segunda-feira, 18 de agosto de 2014

O Sector Financeiro. VI: Jogos com derivados (6)

Por esquecimento não publicámos no passado mês de Março a secção 6 de «Jogos com derivados». Aqui fica o artigo que completa a série.

-------------------------
Neste artigo:
A explosão dos mercados de derivados
Os reguladores que finjem regular
Perdas com derivados que deram brado
-----------------------

A explosão dos mercados de derivados
   
    Mencionámos no primeiro artigo sobre derivados (http://revolucaoedemocracia.blogspot.pt/2014/01/o-sector-financeiro-vi-jogos-com.html) que, segundo os peritos, o volume global do mercado de derivados -- isto é, o montante monetário a que se referem todos os contratos (valor nocional) -- era estimado como superior a 1.200 triliões de dólares: 1.200.000.000.000.000 dólares: 20 vezes mais que a riqueza criada em todo o planeta durante um ano! A estimativa referia-se ao final de 2011 ([56]) e o volume tem vindo a subir. Até à próxima explosão.
    Note-se que esta estimativa corresponde não só ao mercado «regulamentado» (mercado bolsista) como ao não regulamentado, o mercado de balcão (OTC, «over the counter») em bancos, firmas de investimentos, etc., cuja reportagem é deficiente. Mas mesmo no mercado regulamentado o volume das transacções é impressionante, como mostra o gráfico abaixo que construímos com dados do Bank of International Settlements (BIS) ([57]) relativo a futuros e opções, os únicos tipos de derivados transaccionáveis no mercado regulamentado. Notar: a) a enorme subida do volume de derivados até ao rebentamento da bolha em finais de 2007; b) uma certa estabilização a partir de 2009, com tendência crescente desde meados de 2012, atingindo em Setembro do ano passado o mesmo valor que em meados de 2005: 70 triliões (mil biliões ou, como temos vindo a usar, milhões de milhões) de dólares; c) o predomínio da América do Norte (fundamentalmente, os EUA; a contribuição do Canadá é bem menor) e da Europa sobre os mercados de outras regiões, mas, curiosamente e sintomaticamente, com o mercado da Europa a alcançar o da América do Norte a partir do rebentamento da bolha.

Volume de derivados (montante nocional total) no mercado regulamentado (Fonte:BIS).

   
    Se usarmos os últimos dados disponíveis da International Swaps and Derivatives Association, Inc. (ISDA) que inclui os valores estimados dos volumes transaccionados no mercado OTC ([57]), vemos claramente a dimensão espantosa do mercado OTC que «escapa» aos reguladores. (Em boa verdade, o que é que não escapa aos reguladores?) É o que mostramos na figura abaixo: a azul, os dados do BIS que só reportam futuros e opções transaccionados no mercado regulamentado; a preto, o volume de todas as transacções de derivados reportados pela ISDA; a magenta, o volume das transacções de CDSs, de acordo com a ISDA. Notar: a) a enorme diferença entre o mercado regulamentado e o mercado OTC (sendo este a diferença entre as curvas a preto e a azul); b) a subida do volume das transacções apesar da crise -- a crise não existe para o capital especulativo -- que, como vimos, não era visível na figura anterior relativa ao mercado regulamentado; c) no final de 2010 o volume total já estava próximo dos 500 triliões de dólares; d) o declínio do volume dos CDSs a partir de 2007, com a queda do crédito hipotecário.
   

Volume de derivados (montante nocional total) no mercado OTC e regulamentado (Fontes: BIS, ISDA).
    
    Os bancos americanos estão «afogados» em derivados. Até os neoliberais do sector confessam isso (ver, p. ex. [59-60])
    No final de 2011, os 9 bancos mundiais com maior volume de transacções em derivados, correspondiam a um volume total de 228,72 triliões de dólares ([61]). A tabela abaixo mostra o volume de derivados de alguns bancos em 2012, e comparações com o PIB português do mesmo ano. O Morgan Stanley, o HSBC, o Goldman Sachs, o Citigroup e o JP Morgan Chase estiveram (estão) envolvidos no caso dos swaps com empresas públicas portuguesas.

Banco
Volume de derivados (em triliões de dólares)
N.º de vezes o PIB português de 2011
Bank of New York
1.375
11
Morgan Stanley
1.722
13
HSBC
4.321
33
Goldman Sachs
44.192
337
Bank of America
50.135
383
Citigroup
52.102
398
JP Morgan Chase
70.151
536
    

    Não conseguimos encontrar valores actuais dos volumes globais de derivados em Portugal. O secretismo parece de regra. Os reguladores parecem marimbar-se para isso. Atente-se, por exemplo, no espantoso documento apresentado pela Comissão de Mercado de Valores Mobiliários (CMVM) à Comissão Parlamentar de Inquérito em 3 de Setembro de 2013, sobre os swaps das empresas públicas ([62]). Ostentando o nome do presidente do Conselho Executivo, Carlos Tavares, será que o documento esclarece os parlamentares sobre quanto dinheiro está envolvido no mercado de derivados em Portugal e, particularmente, nos swaps das empresas públicas? Não. Redondamente, NÃO. O esclarecimento é nulo. NULO. Os únicos gráficos que aparecem sobre mercados de derivados -- pasme-se! -- são sobre os mercados mundiais; isto é, semelhantes -- mas piores! -- dos que apresentámos acima. Condimentando estes gráficos com textos sobre «importância», «supervisão» e «ética nos negócios» (consistindo esta secção numas quantas ridículas e deploráveis jeremiadas), a ideia que se transmite é esta: o mercado de derivados é muito importante, não toquem nele; é muito complexo, o melhor será os senhores deputados abandonarem a esperança de o entenderem; está muito supervisionado e até levantámos uns processos de reclamações; e estamos atentos à ética (sabe-se lá o que isso significa para eles). Quanto a nós, demitiríamos liminarmente o Carlos Tavares e seus confrades. Por encobrimento e incompetência.
    Quanto ao BdP, apenas conhecemos com algum valor dois documentos ([63-64]) de inquérito trienal à actividade de mercados de câmbios e de derivados, ambos coordenados pelo BIS com a participação de bancos centrais de vários países incluindo Portugal. Os inquéritos incidiram sobre operações em câmbios e taxas de juro realizadas no mercado de balcão. Vamos apresentar resultados do segundo inquérito que inclui valores do primeiro.
    A figura abaixo mostra os gráficos das operações cambiais para todo o mundo (á esquerda) e para Portugal (à direita). Para sabermos os volumes de derivados, em biliões de dólares (B$), há que subtrair as barras a castanho escuro («operações spot» que dizem respeito às operações cambiais normais). Aparentemente, depois de uma subida importante do volume envolvido em transacções com derivados de 2001 a 2010 (já em plena crise!) este diminuiu em 2013, não acompanhando a tendência mundial.
   
   
    Os gráficos sobre derivados em taxas de juro são mostrados na figura abaixo. Aparentemente, depois de uma subida importante de 2001 a 2007, o volume envolvido em transacções com derivados tem vindo a estabilizar até 2013. Também aqui Portugal não tem acompanhando a tendência mundial.
    
   

    Tenha-se, porém, em conta dois aspectos: a) não estão contabilizados os volumes de numerário envolvidos em derivados no mercado regulamentado; b) apesar de algum declínio no mercado regulamentado, os valores continuam elevados. No total e em 2013, Portugal tinha envolvido em derivados no mercado OTC aproximadamente 2100 (mercado cambial) + 720 (taxas de juro) = 2820 B$, ou seja mais de 23 vezes o PIB! ([65].)
     
Os reguladores que finjem regular
    
    Com o colapso de 2008 as entidades reguladoras avançaram com regras dos mercados OTC (onde se transaccionam os CDSs). Nos EUA, o relatório Dodd-Frank intitulado Wall Street Reform and Consumer Protection Act, contendo vários regulamentos sobre os mercados de swaps, passou a lei em Julho de 2010. Em Setembro de 2010, a UE adoptou regulamentos semelhantes ([66]). Mas os reguladores europeus, embora finjam preocupação com o mercado OTC (apenas responsável por 16% do mercado europeu segundo algumas estimativas [67]), na prática não regulam nada. O referido regulamento europeu (entre muito bla-bla sem interesse, BCE dixit) limita-se a abordar tês problemas -- «falta de transparência», «insuficiente atenuação do risco de crédito da contraparte», «insuficiente atenuação do risco operacional» -- limita-se a apontar algumas medidas tipo «cândidos desejos»: obter informações mais completas; melhorar as práticas de compensação de risco entre as partes; aumentar a estandardização dos derivados OTC. Pois… Mas mesmo estas regras suaves puseram numa reunião no Luxemburgo em 2011 os cabelos em pé aos ingleses que controlam 80% do mercado europeu de derivados ([67-68]).
    Uma entidade «muito interessada» na regulamentação e com grande influência no BCE é o Deutsche Bank. Num relatório recente, de Agosto de 2013, o Deutsche Bank também fala (que coincidência!) que os contratos OTC deveriam ser reportados e que todos os derivados OTC estandardizados; e apenas estes devem ser compensados (mediados os riscos) por entidades centrais das partes ([69]). Além disso, os estandardizados poderiam ser transaccionados em bolsas ou em plataformas electrónicas. Acontece que os contratos estandardizados são os de menor risco e se só estes devem ser reportados fica quase tudo na mesma. Acontece também que o Deutsche Bank tem provas dadas no business as usual: foi acusado em 2012 de ter ocultado dívidas de 9.300 milhões de euros em 2008 para evitar o resgate do Governo alemão ([70]); foi banido de transacções de derivados na Coreia do Sul por acusações de manipulação de mercado ([71]).
    Podemos estar certos de que, na actual fase do sistema capitalista, em que os países capitalistas desenvolvidos estão perante uma baixa rendibilidade do sector produtivo, os regulamentos sobre especulação financeira, incluindo regulamentos sobre mercados de derivados, não irão desempenhar qualquer papel de relevo. A jogatina vai continuar e, se necessário, novos jogos ou novas regras de jogo serão inventadas.
    Na China, em marcha para o capitalismo, também já há transacções em derivados. Em 2009 o regulador estatal chinês (Assets Supervision and Administration Commission) apertou as regras pelas quais as empresas estatais (conhecidas por SOES, state-owned enterprises) podiam usar derivados ([72]). Deviam usá-los «cautelosamente», e seguir «estritamente» regras de cobertura, não sendo permitidas transacções especulativas. Pois… Só que na marcha para o capitalismo outras regras maiores se alevantam.

Perdas com derivados que deram brado
   
    A tabela abaixo mostra alguns dos principais prejuízos sofridos por empresas e instituições de vários países com derivados (fontes: wikipedia, [9]). As entradas da tabela estão por ordem decrescente do valor dos prejuízos, apresentados em biliões (milhares de milhões) de dólares correntes.
    Há um ano que se destaca: 2008 (9 entradas em 35), início da Grande Recessão. Há prejuízos para todos os tipos de derivados. Há empresas e instituições de vários tipos: grandes bancos e firmas de investimento, bancos centrais como o Banco Negara da Malásia, empresas de aviação, indústrias petrolíferas e mineiras, companhias de seguros (com destaque para o gigante AIG), etc.; e até há uma autarquia dos EUA: a do condado de Orange na Califórnia. Finalmente, se fôssemos a apurar os directamente envolvidos nos prejuízos, verificaríamos que há também os vilões dos dois tipos: os vilões oficiaisrogue traders», como Nick Lesson que destruiu totalmente o centenário Banco Barings num comportamento de jogador compulsivo com derivados) e os vilões do costume, a quem nunca acontece nada: ou se safam com milhões ou descarregam totalmente as culpas para cima de outros (caso de Jerôme Kerviel da Société Générale). Por vezes os do costume também saem do escândalo com uma auréola de grandes inventores e peritos em matemática financeira, merecedores de todas as reverências, como aconteceu aos prémios Nobel Scholes e Merton que arruinaram a Long Term Capital Management.
    
   
Prejuízo (biliões de $)
País
Empresa
Tipo de Derivado
Ano

9
EUA
Morgan Stanley
Swaps (CDS)
2008
7,22
França
Société Générale
Futuros no índice FTSE
2008
6,50
EUA
Amaranth Advisors
Futuros no preço do gás natural
2006
5,80
Reino Unido
JP Morgan Chase
Swaps (CDS)
2012
5
EUA
Amaranth
Futuros no preço do gás natural
2006
4,6
EUA
Long Term Capital Management
Derivados em taxas de juro e acções
1998
3,16
Malásia
Bank Negara
Forwards no forex
1994
2,62
Japão
Sumitomo Corporation
Futuros no preço do cobre
1996
2,52
Brasil
Aracruz
Opções no forex
2008
1,8
EUA
Deutsche Bank
Derivados
2008
1,7
EUA
Orange County
Swaps em taxas de juro
1994
1,59
Alemanha
Metallgesellschaft
Futuros no preço do petróleo
1993
1,50
Japão
Kashima Oil
Forwards no forex
1994
1,49
Japão
Showa Shell Sekiyu
Forwards no forex
1993
1,31
Singapura
Barings Bank
Opções (straddles) no índice Nikkei
1995
1,1
França
Groupe Caisse d'Epargne
Derivados
2008
1,09
Brasil
Sadia
Opções no crédito e no forex
2008
0,8
Reino Unido
Soros Fund
Futuros no índice SP500
1987
0,69
EUA
Allied Irish Bank
Opções no forex
2002
0,64
Canada
Bank of Montreal
Derivados no preço do gás natural
2007
0,60
EUA
Askin Capital Management
Swaps (CDS)
1994
0,55
China
China Aviation Oil (Singapura)
Futuros e opções no preço do petróleo
2004
0,43
Suíça
Union Bank of Switzerland
Derivados em valores mobiliários
1998
0,35
EUA
Calyon
Derivados do crédito
2007
0,28
EUA
Merrill Lynch
Swaps (CDS)
1987
0,28
EUA
State of West Virginia
Derivados em taxas de juro
1987
0,269
Reino Unido
Allied-Lyons
Opções no forex
1991
0,207
Chile
Codelco
Futuros nos preços do cobre, prata e ouro
1993
0,20
China
State Reserves Bureau
Futuros no preço do cobre
2005
0,16
EUA
Procter & Gamble
Swaps em taxas de juro
1994
0,15
Reino Unido
NatWest
Opções em taxas de juro
1997
0,15
EUA
AIG
Swaps (CDS)
2008
0,15
Suécia
HQ Bank
Derivados em valores mobiliários
2010
0,14
EUA
MF Global
Futuros no preço do trigo
2008
0,12
EUA
Morgan Stanley
Opções em índices de crédito
2008
    
-------------------------
Próximo e último artigo da série:
O caso dos swaps (publicado em Março de 2014)
-----------------------
Notas
[56] FINANCIAL IMPLOSION: Global Derivatives Market at $1,200 Trillion Dollars … 20 Times the World Economy. http://www.globalresearch.ca/financial-implosion-global-derivatives-market-at-1-200-trillion-dollars-20-times-the-world-economy]
[57] BIS Quarterly Review: December 2013, Table 23A: Derivative financial instruments traded on organized exchanges. http://www.bis.org/statistics/extderiv.htm .
[59] Halah Touryalai "Risk Is Back: America's Big Banks Are Knee-Deep In Derivatives", Forbes, 28/3/2013.
[60] Michael Sivy "Why Derivatives May Be the Biggest Risk for the Global Economy" Time Business & Money, 27/3/2013. http://business.time.com/2013/03/27/why-derivatives-may-be-the-biggest-risk-for-the-global-economy/#ixzz2h3nKgMLT. Neste último afirma-se: "Desde a recessão o valor de referência dos derivados tem crescido e eles continuam muito arriscados com o potencial de largas e imprevisíveis perdas.
[61] Derivatives: The Unregulated Global Casino for Banks. http://demonocracy.info/infographics/usa/derivatives/bank_exposure.html
[63] Estatísticas relativas a Portugal apuradas pelo Inquérito Trienal à Actividade nos Mercados de Câmbios e de Produtos Derivados – Turnover em Abril de 2010 (1) http://www.bportugal.pt/pt-PT/Estatisticas/PublicacoesEstatisticas/NIE/Paginas/NotadeInforma%C3%A7%C3%A3oEstat%C3%ADstica20100908.aspx
[65] O PIB português era estimado em 2013 em 165.830 milhões de €, o que corresponde a cerca de 120.429 milhões de dólares usando o câmbio do final de 2013.
[66] Proposal for a REGULATION OF THE EUROPEAN PARLIAMENT AND OF THE COUNCIL on OTC derivatives, central counterparties and trade repositories. {COM(2010) 484}{SEC(2010) 1059}.
[67] Jeremy Grant, OTC trading is just 16% of European market, Financial Times, April 20, 2011. http://www.ft.com/cms/s/0/db22fa4c-6b27-11e0-9be1-00144feab49a.html#ixzz2lgWuJuga.
[68] Ecofin chega a acordo para controlar mercado de derivativos, 04/10/11 EuroNews: http://pt.euronews.com/2011/10/04/ecofin-chega-a-acordo-para-controlar-mercado-de-derivativos/
[69] Reforming OTC derivatives markets, Deutsche Bank Research Management, 7 de Agosto de 2013
[70] Deutsche Bank acusado de ocultar nove mil milhões de euros em dívida para fugir a resgate, Público Por Félix Ribeiro 06/12/2012. A fonte original é o Financial Times.
[71] Deutsche Bank banido de transacção de derivados na Coreia do Sul por manipular mercado, Jornal de Negócios 23 Fevereiro 2011, 13:52 por Jornal de Negócios Online |

[72] China orders end to speculative derivatives trading by central SOEs www.chinaview.cn http://imgs.xinhuanet.com/icon/2006english/2007korea/space.gif2009-03-24 19:11:48