão propagandeada no Ocidente, de totalitários sem escrúpulos que fariam tudo para manter o poder sobre populações cativas. Porque é que os impiedosos vermelhos não actuaram de forma mais impiedosa?
   
Claro que estes regimes já tinham reprimido os seus adversários. Durante o “reinado” de Estáline havia pessoas que eram executadas, internadas em campos de trabalhos forçados ou forçosamente realojadas em outras regiões do país. As estimativas ocidentais acerca do número de prisioneiros em campos de trabalho forçado soviéticos variam grandemente e abismalmente entre 3 milhões e 100 milhões [estimativas exageradas e infundamentadas 1], este último número recentemente pronunciado por um académico do Instituto Claremont. Ele disse 100 milhões de vitimas, não disse que seriam todas prisioneiros dos campos.  Tanto quanto eu saiba os que propõem estes números nunca revelam como os obtiveram ou chegaram a eles. Muitas das vítimas nos campos de Estáline eram funcionários do partido comunista, parte da elite dirigente do partido, gestores, patentes militares, e outras pessoas estrategicamente posicionadas no aparelho de Estado. Em determinados períodos outras categorias de pessoas tornaram-se suspeitas: prósperos proprietários de propriedade privada chamados kulaks, cidadãos de etnia alemã, soldados soviéticos que voltavam dos campos de concentração alemães depois da II.ª guerra mundial. A minha questão, ao colocar este tema de Estáline, é que o GULAG, com os seus “milhões” de vítimas, se formos a acreditar no que dizem Soljenitsine e Sakharov, supostamente existiu na União Soviética até aos últimos dias do comunismo 1. Se isto fosse verdade, para onde desapareceu? Isto é, quando os estados comunistas foram derrubados, onde estavam os milhões de vítimas dilaceradas, saindo aos magotes dos campos de internamento com as suas histórias de tormento? Não digo que não existam, apenas pergunto onde estão? Um dos últimos campos, Perm-35, foi visitado em 1989 e novamente em 1990 por observadores ocidentais; tinha apenas uma dúzia de prisioneiros, alguns dos quais eram declaradamente espiões, como reportado pelo Washington Post, e outros eram refuseniks (desertores) que tentaram fugir do país 2. Os prisioneiros queixaram-se da má qualidade da comida, do frio e de ocasionais maus tratos pelos guardas. Devo fazer notar que estes campos de trabalho forçado eram isso mesmo, campos de trabalho e não campos de extermínio como os dos nazis, em que havia o extermínio sistemático dos prisioneiros dos campos. Por isso a taxa de sobrevivência [dos campos soviéticos] era alta. Os visitantes também repararam que durante os anos 80 centenas de prisioneiros políticos tinham sido libertados dos vários campos. Mas centenas não são milhões! Mesmo com o “degelo” de Krutchev, depois da morte de Estáline, altura em que a maioria dos campos foi fechada, não houve sinais de milhões de prisioneiros a voltar à vida civil na sociedade soviética. Os números dos que foram libertados eram da ordem dos milhares [a população da União Soviética no início dos anos 60 era de cerca de 215 milhões]. Onde estão as vítimas? Porque não se descobrem valas comuns massivas? Porque não há julgamentos públicos como o de Nuremberga [um dos principais julgamentos dos criminosos nazis] de líderes comunistas, que documentem atrocidades massivas cometidas contra estes milhões, ou centenas de milhões, se quisermos acreditar no nosso “amigo” do Instituto Claremont? Certamente os novos governantes anti-comunistas da Europa de Leste e da Rússia saltariam de contentamento à oportunidade de processar estas pessoas. E o melhor que os alemães ocidentais [RFA] puderam fazer [depois da anexação da RDA] foi acusar o líder da Alemanha de Leste [RDA] Erich Honnecker e sete guardas de fronteira de atirarem sobre pessoas que tentavam escapar saltando o muro de Berlim 3. É um crime sério, mas não é nenhum GULAG!
   
Em 1955 o antigo secretário do Partido Comunista Checoslovaco em Praga foi condenado a dois anos e meio de prisão… Oh, um criminoso do GULAG?! Não. Foi por ter dado ordens à polícia para usar gás lacrimogénio e canhões de água para dispersar manifestantes em 1988. Será este o melhor exemplo de opressão comunista sedenta de sangue que os restauracionistas capitalistas conseguiram encontrar na Checoslováquia? Uma acção que nem sequer se qualifica como crime na maioria das nações ocidentais… canhões de água e gás lacrimogénio, estão a brincar?
   
Ninguém deve negar que se cometeram crimes, mas talvez a esmagadora maioria dos “milhões” do GULAG exista não na realidade mas nos baldes de propaganda anti-comunista que foram despejados sobre as nossas cabeças durante décadas.
   
Muitos na “esquerda” norte-americana [e do resto do mundo] mostraram um ódio à União Soviética e anti-comunismo que está ao nível de qualquer um da direita na sua crueza e obrigatória persistência. O meu amigo Noam Chomsky falou no outro dia num magazine acerca daqueles esquerdistas que chegam ao poder às costas das massas e se transformam em criminosos comunistas. Noam! O que estás a dizer?! P’ra que estás a dizer isso?
   
Foi-nos dito que os comunistas têm fome de poder, em vez de quererem o poder para acabarem com a fome. Aqueles de nós que se recusaram ao longo dos anos a juntarem-se ao ataque difamatório contra os soviéticos, que por altura de Reagan atingiu níveis escabrosos, éramos denominados de apologistas dos soviéticos e estalinistas, mesmo que não gostássemos de Estáline e do seu sistema autocrático de governo. O meu verdadeiro pecado, que já cometi, e que planeio cometer novamente esta noite [nesta palestra], é que eu questiono em vez de adoptar acriticamente as imagens da propaganda dos media e os estereótipos acerca do comunismo existente. O meu outro pecado, que também planeio cometer, é que sempre disse e continuo a dizer que havia coisas positivas nos sistemas comunistas existentes.
Se olharmos para a União Soviética, esta é uma nação que repeliu e destruiu a besta nazi e ao fazê-lo susteve 80% das perdas aliadas na II.ª grande guerra, 22 milhões de mortos… Eu penso que essa é uma dívida que a humanidade deve ao povo soviético…
   
Eis uma nação que em três décadas fez avanços industriais iguais ao que o capitalismo levou um século para atingir, enquanto alimentava e dava educação às suas crianças, em vez de as fazer trabalhar 14 horas por dia, como acontecia nos países capitalistas durante a revolução industrial, e como os capitalistas ainda fazem hoje em dia em muitas partes do mundo…
   
Eis uma nação que ofereceu assistência vital, material, militar, médica, a movimentos de libertação no Vietname, Cuba, Nicarágua, África do Sul, Angola e outros países… Como disse Nelson Mandela num show de TV em Washington em 1990, em que o apresentador como de costume dizia: “Os EUA fizeram isto e os soviéticos fizeram aquilo”, portanto estava a balancear, “O que você diz senhor Mandela?” e Mandela respondeu: “Por favor não diga mal da União Soviética, têm sido nossos grandes amigos e deram-nos ajuda valiosa na luta contra o racismo e o apartheid” – só Mandela poderia dizer isso na TV nacional.
   
Aqui estava um dos poucos países, que apesar de todas as suas injustiças e estruturas disfuncionais, e eu vou falar acerca disso, garantia aos seus cidadãos um mínimo de segurança económica. Outro ponto positivo que nunca é mencionado: um país que salvou da morte 3 milhões de seus cidadãos judeus durante a II.ª guerra mundial. Muitos judeus foram mortos durante a II.ª guerra mundial, mas 3 milhões de cidadãos judeus soviéticos foram salvos. O que é mais do que se pode dizer acerca do que aconteceu aos judeus da Polónia, da  Europa Ocidental, Alemanha e Croácia.
   
O anti-comunismo de esquerda foi e ainda é tão ortodoxo e dogmático como o macartismo mais vulgar ou extremo, pois não tolera que nada de positivo seja dito acerca de sistemas comunistas existentes, com a excepção talvez de Cuba e no entanto o sistema cubano é em si mesmo uma cópia exacta do sistema soviético, sistema de partido único com papel dirigente para sindicatos, liga das mulheres, liga dos jovens; é exactamente o mesmo modelo, só que Cuba é olhada de forma mais acolhedora, o que não é mau, devemos ficar gratos pelas pequenas coisas…
   
O anti-comunismo de esquerda espera nada menos do que uma condenação a priori de países comunistas como monstruosidades estalinistas, aberrações morais e históricas. Eu prefiro aquilo que os psicólogos chamam de: avaliação diferenciada de objecto. Ou seja, quando examinas algo, deves vê-lo de uma forma muito diferenciada, algumas coisas boas, algumas coisas más, independentemente de qual é a ortodoxia política, independentemente de qual seja a sugestão para “manter a credibilidade” [perante meios académicos e media reacionários]. Reagindo a este anti-sovietismo e anti-comunismo muitos comunistas exageraram, indo para o outro extremo e refreando-se de proferir ou mesmo de tolerar ou ouvir uma palavra crítica acerca da forma autocrática [de governo] ou outros aspectos problemáticos da União Soviética. Entrei em mais do que uma discussão ao tentar fazer uma crítica do sistema soviético com amigos e conhecidos do Partido Comunista [dos EUA]. Lembro-me de uma amiga, membro do partido aqui nos EUA, que me garantiu de que não havia prostituição na União Soviética. Aqui estava uma mulher, na casa dos 40, uma mulher adulta com experiência de vida, a dizer-me que nesta nação de 300 milhões de habitantes não havia prostituição! Eu não podia acreditar! Porque me lembro de que quando estive na União Soviética a guia me dizer “Não existe prostituição no meu país!” -- outra mulher adulta e crescida -- e eu disse-lhe: “Talvez não haja prostituição no seu país, mas há uma data dela aqui neste hotel onde estou!”. Vamos ser realistas! Estamos a falar acerca desta coisa muito confusa e imperfeita que se chama o ser humano! E as organizações sociais que ele desenvolve ainda são mais confusas e imperfeitas. Bem... sabem qual foi a resposta dela? Ela disse sem piscar um olho: “Bem, gostaria que soubesse que essas moças também têm trabalhos normais durante o dia!” [risos], dando assim novo significado ao termo “moça trabalhadora!” [working girl, trocadilho em inglês] [risos].
   
Algumas pessoas dizem que os derrubes na Europa de Leste não constituem uma derrota para o socialismo, porque o socialismo nunca existiu naqueles países, o que haveria lá era capitalismo de Estado. Se os queremos chamar de socialistas ou não, é uma questão de definição. Basta dizer que eles [os países de Leste] eram algo de diferente relativamente ao que existia no mundo capitalista movido pelo lucro, como aliás os próprios capitalistas souberam rápida e persistentemente reconhecer. Primeiro – as forças produtivas [os meios de produção] nestes países não estavam organizadas para o lucro capitalista e enriquecimento privado, como acontece no capitalismo; a propriedade pública suplantava a propriedade privada. (2-) As regalias disfrutadas pelas elites do partido e do governo eram relativamente modestas quando comparadas com as das elites da maioria das civilizações; sim, é verdade que líderes soviéticos como Yuri Andropov e Leonid Brejnev tinham grandes datchas [casas de férias no campo ou na praia, podendo ir do bungalow à casa com pequeno terreno envolvente] onde recebiam líderes visitantes estrangeiros; sim, é verdade, que tinham limousines de serviço e viviam em apartamentos relativamente grandes [quando comparados com a média dos outros cidadãos soviéticos], em condomínios especialmente destinados a dirigentes do governo perto do Kremlin; eu os vi, são uns edifícios grandes, velhos e feios, nada auspiciosos, era aí onde moravam os líderes da União Soviética. Mas pronto, eram maiores [os apartamentos] do que o que obteria o cidadão soviético comum 4. (3) Mas ninguém na União Soviética podia contratar o trabalho de outros e explorá-lo para extrair riqueza pessoal desse trabalho. (4-) O grau de riqueza herdada era também relativamente modesto e limitado. (5-) A diferença entre os salários mais altos e mais baixos na União Soviética era de cerca de 3 ou 4 para 1, ao contrário de 40 a 50 para 1 como acontece nos EUA [hoje em dia muito mais, cerca de 1.000 para 1, quer nos EUA quer em Portugal]; de facto, fizeram-se cálculos, e comparando os rendimentos do multibilionário Steve Forbes aos de um assalariado pobre [dos EUA], essa diferença é da ordem de 10.000 para 1. (6-) Além disso, os países comunistas não perseguiam uma estratégia de penetração capitalista de outros países [vulgo imperialismo ou neocolonialismo], pois não tinham o primado do lucro como sua força motriz, não tinham a necessidade incessante de encontrarem novas oportunidades de investimentos para acumularem mais [capital] para poderem investir mais no estrangeiro, como acontece com o capitalismo. As relações comerciais e de auxílio económico da União Soviética eram geralmente economicamente favoráveis aos países do Leste Europeu e a outros países como Cuba ou Índia.
   
Argumenta-se que um socialismo de verdade seria controlado pelos próprios trabalhadores através de participação directa, em vez de ser dirigido por leninistas, estalinistas e castroistas; ou por outros líderes maléficos e de más intenções e burocratas que traiem as revoluções, ouvimos dizer. Bem, infelizmente, essa visão de socialismo puro é profundamente a-histórica e não falsificável. Quero eu dizer que isso significa que continua a não ser testável pelas realidades históricas. [Essa visão] Compara um ideal com uma realidade imperfeita. E claro que a realidade imperfeita acaba sempre num pobre segundo lugar. As antecipações ideológicas do socialismo puro permanecem manchadas pela prática existente. Não explicam como uma complexa sociedade revolucionária poderia ser construída e assegurada, como as prioridades poderiam ser definidas, como a sobrevivência poderia ser alcançada, apenas tendo “os trabalhadores controlando tudo”. Como se vai apropriar suficiente mais-valia para criar um exército para defender o seu país contra a invasão que aí virá?
   
Não é surpresa nenhuma que esses que têm essa visão de socialismo puro apoiem todas as revoluções, menos aquelas que triunfam. Os “socialistas puros” geralmente culpam a esquerda por todas as derrotas da esquerda. Não eram suficientemente vigorosos, não eram suficientemente aptos, não mobilizaram suficientemente o povo, não fizeram suficiente disto, não fizeram suficiente daquilo… Presumem saber melhor do que aqueles que realmente estão engajados nas lutas reais e é uma infelicidade que eles não tenham arranjado o tempo para aplicar as suas próprias e brilhantes visões, bem como génio de liderança, para produzir uma revolução de massas triunfante no nosso próprio país. Tony Febbo, escrevendo no Guardian em 1991, questionou esta posição de “socialistas puros”, afirmando: “parece-me que quando pessoas tão espertas, diferentes, dedicadas e heróicas como Lenine, Mao, Fidel Castro, Daniel Ortega, Ho Chi Min e Robert Mugabe e milhões de outras pessoas heróicas que seguiram e lutaram ao lado deles, todos acabam mais ou menos na mesma situação, então algo maior está operando do que quem tomou tal decisão em tal reunião, ou mesmo de que tamanho seriam as casas para as quais voltaram depois da reunião. Estes líderes não existiam num vácuo, estavam no meio de um furacão e a força de sucção -- o poder que rodopiava em torno deles -- fez rodar o mundo que estava manietado por mais de 900 anos. E culpar esta ou aquela teoria ou este ou aquele líder é uma simplificação ingénua comparada ao tipo de análise que os marxistas devem fazer.”.
   
Para que uma revolução popular sobreviva tem de capturar o poder do Estado, e eu acredito que tem de usar o poder do Estado, para duas coisas: primeiro, tem de quebrar o garrote exercido pela classe dos ricos sobre a sociedade, instituições e recursos; segundo, tem de suportar o contra-ataque reacionário que certamente virá, internamente e externamente. Os perigos que [a revolução popular] enfrenta tornam necessária a criação de um poder de Estado centralizado, algo que não é particularmente agradável para ninguém. Nem na Rússia Soviética de 1917, nem na Nicarágua Sandinista de 1980. O ideal seria ter apenas comités locais auto-dirigidos, de participação directa dos trabalhadores de socialismo comunitário, com o minímo de burocracia, poucos polícias e sem militares. E este provavelmente seria o desenvolvimento normal do socialismo, se ao socialismo fosse algum dia permitido desenvolver-se normalmente. Durante a sua história de 73 anos -- falo da União Soviética -- de invasões contra-revolucionárias, guerras civis, industrialização forçada, purgas estalinistas, conquista nazi, guerra fria, corrida ao armamento, ameaça nuclear, discriminação comercial, embargo económico, a União Soviética não conheceu um único dia desenvolvimento normal e pacífico. Todos estes eventos tiveram um poderoso efeito distorcedor na construção do socialismo. E observa-se o mesmo a ocorrer hoje… [Parenti não termina a frase] Esta mentalidade de cerco tornou-se muito clara no congresso do partido em 1921 [10.º Congresso do PCR(b)], quando Lenine se levantou e disse à “oposição operária”: “basta de oposição, já tivemos oposição demais, não aguentamos mais; oposição durante a guerra civil, oposição de fora do partido, oposição de dentro do partido, chega, vamos deixar-nos disso” e o congresso do partido explodiu em vivas e aplausos e a “oposição operária” foi abolida, quero dizer, puderam continuar no partido mas não podiam mais ter uma facção organizada de oposição no partido. Agora a palavra de ordem era: para sobreviver necessitamos de ordem unida no partido, necessitamos de um poderoso Estado centralizado, as disputas abertas e tendências conflictuantes dentro e fora do partido, só criam uma aparência de divisão e fraqueza e isso é um convite ao ataque dos nossos inimigos, concluíram os comunistas.
   
Esse mesmo dilema, esse mesmo problema, de como desenvolver uma sociedade humana ao mesmo tempo que se enfrentam condições desumanas, foi enfrentado por revoluções do tempo presente. Aquelas que se confrontaram com as guerras de desgaste financiadas pela CIA, como na Nicarágua, Moçambique, Angola e noutros lugares. Um trilho de pequenas nações quebradas, em que o bébé revolução ou foi estrangulado no berço ou foi impiedosamente deformado para além de qualquer reconhecimento.
   
Os governos comunistas tiveram ainda que suportar a carga extra do legado “extraordinário” [aspas nossas] do colonialismo e subdesenvolvimento. Muitas pessoas não sabem que a maior parte da Europa de Leste antes da II.ª Guerra Mundial -- e certamente também depois da II.ª Guerra Mundial, dada a destruição adicional -- era uma região do terceiro-mundo, em que milhares de povoações estavam reduzidas a escombros; analfabetismo, pobreza, doença, frio e fome eram a sina dos camponeses e da maioria dos trabalhadores, tal como o eram antes da guerra; a formação de capital era quase inexistente. O mesmo era verdade na Rússia pré-revolucionária, o mesmo era verdade na China pré-revolucionária. Henry Rosemont fez notar que quando os comunistas libertaram Xangai do governo reaccionário do Kuomintang patrocinado pelos EUA, em 1949, descobriram que cerca de 20% da população de Xangai, 1,2 milhões de pessoas, eram adictos a drogas [ópio, quase de certeza]. Todas as manhãs equipas especiais de limpeza de rua reuniam os cadáveres de crianças e adultos que tinham sido assassinados na noite anterior ou tinham morrido de doenças, frio e fome.
   
O comunismo, senhoras e senhores, digo-o sem tergiversar, o comunismo na Europa de Leste, Rússia, China, Mongólia, Coreia do Norte e Cuba, trouxe a reforma agrária, serviços sociais, uma melhoria dramática das condições de vida de centenas de milhões de pessoas, numa escala nunca antes ou nunca depois testemunhada na história humana. E isso é algo a apreciar. O comunismo transformou países desesperadamente pobres em sociedades em que todos tinham alimentação adequada, abrigo, cuidados médicos e educação; e alguns de nós que viemos de famílias pobres, que carregamos os ferimentos ocultos da nossa classe, estamos muito, muito impressionados por estas conquistas e não estamos dispostos a descartá-las como “economísticas” [aspas nossas]. Dizer que o socialismo não funciona é ignorar o facto de que funcionou, e funcionou para centenas de milhões de pessoas! Então, e os direitos democráticos que perderam? [Parenti imitando um questionador]. Ouvimos os líderes dos EUA falar acerca de restaurar a democracia nos países comunistas. Mas estes países, com a excepção da Checoslováquia, não eram democracias antes do comunismo! A Rússia era uma autocracia tsarista. A Polónia era uma ditadura fascista de extrema-direita sob Pilsudski, com os seus próprios campos de concentração. A Albânia era um protectorado da Itália fascista desde 1927. Cuba era uma ditadura patrocinada pelos EUA sob o carniceiro Batista. Lituânia, Hungria, Roménia e Bulgária eram regimes abertamente fascistas, aliados declarados da Alemanha nazi na II.ª Guerra Mundial. Então, exactamente de que democracia estamos a falar em restaurar?! Os países socialistas não tiraram quaisquer direitos que não existiam já a priori.
   
Tudo isto não constitui uma negação de que os países comunistas sofriam de deficiências internas e contradições que foram factores reais na sua queda. Não estou a querer colocar toda a culpa no cerco capitalista. Lembro-me de falar com o poeta e diplomata cubano Pablo Amandes em Havana, em sua casa, por sinal ele próprio frequentemente um crítico do seu país, e ele disse: “Mas sabe, a maioria dos nossos problemas são realmente causados pelos nossos inimigos, se eles não estivessem aqui poderíamos ter resolvido as coisas e desenvolvido de uma maneira tão diferente, teríamos tantos menos encargos com militares e segurança, etc.”. Ainda assim, penso que existem problemas reais inerentes aos sistemas que foram construídos. Todos eles estavam sobrecarregados com um sistema económico de gestão que tendia a estagnar. E, por sinal, podia não haver outra escolha, não estou a dizer que eles eram estúpidos e não deviam tê-lo construído dessa forma. Estou a dizer que dadas as exigências do tempo isso era o que eles tinham de construir, mas o que eles tiveram de construir tinha em si próprio as suas próprias contradições. Era nesse tempo uma resposta a uma necessidade histórica e no entanto começou a criar os seus próprios problemas. Os soviéticos, por exemplo, produziram muitos dos melhores cientistas do mundo; exportaram mais poder cerebral... [Parenti não termina a frase]; os melhores matemáticos e físicos também. Mas muito poucos dos seus trabalhos teóricos se materializaram em produção real durante a revolução científico-tecnológica dos anos 70 a 80. A sua base industrial em 1990 era aproximadamente ainda a mesma que Estáline construiu! Gorbatchev queixou-se acerca do “sistema de gerência que rejeita os progressos científico-tecnológicos e novas tecnologias, que está comprometido com produção custo-ineficiente e gera dispersão e desperdício”. Mas não é suficiente fazer a denúncia da inércia gerencial, também se tem que explicar porquê estas práticas persistiram apesar de repetidas exortações de líder após líder, desde Estáline. Podemos “ouvir” [aspas nossas, Parenti refere-se essencialmente à leitura de documentos] Estáline arengar a Krutchev acerca dos burocratas, quando Krutchev era o seu assistente, tal qual Krutchev recorda nas suas memórias. O facto é que existiam imperativos sistémicos que operavam contra a inovação. Os gestores eram pagos independentemente de tomarem riscos ou não, ou se nova tecnologia era desenvolvida ou não. Não havia qualquer incentivo para inovar, havia muitos incentivos para não inovar. Todos os materiais e trabalho estavam completamente comprometidos de acordo com o plano. Dessa forma era difícil transferir recursos para novos projectos experimentais, correndo o risco de baixa produtividade durante a transição, ou correndo o risco de fracasso. As empresas nunca tinham de pagar os preços reais correspondentes ao valor de materiais e combustível, e assim frequentemente usavam estas mercadorias de forma ineficiente e desperdiçando-as. As melhorias na produção apenas conduziriam a um aumento da quota de produção. “Se fizermos melhor dão-nos uma quota maior no próximo ano” [aspas nossas]. De facto, fábricas bem geridas e inovadoras eram “punidas” com maiores cargas de trabalho. As mal geridas, que mostravam perdas, eram premiadas com subsídios do Estado. Sob pressão para produzir em quantidade os gestores frequentemente cortavam na qualidade. Os agricultores [camponeses dos kholkozes e sovkozes] faziam o mesmo; por exemplo, os compradores estatais de carne apenas prestavam atenção à quantidade; dessa forma qual era o incentivo para as quintas colectivas? [kholkozes e sovkozes]. Era maximizar a renda, produzindo animais cada vez mais gordos. Os consumidores podiam não desejar comer carne gorda, mas isso era problema deles… Mas só um louco ou um santo trabalharia mais duro para produzir carne de melhor qualidade pelo “privilégio” [aspas nossas] de lhe pagarem menos. Pensar-se-ia que após 70 anos eles teriam definido um sistema de classificação das carnes, mas esta pressão pela quantidade ia até ao topo e ninguém queria causar ondas.
   
Como em todos os países, quer sejam capitalistas ou comunistas [existem problemas de organização social -- Parenti não terminou a frase]; e, aliás, seria interessante notar qual destes problemas é peculiar do socialismo, deste tipo particular de socialismo, desta fase do desenvolvimento histórico de que estamos a falar agora, Europa de Leste, China, Cuba e União Soviética, quais destes [problemas] são peculiares a estas áreas e quais outros problemas de organização social são peculiares ao capitalismo -- com uma extensa lista neste caso --, quais são de facto universais e quais deles, de certa forma, fazem apenas parte da natureza da organização social. Esse seria o tema de outra palestra e eu não queria agora entrar por aí. Deixem-me apenas dizer que certamente a burocracia -- que é frequentemente descrita como sendo uma componente particular do socialismo e que é encontrada na nossa sociedade e em todos os lugares também, (e temos coisas interessantes a dizer acerca disso mais tarde, na perspectiva da Alemanha de Leste) [parênteses nossos 5] -- a burocracia, quer seja capitalista ou comunista, tende a tornar-se num animal que se alimenta de si próprio. Nos países socialistas existentes havia empresas em que o pessoal administrativo aumentava a um ritmo mais rápido do que o dos trabalhadores produtivos. Lembro-me de pelo menos duas universidades em que dei aulas, uma era a Universidade Estadual de Nova York [New York State University] em Stony Brook e a outra era a Universidade de Vermont. Ambas passaram por períodos de crescimento rápido. Era muito interessante o que acontecia, o corpo discente crescia cerca de 20% durante um certo número de anos, a faculdade crescia cerca de 24% a 18%, algo deste tipo, aproximadamente o mesmo valor, e a administração crescia na ordem dos 70%! E nós diziamos: “O que fazem todos estes tipos? O que faz o assistente associado, deputado do reitor, do currículo, disto e daquilo? O que faz ele para além de responder a telefonemas, fazendo-se de ocupado e a enviar-nos memorandos que tinhamos de preencher, porque eles tiveram uma ideia acerca disto ou daquilo…”. [aplausos] Aplausos de alguns membros zangados da administração escolar que estão aqui na audiência [risos].
   
Havia empresas nos países socialistas... uma fábrica com 11.000 trabalhadores produtivos poderia ter 5.000 administradores [pessoal administrativo]. Um fardo considerável. O  pesado modo de operação burocrático não permitia o feed-back [retorno] crítico auto-correctivo. O destino dos whistle-blowers [os que denunciam injustiças ou más-práticas] era o mesmo nos países comunistas tal como nos nossos [países capitalistas]. Aqueles que expunham a corrupção e a incompetência era mais provável correrem riscos do que receberem recompensas. Isso também conduzia a uma liderança alheada. Em 1990, em Washington D.C., estive presente numa conferência de imprensa do embaixador húngaro, que anunciou que o seu país estava a abandonar o seu sistema socialista porque não funcionava. Então levantei a minha mão e perguntei: “Senhor, porque não funcionava?”. Seria uma discussão interessante. E ele disse: “Eu, não sei…”. E eu queria levantar-me e ir agarrar o sujeito pelas lapelas e dizer: “Tonto, ouve, você é uma das pessoas a dirigir esse processo e admite que não faz a miníma ideia do que se estava a passar nesse processo?!”. É incrível, não é?!
   
Bem, por acaso estou a usar o pretérito perfeito, mas a maioria destes problemas continua a existir nos restantes países comunistas, Coreia do Norte, Cuba e Vietname 6. Se falarmos com os habitantes de países comunistas descobrimos que eles pouco se queixam de um totalitarismo arrogante, que é a nossa imagem desta coisa totalitária a esmagar-nos [Parenti faz gesto empurrando de cima para baixo], mas as suas queixas, em geral, eram exactamente o oposto. A queixa ouvida com mais frequência era sobre a ausência de controlo responsável, de que ninguém parecia ser “responsável pela loja”. Pessoal de manutenção falhava em fazer as reparações necessárias. Os ocupantes de um novo condomínio regularmente recusavam-se a pagar a taxa de condomínio e ninguém se preocupava em ir cobrar. Deficiente gestão nas colheitas, armazenamento e transporte causaram cerca de 30% de perdas da produção total entre os campos e as lojas. Toneladas de carne estragavam-se porque não conseguiram implantar refrigeração apropriada. E, não surpreendentemente, havia amplas oportunidades para corrupção e favoritismo. O director de fábrica que aceitava subornos para colocar pessoas no topo da lista de espera para comprar carros. O vice-ministro que foi apanhado a usar materiais do Estado para construir a sua casa de verão. As recompensas pareciam depender de operar à volta do sistema ou mesmo contra ele. Se você agisse dessa forma é que recebia uma recompensa. Por exemplo: quanto pior o serviço do restaurante, menor o número de clientes; quanto menor o número de clientes, menos trabalho e mais comida que sobrava e que se podia levar para casa ou vender no mercado negro. A última coisa que o pessoal de um restaurante queria ter era clientes satisfeitos e que continuassem a voltar para jantar pelos artificialmente baixos preços, oficiamente fixados. Por isso é que os restaurantes eram tão horríveis no socialismo. Então o sistema, na verdade, oferecia muitos desincentivos. Em 1979 o líder cubano Raúl Castro, o irmão de Fidel, queixou-se acerca de práticas fraudulentas de trabalho, notando o absentismo, relatórios de trabalho falsificados, desaceleramentos propositados para não suprimir normas de trabalho, normas essas que eram fixadas a níveis artificialmente baixos. Na maior parte dos países comunistas tinha-se a impressão de que qualquer um como trabalhador parecia conspirar contra qualquer um como consumidor. Isto é exagerado, obviamente, algumas coisas eram feitas, edificios eram construídos, as pessoas tinham roupas, os livros eram excelentes, eram o produto que eles produziam que era de excelente qualidade, o sistema de transportes públicos era excelente; assim, havia algumas coisas, obviamente algumas pessoas estavam a trabalhar em algo. Não quero exagerar, mas apenas dizer-vos qual era um dos grandes problemas. Lembro-me de um fulano soviético me dizer: “vocês estão cansados de trabalhar tão duro, nós estamos cansados de esperar nas filas todo o tempo”. E eu pensei: “bem, se vocês trabalhassem um pouco mais não haveriam tantas filas…”.
   
As economias comunistas tinham um aspecto de “Alice no País das Maravilhas”, em que era notável que o preço de quase qualquer mercadoria e serviço não tinha qualquer relação com o seu custo ou valor real, excepto nos dispendiosos artigos de luxo. Com os preços sustidos tão artificialmente baixos havia uma grande disparidade entre o poder de compra e o fornecimento de bens e serviços, e isto por sua vez afectava a performance no trabalho. Ouvi um amigo da Alemanha de Leste queixar-se acerca da pobreza dos serviços e produtos de qualidade inferior. Ele disse: “O sistema não funciona, você vai ao hospital e eles não lavaram o chão, e a mulher que era suposto lavá-los não o fez porque não apareceu para o trabalho, o sistema não funciona!”; Lembro-me de lhe dizer: “Mas Klaus, então e a educação gratuita, o sistema de saúde público, e os inúmeros outros benefícios que fazem tanta falta aqui nos EUA e na maior parte do mundo capitalista, não têm essas coisas valor?”; E a sua resposta foi muito interessante, olhou para mim e disse: “Oh! Nunca ninguém fala acerca disso!”. E isso mostra-vos que as pessoas tomavam como garantidos os serviços e benefícios sociais enquanto ansiavam pela cornucópia de consumo que eles imaginavam existir para todos no Ocidente. Quando as nossas necessidades são satisfeitas então os nossos desejos tendem a escalar, de facto os nossos desejos transformam-se nas nossas necessidades.
   
De Cuba à China, da Rússia ao Laos e Vietname, havia intelectuais e profissionais que tinham relativamente bons padrões de vida e que, no entanto, queriam viver ainda melhor, queriam viajar para o estrangeiro, queriam ver Paris, queriam que maiores oportunidades se tornassem disponíveis a pessoas como eles próprios. Queriam o mesmo tipo de oportunidades que estavam disponíveis a pessoas com meios no mundo capitalista. Em 1989, aqueles que fugiram do Vietname, de acordo com uma história do Washington Post, não eram nem os desesperadamente pobres nem dissidentes políticos perseguidos. Citando um: “Não acho que a minha vida no Vietname fosse má, de facto eu estava muito bem, mas é a natureza humana querer sempre algo melhor.”; Outro, citando: “Eles saíram pelas mesmas razões que nós, queriam ser mais ricos, tal como nós”. Testemunhos similares podem ser obtidos de emigrantes da Europa da Leste, talvez não tão descarados, mas algo desse tipo. O anseio era geralmente, não por uma abstração chamada democracia, mas pela cornucópia do Ocidente; na maioria dos casos, não sempre. Com a subida dos níveis de vida, sobem também as expectativas. As pessoas não são necessariamente gratas pelo que têm. Isto parece ser especialmente verdadeiro entre os jovens, que não têm memória das privações pré-revolucionárias. Os dois grupos mais descontentes em sociedades socialistas são os intelectuais e os jovens, os dois grupos que sabem tudo. Hoje em dia em Cuba muitos jovens não vêm qualquer valor em aderirem ao Partido Comunista. Acham que Fidel já teve o seu dia e deveria afastar-se, as conquistas da revolução na educação e saúde pública é algo que é tomado como garantido e que não os entusiasma, estão fartos da escassez [de produtos de consumo], para eles a revolução é história, algo acerca do qual os seus pais ficaram excitados. Se têm alguma paixão colectiva é pelas útimas modas de vestuário e música da América do Norte. Em geral, estão mais preocupados com o seu futuro pessoal do que com a melhoria colectiva ou o socialismo. Lembro-me da primeira vez que fui a Cuba em 1974, que o slogan nessa época era: “O nosso único grupo privilegiado é a nossa juventude”. E lembro-me de lhes dizer: “Esse é o vosso primeiro erro” [risos].
   
Até nas melhores sociedades pode não haver suficientes trabalhos compensadores; muito do trabalho na sociedade tem um valor instrumental mas não tem nenhum valor inerente. Pode ser dado um trabalho a alguém -- a trabalhar para construir a revolução -- pintando paredes todo o dia. Depois de algum tempo a revolução começa a perder o seu lustre e quanto mais eficientemente e rapidamente você pintar uma parede apenas vai ter outra parede para pintar e se as pintar depressa ou rápido recebe o mesmo, então qual é o sentido? Não existe suficiente trabalho interessante e criativo para todos os que se considerem pessoas interessantes e criativas, e existem muitas delas. Muitos dos intelectuais de países comunistas não eram apenas anti-marxistas, mas iam até ao ponto de serem desbragados aduladores do reaccionarismo ocidental. Quanto mais raivosamente anti-comunista, quanto mais chic e reaccionária fosse a posição, mais apelo tinha. Eram ferozes opositores do seu próprio sistema, eram completamente gágás e irrealistas acerca da América e incapazes de ver o lado decadente da sociedade dos EUA e do capitalismo global, eram totalmente racistas em relação às minorias no seu próprio país e nos EUA. Como o editor do Wall Street Journal disse, escrevendo um artigo no National Review (não se pode ser mais conservador que isso) [o National Review é uma revista reacionária americana], e cito-o: “Eles amam o Ronald Reagan, cigarros Marlboro e o Sul na guerra civil americana”. Os intelectuais da Europa de Leste apoiaram todas as intervenções militares dos EUA e todas as escaladas de armamento dos EUA como defensivas e abertamente detestavam o movimento pacifista americano. Isto também é verdade acerca de Andrei Sakharov -- que é algo que nunca aparece nos media; ele detestava e criticava abertamente o movimento pacifista nos EUA. Nunca tinham uma palavra antipática para regimes fascistas que eram fiéis Estados clientes dos EUA. E dirigiam comentários cínicos àqueles de nós que a tínhamos [palavra antipática para regimes fascistas]; podem ler Sakharov sobre isso também. O seu apoio à dissidência não se estendia a opiniões que se desviavam para a esquerda deles; toleravam a dissidência à sua direita mas não à sua esquerda, como é verdade acerca de muitas pessoas cá. Em 1990, numa das suas publicações muscovitas, a Literary Gazette (li a tradução inglesa), alardeava Ronald Reagan e George Bush como “estadistas” e chamava-os de arquitectos da paz mundial. Isto em 1990, quando a União Soviética ainda existia! Durante a glasnost 7 tínhamos estas novas “publicações” [como a Literary Gazette, aspas nossas] a serem editadas! Questionava a necessidade de um ministério da cultura na União Soviética; cito: “não existe tal ministério nos EUA e no entanto parece não haver nada de errado com a cultura americana” [risos]. Quem diz que os Russos não têm sentido de humor?! [mais risos]. Muitos deles pensavam que podiam conservar todas as seguranças do comunismo e apenas recobri-las com o consumismo capitalista. Pensavam que se fossem despedidos, se a sua fábrica fosse privatizada, o governo ia atribuir-lhes um outro emprego. Tal como os trabalhadores polacos, assumiam que tudo o que tinham ia permanecer, e apenas iam ter estas coisas novas. Não percebiam [They didn’t get it – não o apanhavam]. Agora estão a apanhar; menino, como estão a apanhar mesmo no traseiro! Outra coisa, nem todos engoliram a mitologia do mercado livre. No período de 1989 a 1991 de derrube e transição havia sondagens na Checoslováquia, Bulgária, Rússia e Alemanha de Leste que eram reportadas na imprensa dos EUA e que mostravam que a maioria das pessoas ainda optava pela propriedade estatal [pública] ou uma forma modificada de socialismo. Os números dos que realmente queriam o capitalismo de mercado livre eram surpreendentemente pequenos.
   
Quando os governos anti-comunistas tomaram o poder na Rússia e na Europa de Leste dedicaram-se à supressão da esquerda comunista e socialista em nome da reforma democrática. Em finais de 1993, enfrentando a resistência às suas políticas de mercado livre, Boris Ieltsin dissolveu pela força o parlamento Russo e todos os outros corpos representativos eleitos do país, incluíndo todos os conselhos regionais e municipais. Aboliu o Tribunal Constitucional Russo e lançou um ataque de blindados contra o edíficio do Parlamento massacrando centenas de resistentes e manifestantes, sendo as estimativas de 3.000 mortos. Milhares foram perseguidos e detidos, líderes da oposição foram presos sem julgamento; centenas de oficiais eleitos foram alvo de investigação, alguns ainda estão na prisão. Ieltsin baniu os sindicatos de terem quaisquer actividades políticas, suprimiu dúzias de publicações e programas de televisão; exerceu controlo monopolista sobre todos os media de difusão; ilegalizou 15 partidos políticos, reescreveu a constituição dando aos executivos poder quase absoluto sobre a legislação. E, por estes crimes, ele foi tratado como um defensor da democracia e da reforma pelos líderes dos EUA e pelos media [incluindo, claro está, os media portugueses, meros retransmissores dos EUA]! O que eles mais gostavam acerca de Ieltsin era, citando o San Francisco Chronicle: “ele nunca vacilou no seu apoio à privatização das indústrias estatais”. Acho que isto diz tudo.
   
Nos vários países da Europa de Leste os marxistas foram purgados de todos os empregos públicos, os bens dos partidos comunistas adquiridos e pagos pelos membros dos partidos foram arbitrariamente confiscados. O mesmo na Alemanha, na Rússia… Na República Checa, Václav Hável confiscou as propriedades da União Socialista das Juventudes, que incluíam acampamentos, salões recreativos, e instalações culturais e científicas para crianças. Estas foram liquidadas e postas sob a gestão de companhias anónimas, em detrimento da juventude que foi deixada a vaguear nas ruas. Na Rússia, Boris Ieltsin por duas vezes suspendeu o jornal do Partido Comunista, Pravda, e acabou por entregar o edifício de 12 andares do partido e a sua imprensa a um jornal pró-Ieltsin do governo, que se tornou seu proprietário. A polícia de Ieltsin continuou a atacar manifestações políticas em Moscovo e outras cidades. Dois delegados parlamentares, um independente, o outro comunista, que vigorosamente se opunham ao governo de Ieltsin foram assassinados. Em 1994, o jornalista Dmitri Cholodow que pesquisava a corrupção em altos cargos foi assassinado. Surgiram partidos e campanhas reaccionárias, anti-semitas e cripto-fascistas nos países ex-comunistas, juntamente com a profanação de cemitérios judaicos e ataques xenofóbicos contra estrangeiros de pele mais escura. Lech Walesa, cito: “Um bando de judeus apoderou-se da manjedoura e está obstinado em destruir-nos”. Mais tarde, Lech Walesa disse que foi mal interpretado, ele não queria dizer todos os judeus, apenas os gananciosos [risos]. Lembro-me de quantas pessoas de “esquerda” [aspas nossas] adoravam o Lech Walesa, um herói operário que vai trazer o verdadeiro socialismo. Pois, claro… Na Checoslováquia, Polónia e noutros países, museus que comemoravam a heróica resistência antifascista foram fechados, e monumentos à luta contra o nazismo foram removidos. Em países como a Lituânia ex-criminosos de guerra nazis foram exonerados de culpabilidades, alguns até foram financeiramente compensados pelos anos que passaram na prisão. O primeiro presidente da Checoslováquia anticomunista, e mais tarde presidente da Républica Checa, Václav Hável, outro fulano que é adorado entre alguns dos académicos de cá, tomou como propriedade privada pessoal propriedades públicas que haviam pertencido à sua rica família quarenta anos antes. Hável, o homem da paz, enviou tropas checas para a guerra do golfo, para a guerra que matou 100.000 civis iraquianos 8. Hável enviou armamento ao regime fascista da Tailândia. Hável votou com os EUA condenando as violações de direitos humanos em Cuba, mas nunca proferiu uma palavra de condenação acerca da violação de direitos humanos em El Salvador, Colômbia, Guatemala, Indonésia, Tailândia e outros estados clientes dos EUA. Hável, o grande democrata, assinou a lei que fazia do advogar do comunismo um crime, com castigo de até 8 anos de prisão. Assinou outra lei proibindo aos comunistas e ex-comunistas o emprego no serviço público. Hável queria que os sindicatos não se envolvessem em política. Alguns sindicatos militantes tiveram a sua propriedade confiscada e entregue a sindicatos obedientes. Nas républicas Checa e Eslovaca, aos antigos aristocratas ou aos seus herdeiros eram-lhes devolvidas todas as terras e propriedades que tinham antes de 1918 sob a autocracia Austro-Húngara, incluindo todos os novos edifícios que tinham sido construidos nessas terras! O princípe Franz-Josef vive!... Na Letónia e Lituânia os líderes comunistas foram aprisionados e torturados por protestarem contra as iniquidades do mercado livre; alguns detidos sem qulquer processo. Quando a Estónia realizou as suas primeiras “eleições livres” em 1992, 42% da população foi desqualificada de cidadania e proíbida de votar por terem antecedentes russos, ucranianos, bielorussos ou judeus. Oh, o florescimento da “democracia” opera as suas maravilhas de formas misteriosas… especialmente no mercado livre…
   
Em 1990, quando a União Soviética estava a preparar-se para o seu salto fatal para dentro do paraíso do mercado livre, Bruce Gill era chefe da USIA [agência de informação dos EUA]. Ele disse aos repórteres que “os soviéticos iriam beneficiar da educação em negócios dos EUA,  porque do que eles precisam é de víboras, sanguessugas, intermediários. É isso que necessita de ser reabilitado na União Soviética. É isso que faz o nosso tipo de país funcionar” (citado do Washington Post). Bruce Gill é um dos intelectuais de vanguarda do Partido Republicano. As víboras e os sanguessugas chegaram à Rússia, Europa de Leste e China. Os bens de consumo são mais abundantes do que nunca, milhares de carros de luxo encontram-se nas ruas de cidades como Moscovo e Praga. As rendas e os preços das propriedades super-inflacionaram. Bolsas de valores nasceram como cogumelos na China, Rússia e Europa de Leste. Uma nova classe de investidores, especuladores e chantagistas esbanjam-se na opulência. E com essa acumulação de riqueza, com o enriquecimento de uns poucos, vem o empobrecimento dos muitos. O objectivo professado nestes países não é mais providenciar uma vida melhor para todos, mas melhorar as oportunidades para que certos indivíduos persigam ganhos pessoais e acumulem grandes fortunas.
   
Então, o que trouxe isto às massas? Um aumento dramático do desemprego, sem-abrigos, adição a drogas, poluição do ar e da água, tuberculose, cólera, poliomielite, prostituição, estupro de adolescentes, pedofilia, e praticamente quaisquer outras doenças sociais. Pedintes, proxenetas, passadores de droga, e outros traficantes praticam os seus ofícios como nunca antes. Em países como a Rússia e a Hungria a taxa de suicídio subiu 50% em poucos anos. Houve declínio dos níveis nutricionais e uma aguda deterioração da saúde. Hoje, um terço dos homens russos nunca vive até à idade de 60 anos. A taxa de mortalidade subiu quase 20% na Alemanha de Leste para mulheres nos seus trinta e quase 30% para homens da mesma idade. Em contraste, nos países em que os governos comunistas ainda estão no poder, Cuba, Coreia do Norte, Vietname, as taxas de mortalidade continuam a cair, de acordo com aquela publicação comunista o New York Times [risos]; foi daí que eu tirei esta informação, proeminentemente exposta na página 24-a no canto inferior esquerdo, 26.º parágrafo de um longo artigo [risos]. A segurança no trabalho praticamente deixou de existir, os ferimentos e as mortes aumentaram drasticamente. Na China, existem agora trabaladores que fazem jornadas de 12 a 16 horas por dia por salários de subsistência sem terem um dia de folga regular. As reformas de mercado na China trouxeram um regresso do trabalho infantil. Por isso é que os líderes dos EUA gostam da China, mas não gostam de Cuba. Ouve-se estas pessoas dizer: “Oh, somos amigos da China, mas ainda somos hostis a Cuba -- que irracional!…” [Parenti imita interlocutor ingénuo]. Só porque você não compreende a política, não quer dizer que eles não a compreendam! A chave é a relação do capital com o trabalho! E na China o trabalho está a ser aprisionado, e na China o capital foi “libertado” na sua forma mais crua e mais perversa de mercado livre, e isso não é verdade em Cuba. Em Cuba ninguém trabalha 12 a 16 horas por dia! Em Cuba os serviços sociais não foram cortados, e esse é o problema com Cuba! É por isso que Cuba ainda tem que se reformar! [risos e aplausos prolongados]. Na Europa de Leste e na Rússia as estâncias de férias dos trabalhadores, clínicas, centros culturais e creches, bem como outros serviços que faziam das empresas comunistas algo mais do que apenas locais de trabalho, desapareceram todas. As casas de repouso dos trabalhadores foram transformadas em casinos e night-clubs para os novos-ricos. Os almoços escolares, anteriormente grátis ou a um preço muito baixo, são agora demasiado caros para muitos dos alunos. Crianças esfomeadas constituem agora um problema sério. Depois de apenas 1 ano de paraíso de mercado livre a Rússia viu o seu nível de consumo caír em cerca de 40%. Só para vos dar uma ideia do que isso significa, na Grande Depressão [dos anos 30 nos EUA], nos primeiros três anos (levou três anos), o consumo baixou 21%, em três anos. E aqui temos que num ano o consumo baixou 38 a 40%. Nos países ex-comunistas 70 a 85% das pessoas vive agora abaixo ou no limiar da pobreza, muitos deles em absoluto desespero económico. Os países de Leste também -- e este deve ser um dos pontos mais significativos -- foram recolonizados pelo capital ocidental, o padrão do comércio está a tornar-se terceiro-mundista. Se olharmos para países do terceiro mundo descobrimos que fazem muito pouco comércio entre si, mesmo com aqueles ao lado, todas as suas economias estão direcionadas para o Ocidente, para a extracção pelo Ocidente, que é exactamente o que está a acontecer na Europa de Leste onde dantes havia um enorme comércio entre os diversos países da Europa de Leste e a União Soviética 9. Hoje em dia existe muito pouco comércio entre eles, quase todo é com o Ocidente, o Ocidente entrou e praticamente tomou tudo. Corporações multinacionais estão a entrar na Rússia para extrair as enormes reservas de óleo, gás e minerais, com lucros enormes e pouco benefício indo para o povo. As grandes companhias privadas disfrutaram de empréstimos fáceis, mão-de-obra barata, sindicatos desmembrados, e zero impostos. É o terceiro-mundo outra vez, senhoras e senhores! Os interesses de madeireiros dos EUA, com o suporte financeiro de fundos do Pentágono, o nosso dinheiro dos impostos, preparam-se para deflorestar o sertão siberiano, uma região que contém 1/5 das florestas do planeta e é o habitat de espécies raras. E isto está a ser feito por cima do protesto de ambientalistas russos e dos EUA. O investimento privado trouxe uma diminuição, em vez de um aumento da produção. Compreendam isso – as empresas estatais estão a ser levadas à bancarrota, ao mesmo tempo que o investimento privado penetra. Na Républica Checa quase 80% de todas as empresas foram privatizadas e a maioria delas foram descapitalizadas, apagadas de facto. A produção industrial encolheu 2/3. Na Polónia, com a privatização, a produção encolheu 1/3. Na Macedónia, uma das Républicas separatistas da Jugoslávia, um representante dos trabalhadores notou, cito: “a privatização parece significar a destruição das nossas firmas”. Os Macedónios queixam-se de como o trabalho tomou conta das suas vidas, uma pessoa não tem tempo para se importar com os outros, não tem tempo sequer para si próprio, só tempo para trabalhar e para fazer dinheiro; isto saiu numa reportagem da PBS [cadeia de TV norte-americana]. Milhares de quintas colectivas foram desmembradas à força contra o protesto dos seus membros. Consequentemente, a produção agrícola caiu a pique nestes países. Os novos agricultores privados descobrem que não podem produzir para o mercado comercial, não conseguem obter empréstimos, ou sementes, ou máquinas e rapidamente perdem as suas propriedades ou sobrevivem de agricultura de subsistência. As cooperativas de agricultura da Hungria, que por sinal eram um sector da economia socialista que funcionava muito bem, com a privatização e o desmembramento das cooperativas a produção agrícola caíu 40%, de acordo com aquela publicação comunista tendenciosa o Los Angeles Times [risos]. Isso não é estúpido, isso não é irracional ou desperdiçador, isso é o objectivo! O objectivo é descapitalizar a indústria e a agricultura da Europa de Leste para que não entre em competição com o mercado Europeu! Transformá-la num terceiro-mundo colonizado, numa região de mão-de-obra e recursos baratos. Em 1992, o governo lituano declarou que os antigos donos e seus herdeiros podiam reclamar terras e outras propriedades confiscadas durante a era socialista. Isso significou que dezenas de milhares de famílias de camponeses, cerca de 70% da população rural, foi expulsa de terras que trabalharam durante mais de meio século, destruindo completamente a base agrícola do país neste processo. Na Alemanha de Leste a maior parte da produção industrial e agrícola foi destruída para impedir a competição com as firmas e quintas ocidentais fortemente subsidiadas. Os alemães de Leste têm uma série muito interessante de queixas que estão a fazer agora com a unificação. Queixam-se que o fluxo do dinheiro tem sido do Leste para o Oeste, no que equivale à colonização do Leste. Queixam-se que o mercado livre é um mito. Que a economia ocidental é completamente orquestrada contra os interesses do Leste. Queixam-se que a polícia da Alemanha Ocidental é muito mais brutal do que era a polícia da Alemanha de Leste. Que se a Alemanha Ocidental se tivesse desnazificado tão completamente como forçaram a Alemanha de Leste a des-socializar-se seria um país totalmente diferente [rumores na audiência]. Uma descoberta chocante feita pelos cidadãos dos países comunistas é a quantidade de burocracia no Ocidente. Imigrantes soviéticos no Canadá queixaram-se de que, cito: “a burocracia aqui era ainda pior do que em casa” de acordo com um artigo de Hans Blumenfeld. Os alemães de Leste, agora sob domínio da Alemanha Ocidental, estão assustados pela quantidade de formulários complicados que agora têm de preencher para os impostos, seguros de saúde, seguro de vida, subsídio de desemprego, reciclagem profissional, subsídios de renda, contas bancárias. Devido ao tipo de informação pessoal que têm de dar sentem menos privacidade do que na RDA, de acordo com uma reportagem na revista Z.
   
Na Rússia, o crime organizado extorse agora tributos a 80% de todas as empresas. Os seus tentáculos alcançam os escalões de topo do governo. Homícidios por contrato são aos milhares por ano. O crime de rua também aumentou drasticamente. Na Hungria, houve um aumento de 50% de assassinatos desde o derrube do comunismo. De acordo com o New York Times a força policial em Praga, na Républica Checa, é hoje muito maior do que era durante o comunismo, quando relativamente poucos polícias eram necessários… Não é isto interessante?! Muitos poucos polícias no estado policial comunista?! Vá-se lá entender!… [risos]. Eu não percebo… Será que há algo que não me estão a dizer?...
   
Houve um declínio drástico na vida cultural. Os teatros são agora esparsamente frequentados porque os bilhetes são tão proibitivamente caros. As empresas públicas de filmes em países como a Rússia, Polónia, Checoslováquia e a RDA, que ocasionalmente produziam filmes de grande mérito, estão a ficar sem fundos ou são compradas por interesses ocidentais e agora fazem desenhos animados, anúncios de TV e video-clips. Os cinemas nos países de Leste estão a ser comprados por cadeias ocidentais e agora oferecem muitos dos mesmos filmes de lixo de Hollywood que nós temos a liberdade de ver [risos e aplausos]. Subsídios para as artes e a literatura foram severamente cortados. Na era comunista três em cada cinco dos livros produzidos no mundo eram produzidos na União Soviética, incluindo edições económicas mas de qualidade de clássicos, e livros de autores contemporâneos da América Latina, África e Ásia e poetas de todo o mundo. Hoje em dia, com a rápida subida do custo dos livros, periódicos e jornais, hoje em dia em que a educação entrou em declínio, a leitura diminuiu quase para níveis do terceiro-mundo. Livros de uma perspectiva de crítica marxista ou de esquerda foram removidos das livrarias e bibliotecas em quase todos estes países. Na Alemanha de Leste, a Associação dos Escritores reportou uma situação em que 50.000 toneladas de livros, alguns deles totalmente novos, foram enterrados num aterro após a unificação. Percebem, os governantes alemães não têm agora coragem para queimar os livros como faziam antigamente 10… A educação é hoje apenas acessível para aqueles que possam pagar o custo das taxas universitárias. Os currículos foram “despolitizados” [aspas nossas], como lhe chamam, significando que uma perspectiva de esquerda, crítica do imperialismo e anti-capitalista, foi substituída por uma perspectiva conservadora. O mesmo acontece nos media de notícias, tanto os media públicos como privados; foram expurgados de esquerdistas e contratadas pessoas com orientação ideológica aceitável, de modo que são quase indistinguiveis dos nossos próprios media 11. Este processo de movimento em direção a um monopólio ideológico pró-capitalista foi descrito nos media ocidentais como democratização e reforma.
   
Houve também um aumento muito agudo da desigualdade entre os sexos. A nova constituição russa elimina as provisões que garantiam às mulheres o direito a baixa de maternidade paga, cuidado natal gratuito, segurança de emprego durante a gravidez, creches com preços acessíveis, e tudo isso… Em todos os países comunistas cerca de 90% das mulheres tinham empregos, hoje, nos países pós-comunistas as mulheres são mais de 2/3 dos desempregados. As mulheres estão a ser afastadas das profissões em números desproporcionais e são agora aconselhadas a não obterem treino profissional. A prostituição é a única “indústria” florescente aberta às mulheres empreendedoras no mercado-livre, servindo a homens de negócios nacionais e estrangeiros. O divórcio, o aborto e o controlo de natalidade são mais dificeis de obter. A independência financeira e psicológica de que as mulheres disfrutavam no socialismo foi praticamente eliminada. Veja-se como a sua própria independência psicológica é em parte determinada pelas estruturas sociais e pelos arranjos sociais, quais são as suas opções, quais são as suas oportunidades e tudo isso, e isso pode ser destruído. Na Rússia os incidentes de assédio sexual e violência contra as mulheres aumentaram exponencialmente, tal como nos outros países [ex-socialistas]. Na Rússia o número de mulheres assassinadas, principalmente por maridos e namorados, aumentou explosivamente de 5.000 para 15.000 por ano nos primeiros três anos do paraíso do mercado-livre. 57.000 mulheres ficaram severamente feridas em assaltos desse tipo em 1994. Estes números oficiais minimizam o nível de violência. Os comités do Partido Comunista que costumavam intervir em casos de violência doméstica já não existem.
   
Em toda a Europa de Leste e na Rússia muitas pessoas estão agora, a contra-gosto, a admitir que a vida era melhor sob o “comunismo”. Isso até está, a contra-gosto, a ser reportado nos media dos EUA; então devem ser mesmo muitas pessoas a dizê-lo se até aparece nos media dos EUA… Há uma piada que circulou na Rússia em 1992, depois do primeiro ano do paraíso do mercado-livre, que era assim: “Pergunta: o que conseguiu o capitalismo fazer em um ano que o comunismo não conseguiu fazer em 70 anos? Resposta: fazer com que o comunismo tenha bom aspecto” [risos e aplausos]. Reagindo à dor do mercado-livre os votantes da Europa de Leste começaram a voltar a colocar comunistas no poder. Na Rússia também, trazendo-os de volta ao poder para presidir sobre as ruínas e destroços deixados pela restauração capitalista. O socialismo, o sistema que não funcionava, dava a todos uma garantia de segurança. O capitalismo, o sistema que funciona, trouxe uma economia em queda livre e miséria em massa. E não penso que estas condições façam apenas parte de um período temporário de transição... é isso que ouvimos dizer sempre. Lembro-me de Tom Brokaw, que quando estava na Rússia entrevistando alguém, dizia: “Bem... Sabe, antes de subir precisa de descer”. Deve ser alguma lei da física que ele inventou no momento… [risos]. “Existe um doloroso período de transição que terá de atravessar” [aspas nossas]; de facto, as nações podem permanecer durante um longo período numa depressão capitalista, com vasta acumulação de capital para os poucos e pobreza para os muitos. Veja-se a América Latina. E estas nações (ex-)comunistas [parênteses nossos], como todos as nações ditas em desenvolvimento, vão provavelmente manter-se em pobreza indefinidamente. Para que uns poucos privilegiados possam continuar a disfrutar de opulência ilimitada.
   
Bem, o povo destes países de Leste queria ser como a América, pelo menos muitos deles queriam, sem saber o que era a América. Em vez disso acabaram por ficar parecendo-se mais com o terceiro-mundo capitalista. A mesma direção segundo a qual a América capitalista está a ser empurrada. Sofreram uma tremenda derrota histórica. E as lutas do terceiro-mundo sofreram uma tremenda derrota, porque já não podem obter apoio da Alemanha de Leste ou da União Soviética.
   
O que aprendemos disto? O que eu aprendi é que o capitalismo não é um sistema benigno, irmãos e irmãs, destrói tudo, não deixa um único programa social intacto, não deixa uma única árvore em pé, não deixa um único trabalho, ou casa, ou criança em segurança. É um sistema impiedioso que se auto-consome, que nos levará a nós e ao planeta ao fundo com ele, se não resistirmos, se não o subjugarmos [aplausos prolongados]. Se querem ver como o nosso pior futuro poderá ser, olhem apenas para o que está a acontecer na Europa de Leste. Podemos ver o futuro e não funciona. A perda dá-se também no Ocidente, o capitalismo com cara humana tornou-se no capitalismo que vos bate na cara [capitalism in your face]. Eles já não precisam de se preocupar em competir com o socialismo. Já não têm de dizer aos seus trabalhadores que eles têm melhor do que nos países comunistas. Já não têm de fazer isso, já não têm de dizer isso aos países do terceiro-mundo, agora dizem: “Não gosta? Azar. É assim que é”. Eles vão atrás de tudo e eles querem tudo. Existe apenas uma coisa que a classe dominante em toda a história quis, e isso é: TUDO [maiúsculas nossas]. O socialismo foi derrubado não por ter falhado, mas porque tinha sucesso, pelo menos em parte, ou seja o socialismo cercado criou uma sociedade que sobreviveu e que estava pronta a dirigir-se ao consumismo, uma dialética que se minou a si própria. Eu penso que nós então temos também de prestar atenção à natureza humana. Devemos compreender que as pessoas são muito mais complexas. Lembro-me de falar com o embaixador da Alemanha de Leste em Washington, quando as coisas estavam a colapsar na RDA, na última recepção que fizeram, e perguntei-lhe: “Porque fizeram carros tão fracos?”, aqueles carros de dois cilindros que toda a gente desprezava. Ele respondeu: “Bem, nós na verdade não queríamos investir muito em carros, porque são maus para o ambiente e fazem muito desperdício, assim pensamos que se investíssemos num bom transporte público de massas, racional, eficiente, pouco poluente e de baixo custo, que isso seria atractivo para as pessoas e não seriam necessários esses carros tão fracos. Mas nós estávamos enganados porque os alemães gostam das suas máquinas…”. Não são só os alemães, são os paquistaneses, são os americanos, são os latino-americanos, é em todo o mundo assim, o automóvel é uma loucura. Assim, se se der às pessoas uma escolha entre transporte público de massas racional, eficiente, pouco poluente e de baixo custo, ou o automóvel -- o automóvel com a atribuição de poder pessoal, a sua privacidade, o seu status, a sua mobilidade instantânea -- elas escolhem o automóvel. E foi isto que aconteceu. Portanto, temos de perceber que as pessoas frequentemente não agem como nós gostaríamos. Ele fez uma declaração muito reveladora, ele disse: “Você sabe, pensámos que se construíssemos uma boa sociedade teríamos pessoas boas, mas isso não é necessariamente verdadeiro”. É claro que é debatível se aquela era uma boa sociedade de facto, mas a conclusão é muito interessante; é de que temos de olhar para as complexidades das pessoas, que as pessoas têm uma capacidade tremenda para o descontentamento, para quererem mais e mais; e que a organização humana é uma tarefa muito dura, difícil e que frequentemente se derrota a si própria. Que quanto mais se organiza, frequentemente mais os procedimentos rotineiros a levam à disfuncionalidade noutras áreas. Que existem indivíduos peculiares, apenas esperando uma oportunidade para ser tão vorazes e exploradores e agressivos quanto podem ser. São piores que qualquer criatura na selva. Porque as criaturas na selva não predam e matam apenas pelo divertimento. A natureza humana... Sou um dos poucos marxistas no mundo que diz que se deve olhar para a natureza humana, também digo que ela existe. Usualmente dizem-me: “não sei o que quer dizer quando começa a falar da natureza humana”, isto porque os conservadores utilizaram tanto a natureza humana como conceito para justificar a horrível organização social que temos, que nós da esquerda temos esta reacção tonta que é dizer que a natureza humana não existe. O que você quer dizer que não existe?! Se os seres humanos não têm uma natureza somos a única entidade em todo o universo que não tem. Todas as coisas têm a sua natureza, esta mesa tem uma natureza, este microfone tem uma natureza (não muito boa) [risos], esta planta tem uma natureza, todos temos uma natureza. “oh, não, somos mais como o barro, somos muito maleáveis” [aspas nossas, Parenti imita um interlocutor]. Bem, até o barro tem uma natureza, pode esticá-lo até um certo ponto, tem que mantê-lo húmido, se não seca, pode fazer com ele coisas, mas há limites e temos de ter uma compreensão das expectativas e possibilidade e não estar tão ingenuamente apaixonados pela nossa ideologia que nos impeça de ver o que as pessoas estão realmente a fazer e do que são capazes. Eu penso que a natureza humana é horrível, acho que é terrível [risos]. Acho que os seres humanos… Se você ler a história, é horrível e nojento e horrificantes as atrocidades, os assassinatos, a tortura, o saque, a loucura, quer dizer você não consegue ler a história sem deixar de sentir um sentimento muito estranho acerca da sua própria espécie, especialmente do sexo masculino [risos e aplausos]. É realmente espantoso que criaturas horríveis somos. As mulheres aplaudem, os homens ficam sentados silenciosos. Mas isso é ainda maior motivo porque necessitamos de organizações políticas fortes, isso ainda é maior motivo porque precisamos de uma ideologia de libertação, isso ainda é mais motivo porque precisamos de democracia, e nessa democracia temos de manter o poder fora das mãos destes seres avaros. Será o marxismo irrelevante? Será esta a bancarrota do marxismo? Não, o marxismo é um sistema de análise que critica o capitalismo e imperialismo existente. Tem pouco a dizer acerca do socialismo. Nos países comunistas o marxismo era difundido como um catequismo, nem sequer se relacionando com as suas vidas. É como quando nós estudamos o feudalismo. Tinha a ver com um conjunto de relações sociais diferente do que aquelas que eles tinham, embora eles necessitassem desesperadamente de uma teoria crítica de si próprios, acerca do seu sistema, como eu tentei fazer de uma forma muito esquematizada aqui hoje. Tentei fazer muito, tratando de uma variedade de assuntos e sei que não sucedi em muitos deles, mas de qualquer forma, vocês percebem o que eu estou a fazer [risos].
   
Nós precisamos de um forte movimento alternativo para enfrentarmos tanto os “republicratas” como os “democracinos” [risos] e não apenas localmente mas nacionalmente e internacionalmente. Precisamos de mais militância e resistência. “O que podemos fazer acerca disso?” se vai ser essa a questão, vou respondê-la agora mesmo, por isso não a perguntem… Não existem respostas fáceis; o que está você disposto a fazer? Podemos todos fazer um pouco mais, ou seja muito mais do que estamos a fazer neste momento, apenas olhem para as mesas nos halls e assinem [Parenti aponta para fora do auditório] e tornem-se activos. E finalmente, lembrem-se que a história, senhoras e senhores, irmãos e irmãs, A HISTÓRIA NUNCA ACABA [maiúsculas nossas], a última página nunca está escrita. A história está sempre a ser reescrita, e as suas melhores páginas não são escritas pelos princípes, ou os presidentes, ou os primeiros-ministros, ou os papas; as melhores páginas são escritas pelo povo, com todos os seus defeitos, o povo é tudo o que temos, de facto nós somos eles. Obrigado [aplausos prolongados].
    
1.      Segundo estudos históricos actuais com preocupações de rigor, baseados nos arquivos secretos do KGB (Getty, Rittersporn & Zemskov, 1993), o número de prisioneiros que morreram no período de 1937-1938 foi de 160.084, sendo muito inferior nos restantes períodos do funcionamento do GULAG. Entre 1934 a 1953 estima-se que morreram 1.053.829 prisioneiros. Os campos eram de trabalho forçado, tal como existiram(em) noutros países, incluindo os EUA. As condições eram muitas vezes duras, mas a taxa de sobrevivência era elevada. O sistema prisional GULAG terminou em 1960. O último campo de trabalho forçado fechou em 1987.
2.      Nos EUA os desertores ao serviço militar são também presos, portanto isso não pareceu estranho a Parenti.
3.      Os processos penais por motivos espúrios a líderes da RDA (dirigentes partidários, oficiais militares, líderes de sindicatos, etc., continuaram pelos anos 90 fora…
4.      Na União Soviética os cidadãos tinham direito à habitação, não necessitavam de (nem podiam de um modo geral) comprar ou alugar casas ou apartamentos. Estes eram-lhes fornecidos pelo Estado, sem custo.
5.      Parenti nesta parte da palestra e em outros trechos também, alarga-se em frases intermináveis e com vários comentários e apartes que tornam difícil a sua tradução num texto fluído e conciso, por isso em certas partes do texto se recorre à utilização de parênteses e ponto e vírgula.
6.      Na altura o Vietname ainda era considerado um país “comunista”. Actualmente sofreu já um fortíssimo desvio para o “socialismo de mercado”, comparável à China.
7.      Glasnost – pode ser traduzido como transparência ou publicidade -- é a política iniciada por Gorbatchev em 1986 supostamente para acabar com a censura na União Soviética, mas na realidade para permitir todo o tipo de propaganda reaccionária e “crítica”, geralmente acéfala e falsificadora da história.
8.      A palestra de Parenti ocorreu antes da invasão do Iraque em 2003 em que morreram milhões e por causa da qual continuam a morrer civis iraquianos hoje em dia.
9.      O COMECON funcionava como pacto económico entre esses países e organizava o comércio em bases socialistas, entre outros assuntos económicos.
10.  Referência às fogueiras de livros realizadas periodicamente pelos nazis, em que queimavam preferencialmente livros de Marx e Engels, autores socialistas, pacifistas e judeus.
11.  Palestra antes da criação da RT.