terça-feira, 4 de março de 2014

A ilusão de uma saída reformista da crise

Estado actual: propaganda e realidade
   
    Apesar da recente campanha de propaganda do governo (e do PSD-CDS e seus serventuários nos media), procurando criar a ideia de que o pior já passou e que já se iniciou a retoma da economia, a realidade é bem diferente.
    O pagamento das tranches de resgate à custa da «austeridade» -- de facto à custa do roubo imposto aos trabalhadores, reformados e pensionistas --, não tem diminuído a dívida pública que, pelo contrário, tem vindo a aumentar (ver http://revolucaoedemocracia.blogspot.pt/2013/11/austeridade-em-portugal-ponto-da.html).
    Desde 2012, só em juros e comissões, foram-nos «extraídos» pela Comissão Europeia (CE) 3 mil milhões de euros. A taxa de desemprego, cuja ligeira descida o governo tanto exaltou, deveu-se à emigração -- um número crescente de emigrantes que atingiu actualmente a cifra de 1,6 milhões (!), com 200 jovens por dia a deixar o país -- e à reclassificação -- o número dos que passaram em 2013 à condição de reformados, estudantes ou domésticos, saindo das listas de desemprego mas ficando «inactivos» foi de 19 mil. (Estes e outros dados do INE.) O número de licenciados desempregados continua a subir; eram 81.000 sem emprego há mais de uma ano. Nas indústrias transformadoras, na construção e na agricultura (com pecuária, floresta e pescas) -- isto é, no sector produtivo -- o número de trabalhadores tem diminuído enormemente; respectivamente -24,5%, -45,8% e -23,7% entre 2005 e 2013.
    O rendimento líquido médio de Portugal continua a diminuir (732 €/mês, a média da UE é de 1.248€/mês); estamos em 18.º lugar, abaixo da Grécia. O número de pobres continua a aumentar: caímos para o 9.º país mais pobre da UE, ficando abaixo da Lituânia. Há 4 milhões de portugueses a viver da Segurança Social. Desde o início da crise a despesa com reformados aumentou 95% e a despesa com subsídios de desemprego aumentou 60%. Para 2015 a CE já veio dizer que o PIB per capita de Portugal irá de novo cair. Num Portugal que é o país da UE onde o rendimento global está mais concentrado nos ricos: 27% do rendimento nos 10% mais ricos e 18,3% nos 5% mais ricos (Eurostat, dados de 2012).

O que diz a Direita
   
    Em 18 de Fevereiro a troika tornou claro que a «purga» de funcionários públicos terá de continuar. Que metade das repartições de finanças terá de fechar. Que os cortes nas pensões são definitivos e o consumo não pode regressar aos níveis pré-crise. Que a austeridade é para continuar por vários anos, estando programados cortes de 2 mil milhões de euros para 2015.
    A troika acabou, assim, com a propaganda optimista do governo. Como bons papagaios da troika assistiu-se de imediato a uma inflexão de discurso dos porta-vozes do governo e da Direita.
A ministra das Finanças disse no mesmo dia que a «austeridade veio para ficar por muito tempo [...] já que seria uma “ilusão” voltar a uma realidade que não existiu» e que é «muito importante dizer às pessoas que não se vai voltar ao que era pois não há nada para que voltar». Descontando os disparates do discurso (p. ex., «uma realidade que não existiu» é um contra-senso), a mensagem é esta: o «Estado Social» acabou, como já todos os poderosos da UE dizem, incluindo o rei da Holanda (http://revolucaoedemocracia.blogspot.pt/2013/10/a-sociedade-participativa-e-portugal.html ). No fundo, ministra e troika dizem-nos isto: aceitai, oh gentes, aquilo que vos impomos porque outros valores mais altos se alevantam -- os interesses do grande capital, nomeadamente do capital financeiro. É claro que a ministra prefere dizer que o que existia (o «Estado Social») era uma «ilusão» e que, por qualquer razão misteriosa que se deve ocultar do leigo, não se pode «voltar ao que era pois não há nada para que voltar». Mensagem críptica quanto baste.
    A 20 de Fevereiro o líder parlamentar do PSD também fez esta declaração lapidar: «A vida dos portugueses não está melhor mas o país está». Nesta declaração há, como na da ministra, duas mensagens: uma para o leigo e outra para o não leigo. A mensagem para o leigo: existe uma entidade «país» distinta dos «portugueses», que só por acaso são desse país; estes sentem-se mal, mas isso não é importante porque a entidade mais alta, a entidade divina, o «país», está bem. E o líder PSD, como sacerdote dessa entidade e, portanto, por dentro dos desígnios insondáveis da divindade, sabe que é assim. A mensagem para o não leigo: a populaça sente-se mal mas felizmente sente-se bem melhor o grande capital, o «país». E, efectivamente, nesta última mensagem, o sacerdote PSD do grande capital acerta: os mais ricos capitalistas têm visto aumentar os seus rendimentos e a sua fortuna.
    Por um lado, a CE disse a 18 de Fevereiro que os salários em Portugal têm de cair mais 2% a 5%. Mas, em contraponto, os grandes capitalistas, os banqueiros, são livres de enriquecer quanto quiserem à custa da miséria e da exploração dos trabalhadores. Estamos em presença da «liberdade» fundamental do capitalismo.
    E para que não restem dúvidas de que os PSDs-CDSs sabem como bem tratar do «país» transpirou para os media, no mesmo dia 18 de Fevereiro, este segredo: o Governo concedeu e ocultou 1.045 milhões de euros em benefícios fiscais aos grandes grupos económicos. Como é que com este desvelo o «país» não há-de estar bem?
    Para finalizar: uma notícia da Bloomberg de 12 de Fevereiro citou um documento enviado pela CE ao ministério alemão das Finanças, dizendo o seguinte: a CE defende que Portugal tem de continuar o «processo de consolidação orçamental» porque a dívida pública continua alta (que surpresa!); os esforços da consolidação têm de prosseguir durante o horizonte do programa de resgate com «uma consolidação orçamental adicional, após o horizonte do programa [que] vai claramente acelerar a trajectória da redução da dívida». A CE a dizer ao ministério alemão das Finanças o que «Portugal» deve fazer. E sabemos disto pela Bloomberg, não pela ministra das Finanças ou pelo primeiro-ministro. No mesmo dia apenas se soube do primeiro-ministro que estava «muito contente por os portugueses já não viverem acima das suas possibilidades».

A luta de massas
   
    A pose confiante e arrogante da Direita é clara. Entre outras razões, a confiança e arrogância da Direita deve-se à insuficiência da luta de massas. É certo que existem lutas locais (de destacar aqui a corajosa luta dos trabalhadores dos estaleiros de Viana do Castelo e de outros de várias pequenas empresas por todo o país); é certo que tiveram lugar manifestações de protesto. Também estivemos na última. Embora mais participada que outras anteriores, constatámos mais uma vez a fraca participação da juventude e de jovens trabalhadores.
    A propaganda da Direita, a ilusão de que a crise está a acabar, a ilusão de que não existem nem são possíveis alternativas à política da Direita -- ilusão alimentada pelo PS que faz coro com a Direita ao pronunciar-se pelo «realismo desta via de sustentabilidade», pela necessidade de reforma constitucional, pela revisão para pior das leis laborais, pela revisão para pior do IRC, etc. --, a ilusão dos votantes no PS que pensam que este, ganhando as próximas eleições legislativas, irá trazer melhorias assinaláveis ao seu nível de vida -- ilusão mais prevalecente na pequena burguesia (em especial, nas profissões liberais e no pequeno comércio) e nos trabalhadores de colarinhos brancos --, a actuação reformista dos líderes sindicais da UGT, todos estes factores convergem para cultivar o conformismo e attentisme, dificultando a luta de massas.
    (Como recente exemplo ilustrativo da amizade PS-PSD assinale-se a apresentação de um livro sobre o papel como economista e ministro das Finanças de Vítor Gaspar, feita pelo quadro destacado do PS António Vitorino. Uma apresentação implicitamente apologética da «coragem» neoliberal de Gaspar em castigar os que menos têm. Também esteve presente o antigo líder da UGT João Proença, membro do secretariado nacional do PS. Como já não é líder da UGT pode agora, à vontade, mostrar o seu amor por Gaspar. Quadros PS-PSD-CDS: todos uns grandes compinchas.)
    A CE, a troika, estão bem conscientes do baixo nível de protesto das massas populares em Portugal. Neste aspecto são até mais realistas-materialistas do que aqueles que tinham obrigação de sê-lo: os partidos da Esquerda. Por isso mesmo, CE e troika não tiveram peias em dizer que têm de aumentar em Portugal os despedimentos na função pública e que os salários têm de cair mais 2% a 5%. Se as ilusões continuarem entre os trabalhadores (quer os de colarinhos azuis quer os de colarinhos brancos) e não se mobilizarem fortemente na luta de massas, da próxima vez que a troika vier a Portugal irá anunciar cortes salariais entre 5% e 8%. Que não haja ilusões: por cada demonstração de conformismo dos trabalhadores assistiremos a novas extorsões do grande capital. E a «trajectória da redução da dívida» continuará imparável, acompanhando a crescente pauperização das massas populares.
    Paira na Esquerda um enorme marasmo ideológico e de acção. Na vertente ideológica assinale-se um espantoso défice de esclarecimento, a adopção da fraseologia e «etiqueta»» do inimigo de classe, como se fosse de mau tom e podendo ferir susceptibilidades usar as palavras exactas. Estamos num ascenso da luta de classes. Apesar disso, e estranhamente, parece haver um grande retraimento na Esquerda em usar, por exemplo, a palavra «classe» e a expressão «luta de classes». Quem não teve papas na boca foi o investidor e milionário americano Warren Buffet, que disse numa entrevista na televisão referindo-se aos EUA: «Estamos, sem dúvida, numa luta de classes, mas é a minha classe, a classe dos ricos que está a fazer a luta e estamos a ganhar». O mesmo se aplica a Portugal.
    Outro componente do marasmo ideológico da Esquerda é a adopção e apresentação tout-court de propostas reformistas. É este aspecto -- que também contribui (e de que maneira!) para o conformismo e attentisme -- que vamos agora analisar.

A ilusão reformista
   
    A «crise do euro» tem tido muitos nomes, conforme a necessidade de iludir as massas que cada etapa da crise exige: «crise financeira», «crise bancária», «crise estrutural», «crise das dívidas soberanas», etc. Na realidade a crise que enfrentam as sociedades de capitalismo desenvolvido é só uma: crise do capitalismo.
    Em artigos anteriores procurámos caracterizar a evolução e a causa da crise; nomeadamente, o aumento da actividade financeira especulativa como contraponto ao declínio da taxa de lucro no sector produtivo (ver, em particular, http://revolucaoedemocracia.blogspot.pt/2014/02/o-sector-financeiro-vi-jogos-com_22.html ). Declínio esse cuja tendência é inerente ao capitalismo.
    As várias forças da Esquerda portuguesa (e o Congresso Democrático das Alternativas de perfil social-democrata) vêm propondo pacotes de medidas reformistas -- isto é, medidas que se encaixam dentro do sistema capitalista -- como soluções da crise, como viragens políticas da «austeridade». São medidas que passam por cima da realidade do actual sistema capitalista nos países desenvolvidos. Vamos enumerá-las comentando as suas limitações, a razão porque não poderão funcionar:
   
           1. Taxar (aumentar os impostos de) os ricos
   
    Bom, é preciso que os ricos deixem… Situamo-nos aqui no cerne da maior limitação das medidas reformistas: contar com a «boa vontade» daqueles que dominam o sistema económico-político: os grandes capitalistas. De facto, para muitos dos que propõem medidas reformistas, subjaz uma ilusão básica: a ilusão de que a entidade «Estado» é (ou pode ser por um período de tempo não muito curto) independente dos interesses da classe dominante. Como se se tratasse de uma entidade abstracta, pairando acima da vontade dos capitalistas. A ilusão, enfim, de que por medidas «políticas», «administrativas», se consegue dar a volta à lógica interna do capitalismo.
    Exceptuando raríssimos exemplos de grandes capitalistas que se pronunciaram a favor de pagarem mais impostos, a esmagadora maioria opõe-se e opor-se-ia violentamente a tal medida. Sempre que surgem ameaças nesse sentido logo se manifesta a indignação dos seus porta-vozes de que um aumento de impostos desencorajaria o investimento e diminuiria o crescimento económico. Muitos serventuários, cinicamente, até dizem que é um bem para a sociedade haver capitalistas muito ricos porque assim algum dinheiro flui para as camadas baixas. Como quem diz: quanto mais lauto é o banquete tanto mais migalhas caiem da mesa.
    Pondo de lado considerações de ordem moral, a realidade no sector produtivo é esta: não é certamente numa fase de baixa taxa de lucro que os respectivos capitalistas aceitariam pagar mais impostos, afectando a sua carreira como capitalistas. Os do sector financeiro também em Portugal já se pronunciaram claramente contra tal. Os banqueiros portugueses disseram claramente que estão contra qualquer aumento de impostos sobre os lucros bancários. Pelo contrário, até querem mais lucros: para já a CGD começou a cobrar taxa por utilização do Multibanco. Se apertados por claras intenções de «taxar os ricos», uns e outros têm sempre uma saída fácil. Mudam-se para outras paragens; como no 25 de Abril em que fugiram em massa para o Brasil e para a Espanha. A pátria dos capitalistas reside onde reside o seu dinheiro e capacidade de prosseguir sem entraves com a acumulação capitalista. E só estamos a falar aqui dos «nossos» capitalistas. Os estrangeiros pura e simplesmente parariam com os investimentos em Portugal.
   
          2. Introduzir uma taxa sobre as transacções financeiras (a taxa Tobin)
   
    Trata-se, no fundo, de uma variante da medida anterior. A questão foi levantada a nível da UE – Sarkozy, figura conhecida da Direita, foi um grande defensor da taxa Tobin --, fizeram-se estudos nesse sentido, mas não se avançou; em particular, por forte oposição do Reino Unido (mas não só). Um artigo do “The Economist” esclarece porquê: «Londres é o centro global de transacções cambiais e bolsistas. Estas transacções são efectuadas electronicamente a baixo custo; o serviço de corretagem diz que o custo médio é de cerca de 2$ por cada milhão de dólares transaccionados. Uma taxa Tobin de apenas 0,01% pode não parecer muito, mas corresponderia a 100$ para a mesma transacção, 50 vezes mais. Porque razão haveria alguém de pagá-la? Tais transacções seriam de imediato transferidas para Nova Iorque ou Singapura». Portanto, fuga de transacções financeiras para outros centros. Na época da globalização do capital tal fuga é fácil e imediata: basta praticamente carregar num botão do computador.
    Mas será que tal medida poderia funcionar num único país, como Portugal? A experiência da Suécia que introduziu a taxa Tobin em 1984 serve de resposta. Apesar da Suécia ter imposto restrições ao movimento de capitais para mercados estrangeiros, os investidores conseguiram fazê-lo, transferindo transacções para Oslo e Londres. Verificou-se ser difícil determinar legalmente as transacções sujeitas a taxa e mais ainda: fiscalizar a aplicação da lei. (Em Portugal, com a acuidade de regulador que já conhecemos do BdP estaríamos bem entregues!) Em meados de 1986 o volume de transacções na Bolsa de Estocolmo tinha caído 30%. Em 1987, a queda era já de 60%. Em 1989 a queda de transacções em derivados obrigacionistas era de 98%. Por outro lado, mesmo os investidores que permaneceram na Suécia arranjaram escapatórias: moveram as transacções para novos derivados não taxados por lei. Curiosamente, apesar da taxa, a especulação financeira não diminuiu, antes aumentou sob novas roupagens. A Suécia que esperava obter 1,5 mil milhões de coroas com a taxa só obteve 80 milhões; 19 vezes menos! A taxa Tobin foi abandonada pela Suécia em 1991. Muitas das transacções transferidas para outros centros nunca mais regressaram à Suécia.
   
3.      Incentivar o crescimento económico
   
     Como? É o que os proponentes de reformas não dizem. Pelo menos, claramente. A ideia de que por medidas políticas, por exercício da vontade, se pode incentivar o crescimento económico no actual sistema capitalista é sumamente utópica. Se isso fosse possível os próprios capitalistas já o tinham feito. Os capitalistas só investem se obtiverem lucros. Na actual fase de baixa taxa de lucro no sector produtivo não o fazem. Não por serem «más» pessoas, mas por serem «bons» capitalistas. Há quem pense que a questão se resolve por incentivo às PMEs. Sem dúvida o incentivo às PMEs é importante; mas as do sector produtivo (agricultura, indústria e construção) representam 33% do total e o total das PMEs só representa 18% das exportações (estudo do BdP). O progresso económico evolui no sentido das grandes empresas e não das PMEs; quer no capitalismo quer no socialismo. Só os utópicos pensam ser possível rodar ao contrário as rodas da História e voltar aos tempos dos pequenos produtores independentes. Isto -- repetimos -- sem prejuízo do apoio que se deve oferecer às PMEs. Mas não são elas, por si só, que podem resolver a questão do «crescimento económico», nomeadamente num país como Portugal que não pode viver em autarcia (basta ver a nossa dependência energética) e necessita de exportações substanciais. (A propósito, um recente estudo do New Scientist revelou que 40% da riqueza económica a nível mundial é controlada por 147 empresas, a grande maioria das quais bancos e instituições financeiras.)
   
             4. Saída do euro
   
    Afirmámos noutros artigos (ver http://revolucaoedemocracia.blogspot.pt/2013/06/o-restauro-do-euro-meio-cheio-ou-meio.html ) que somos a favor da saída do euro. Mas, atenção: como já dissemos, só defendemos a saída do euro no âmbito de uma clara viragem política contra o grande capital, regressando aos ideais de Abril: «uma democracia avançada a caminho do socialismo». Tal viragem instituiria um sistema económico transicional, com nacionalizações de grandes empresas e bancos, mantendo e estimulando as PMEs.
     Uma saída do euro no âmbito do actual sistema capitalista iria, quanto a nós, manter se não agravar a vida dos trabalhadores, reformados, pensionistas. Iria ser uma reforma com impacto negativo. As razões disso são as seguintes: desencadearia de imediato uma enorme fuga de capitais, difícil (quase impossível) de controlar no âmbito da livre circulação de capitais da UE e da complacência das entidades «reguladoras»; iria desvalorizar a nova moeda face ao euro, criando uma enorme inflação que na prática funcionaria como austeridade; a desvalorização aumentaria o valor das importações, particularmente de países da zona euro de quem importamos muitos bens (Espanha e Alemanha), contribuindo para tornar ainda mais negativa a nossa balança comercial, aumentando a dívida externa; a desvalorização aumentaria imenso o montante da dívida na nova moeda, colocando na mesa a perspectiva de incumprimento; provocaria, assim, a queda a pique do investimento estrangeiro (teria de ser substituído por investimento estatal); iria, por fim, criar uma enorme pressão política e económica da Alemanha e França contra Portugal, assustadas com a perspectiva de incumprimento e o possível efeito de contágio a outros países.
    A única forma da saída do euro se tornar uma medida positiva seria no âmbito de «uma democracia avançada a caminho do socialismo». A saída do euro seria então um corolário necessário da viragem política. Contribuiria, então, para estimular as nossas exportações (teríamos de reformular o comércio externo) e, sob medidas cambiais apropriadas e medidas proteccionistas, assegurar a construção de uma economia e finanças sadias, ao serviço do povo. A via não seria fácil, mas quanto a nós é a única.
    Note-se que a saída do euro no âmbito de «uma democracia avançada a caminho do socialismo» poderia colocar a questão da saída da UE. Muitos perguntarão: e que aconteceria com a falta de fundos estruturais e de coesão que recebemos da UE? Infelizmente a falta de esclarecimento por parte da Esquerda leva a que muitos portugueses pensem que a «Europa» tem uma espécie de árvore das patacas de onde extrai fundos para «dar» aos países; para dar a Portugal como acto de filantropia pelos pobrezinhos. Esqueceram-se do ditado popular que diz que «ninguém dá nada a ninguém». Os fundos provêm do orçamento da UE e este alimenta-se de: direitos de importação sobre mercadorias importadas por qualquer país da UE; impostos pagos pelos cidadãos da UE derivados do IVA cobrado em cada Estado-membro; receitas baseadas no PIB (actualmente, limitada a 1,24% do PIB); juros sobre depósitos ou pagamentos de organizações não-UE. Escasseiam dados completos que permitam comparar o que demos -- incluindo os fluxos de lucros para firmas estrangeiras da UE -- com o que recebemos. Mas o saldo está à vista, é o lindo estado em que estamos face àquele em que nos encontrávamos antes de entrar para a UE: dívida pública mais elevada, menor taxa de crescimento do PIB, maior taxa de desemprego, menores salários, mais pobreza, etc.
   
            5. Renegociação da dívida
   
    No âmbito do actual sistema capitalista a «renegociação da dívida» apenas prolonga o «cancro» da dívida. Seria preciso que a troika aceitasse. Só aceitará num quadro de grande aumento da luta de massas. E rejeitará qualquer renegociação no âmbito de uma viragem política para «uma democracia avançada a caminho do socialismo» colocando a questão do incumprimento. (Vários países seguiram no passado a via do incumprimento e saíram-se bem.)
   
           6. Regulamentação
   
    Há também os que defendem a aplicação de novas regras (reformas) bancárias. Já discutimos este ponto extensamente em outros artigos e vimos que tais reformas não passam de boas intenções sem consequências práticas. Não há alternativa à nacionalização dos bancos.
   
    Quer isto dizer que somos contra tudo que é reforma? De forma nenhuma. Somos por reformas (certas reformas) enquanto elas contribuírem para melhorar as condições de vida dos trabalhadores, não esquecendo que a luta por reformas deverá ser sempre uma luta a complementar pelo aumento da consciência política, pelo esclarecimento dos limites materiais e temporários das reformas, pela necessidade de lutar pela superação do capitalismo. Isso requer, naturalmente, que haja (se construa) uma perspectiva clara e bem estruturada de objectivos políticos a alcançar. A análise aprofundada das experiências socialistas passadas, vendo o que tiveram de positivo e o que tiveram de negativo seria um bom passo na direcção correcta. Incluindo a análise da experiência da revolução portuguesa. Não temos visto a nossa Esquerda a mostrar essa capacidade.

As propostas do PCP
   
    Correspondem as propostas que o PCP tem recentemente divulgado àquilo que seria legítimo esperar do maior partido da Esquerda portuguesa? Infelizmente, pensamos que não.
    O PCP, além de ser o maior partido da Esquerda portuguesa, tem um passado histórico honroso, de único partido que combateu consequentemente e indomavelmente contra o fascismo; de único partido que mostrou a sua fibra revolucionária, de forma consequente (actos correspondentes às palavras) e responsável, nas conquistas de Abril: Reforma Agrária, nacionalizações, controlo operário, etc. É um partido de constituição maioritariamente proletária e o de maior influência sindical. Para nós é óbvio que nenhuma viragem da actual política, nenhuma alternativa de Esquerda pode ser construída sem o PCP. Mas estará o PCP a actuar à altura das suas responsabilidades?
    Passando por cima de várias insuficiências do PCP, que de momento não iremos abordar, analisemos as propostas do PCP tal como foram recentemente divulgadas pelo Secretário-Geral (logo, propostas da Comissão Política) no recente comício de 18 de Fevereiro (passou na TV, está no YouTube) e em escritos que têm chegado ao público, nomeadamente através de prospectos volantes.
    Eis as propostas:
   
a) Renegociação da dívida («questão dos juros, dos prazos e dos quantitativos»);
b) Taxar os ricos («componente fiscal de aumento de tributação dos dividendos, dos lucros do grande capital»);
c) «política de desenvolvimento»;
d) Saída do euro (o PCP tem organizado encontros sobre esta questão);
e) A «valorização efectiva dos salários e das pensões e uma melhor e mais justa distribuição da riqueza criada»;
f) Uma «política orçamental de combate ao despesismo e à despesa sumptuária»
g) Uma «[componente fiscal] de alívio dos trabalhadores, dos reformados, dos pensionistas, das micro, pequenas e médias empresas, de recuperação dos serviços públicos»;
h) «Era ir aos offshores buscar os lucros, as acções, etc.»;
i) A «devolução ao povo do que é do povo»;
j) Um «governo patriótico e de Esquerda» por uma «democracia avançada».
   
    Nunca é mencionada ou argumentada a construção de uma alternativa tendo em vista a superação do capitalismo; uma via a caminho do socialismo.
    No quadro actual do capitalismo (e não é, obviamente, o PCP que vai alterar esse quadro impondo aos capitalistas o que devem fazer), no quadro actual do nosso regime capitalista dominado por monopólios, muitos dos quais estrangeiros, uma «democracia avançada» é uma mera e inconsequente intenção; uma ilusão. Quanto ao «governo patriótico e de Esquerda» não se sabe muito bem o que isso iria ser, concretamente, e como poderia ser construído. O PCP não o diz. A proposta tem, por conseguinte, para quem a ouve, o mero valor de uma intenção. No quadro actual do capitalismo o PS também pode reclamar que deseja uma «democracia avançada» e um «governo patriótico e de Esquerda». E os grandes capitalistas poderão não pôr obstáculos e até apoiar a construção de uma «democracia avançada» e um «governo patriótico e de Esquerda» do PS; este empregaria outras denominações mas isso é irrelevante. Ao fim e ao cabo o PS não se cansa de se afirmar «de Esquerda»; logo, por definição do PS e de largas massas da população que seguem o PS, um governo PS é um «governo de Esquerda».
    Poderão replicar-nos: não se trata apenas dos «obstáculos» que os capitalistas poderão ou não colocar; o povo, os trabalhadores poderão ser conquistados pelas propostas do PCP; o povo, os trabalhadores são, em última instância, o motor da História. Sem dúvida. Mas para que o povo queira a «democracia avançada» e o «governo patriótico e de Esquerda» do PCP, e não o do PS, é preciso, primeiro que tudo, que consiga distinguir entre as duas alternativas. Se o PCP não esclarece fundamentadamente que a sua alternativa procura ultrapassar o quadro actual do capitalismo -- o que nunca fez nem em comícios nem em materiais escritos para a população em geral -- então as duas alternativas não se distinguem. Mantém-se o velho cliché de que os políticos são todos iguais e prometem todos o mesmo; e a fraseologia peculiar do PCP, insubstanciada pela formulação de uma verdadeira alternativa com pés e cabeça, passa por mera cassette. Instintivamente as massas sabem que as propostas do PS se «encaixam» no actual sistema; mas não vêem como as do PCP se poderiam «encaixar».
    Ora, no quadro actual do capitalismo -- e o PCP em nada aponta para a sua superação -- as propostas de (a) a (d) são reformistas; inconsequentes conforme já vimos acima. As de (a) a (c) também são referidas pelo PS e as (a) e (c) também pelo PSD-CDS. As propostas de (e) a (g) também poderiam (e em certa medida são) subscritas pelo PS, embora saibamos muito bem que o PCP é um partido que procura ser consequente e o PS não. Mas a questão não é essa. É -- mais uma vez -- que fora do contexto de superação do capitalismo tais propostas são meros enunciados de intenções. Imaginemos o seguinte: o PCP ganhava as eleições e constituía governo; como é que dentro da UE, com a troika e o grande capital às costas, com os monopólios a dominar a economia, com a Three Gorges a dominar a EDP, podia implementar as propostas de (e) a (g), sem superar o quadro actual do capitalismo? Mas para superar o quadro actual do capitalismo é preciso primeiro ganhar o povo, os trabalhadores, para tal tarefa. Ora é isso que o PCP não está a fazer. E só a superação do quadro actual do capitalismo permitirá a proposta (i): a «devolução  ao povo do que é do povo». Quanto ao «ir aos offshores buscar os lucros, as acções, etc.» também gostaríamos disso; mas que consequências práticas advêm de gostos?
    Estamos bem conscientes que a situação é complexa e entendemos que possa haver a intenção do PCP de criar uma larga aliança de camadas sociais para abrir uma brecha na situação; aliança que supostamente exigiria uma «conversa consensual». Não está a resultar. Conversas consensuais, conversas «moles», são o domínio de excelência do PS; conversas para todos os gostos. Não só o PCP não está a conquistar substancialmente mais apoio mas inclusive está a desencorajar o que devia ser a sua base de apoio. Pensamos que é urgente apontar às massas populares a única alternativa possível: uma via a caminho do socialismo. E a preparar de forma bem fundamentada propostas nesse sentido. Propostas bem distintas de todas as outras; que possam, pela sua correcção e limpidez, ganhar o apoio de largas massas de população. O PCP não está a fazê-lo. E a não fazê-lo só continuará a contribuir para a ilusão de que são possíveis soluções substantivas de saída da crise do capitalismo sem tocar no capitalismo. Uma contradição que não incomoda o PS mas devia incomodar o PCP.
*    *    *
    É preciso urgentemente começar a esclarecer que a escolha no actual momento de imperialismo galopante, de agressivo capitalismo monopolista de Estado, que ataca às claras e brutalmente os direitos dos trabalhadores, que interfere às claras e brutalmente na vida de nações inteiras, é só esta: socialismo ou barbárie.