segunda-feira, 4 de agosto de 2014

A solução do buraco

    Aí está. O governador do BdP e a ministra das Finanças já decidiram como o povo irá tapar o buraco do BES. Duas sumidades ao serviço do grande capital financeiro, que representa muito menos de 1% da população, já decidiram por todo o povo. E decidiram, como é óbvio, ao serviço dos seus patrões e amigos. Contra o povo, claro! É assim que funciona a «democracia ocidental». E toda a caterva do grande capital financeiro sabe disso. Eles são os patrões da «democracia». Logo, muito naturalmente, gozam de impunidade.
    Ocorre-nos aqui reproduzir as palavras do especulador financeiro G. Gekko (baseado no americano Ivan Boesky, ver http://revolucaoedemocracia.blogspot.pt/2013/11/o-sector-financeiro-iv-fraudes.html ) no filme «Wall Street» de Oliver Stone, «abrindo os olhos» a um caloiro ([1]):
   
«Os 1% mais ricos deste país possuem metade da riqueza do nosso país, cinco triliões de dólares. Um terço dela, é proveniente de trabalho duro, dois terços provêm de heranças, juros sobre juros acumulando-se sobre viúvas e filhos idiotas, e do que eu faço, especulação na Bolsa e no imobiliário. Puro embuste. Temos p’ra aí noventa por cento do público americano com pouco ou sem quaisquer valores. Eu não crio nada. Eu possuo. Somos nós que ditamos as regras, pá. As notícias, a guerra, a paz, a fome, os distúrbios, o preço dos clips de papel. Nós tiramos o coelho da cartola enquanto todos estão p’ra aí sentados perguntando-se como diabo fizemos isso. Ora bem, tu não és assim tão ingénuo que vás pensar que vivemos numa democracia, não és, pois não meu caro? Isto é o mercado livre. E tu és parte dele. E possuis o instinto predador. Junta-te aos bons, pá. Ainda tenho uma série de coisas a ensinar-te.»
     
    Voltemos ao presente episódio do BES:
   
-- O buraco foi estimado em 4,9 biliões de euros (B€; usamos bilião=mil milhões); como já é habitual iremos mais tarde saber que a estimativa foi por defeito.
   
-- O «Estado entra com um empréstimo de 4,4 B€». Donde vêm os 4,4 B€? Da troika. Quem paga os juros do empréstimo? Essencialmente os trabalhadores, os reformados e pensionistas. Ppreparem-se para mais cortes, aumentos do CES (que se devia chamar Contribuição Extraordinária de Salvação dos grandes capitalistas), etc.!
   
- Os restantes 0,5 B€ virão de um «fundo de resolução» que o governo inventou para ir em socorro dos fraudulentos bancários. Directa e indirectamente estes 0,5 B€ também virão dos trabalhadores, dos reformados e pensionistas. Será que é preciso aqui esclarecer que o governo não dispõe de uma árvore das patacas? E que a contribuição do IRS e dos impostos indirectos é de 89%, enquanto do IRC é apenas de 11%?
   
-- Supostamente o «Estado» vai reaver o empréstimo dos 4,4 B€. Como? Com o seguinte coelho tirado da cartola, como diria G. Gekko: o BES acaba (já estava a cheirar mal); mas, de facto não acaba, e passa a chamar-se Novo Banco herdando todos os activos tóxicos (de facto, os inúmeros «buraquinhos» e «buracões» do buraco total: dívidas, crédito mal parado, perdas em jogos especulativos, etc.). O Estado vende o Novo Banco e eis o milagre consumado!
   
-- Esta técnica de passar os podres para um «banco mau» ou «banco zombie» foi inventada nos EUA e UK. Digam lá se o governador do BdP e a ministra das Finanças não estão actualizados em passes de mágica e estrangeirices?
    
-- Subsiste um «pequeno» problema. É que quem comprar o Novo Banco sabe que está a comprar um banco mau. Repetir-se-á a mesma cena da venda do BPN ao BCP: venda ao desbarato com o «Estado» a arcar com pagamentos de limpeza de lixo. Advinhem lá quem vai no final suportar os custos da venda ao desbarato e da limpeza de lixo?
    
-- O governador do BdP veio logo muito pomposo dizer que, desta vez, não se tratava de «nacionalização» como no caso BPN, com os efeitos danosos que conhecemos. Trata-se aqui de um simples jogo de palavras, para confundir e serenar os ânimos. No caso do BPN o Estado nacionalizou o banco e depois vendeu-o. Neste caso, o Estado transfere o BES para, supostamente, outro banco – de facto, só muda o nome -- e com gestão tão privada, para todos os efeitos práticos, quanto no caso BPN, dado que a intenção é vendê-lo para ressarcir o empréstimo da troika. Nenhuma diferença, portanto.
A propósito e para evitar confusões: as «nacionalizações» ao serviço do grande capital de que falam governadores do BdP, quejandos e comungantes,nacionais e estrangeiros, é total e definitivamente diferente das nacionalizações dos bancos que temos vindo a defender, e que os transformariam num serviço público ao serviço do povo (ver nossos artigos anteriores).

Em suma: a solução do buraco determinada por governador do BdP e ministra das Finanças foi a do «empréstimo em regime de capital contingente» que comentámos no artigo anterior.
Os que fizeram o buraco ficam-se a rir.
O povo continuará a alombar, como bestas de carga.
É que na luta entre explorados e exploradores são muitas vezes os primeiros que são idealistas, e os segundos que são materialistas, à maneira de G. Gekko. À maneira cínica.

P.S.: O comentador, Paulo Ferreira, disse no JN de hoje: «O Governo e o Banco de Portugal (BdP) tomaram a única opção possível e imaginária [...]». Este é dos comungantes. Eles são às mãos-cheias nos meios de comunicação e as vozes deles abafam tudo. A «única opção possível»! E, ainda por cima, a única opção «imaginária»! Uns artistões este Governo e BdP, que á custa de tremendos esforços e tremendos conhecimentos conseguem extrair «a única opção possível e imaginária». Como os G. Gekkos de Portugal devem gostar destes comungantes!


[1] «The richest one percent of this country owns half our country's wealth, five trillion dollars. One third of that comes from hard work, two thirds comes from inheritance, interest on interest accumulating to widows and idiot sons and what I do, stock and real estate speculation. It's bullshit. You got ninety percent of the American public out there with little or no net worth. I create nothing. I own. We make the rules, pal. The news, war, peace, famine, upheaval, the price per paper clip. We pick that rabbit out of the hat while everybody sits out there wondering how the hell we did it. Now you're not naive enough to think we're living in a democracy, are you buddy? It's the free market. And you're a part of it. You've got that killer instinct. Stick around pal, I've still got a lot to teach you.» http://www.imdb.com/title/tt0094291/quotes