segunda-feira, 10 de março de 2014

Venezuela: a face do imperialismo ianque

    O jornal inglês The Guardian, publicou no passado 4 de Março um artigo do jornalista Mark Weisbrot intitulado “A Venezuela não é a Ucrânia” (http://www.theguardian.com/commentisfree/2014/mar/04/venezuela-protests-not-ukraine-class-sturggle)
    Trata-se de uma peça de jornalismo responsável que não é habitual encontrar nos jornais «ocidentais».
    O título, A Venezuela não é a Ucrânia”, refere-se apenas a uma breve mensagem do artigo: a de que na Venezuela, ao contrário da Ucrânia, a oposição de direita e extrema-direita, aliada ao imperialismo ianque, não tem conseguido enganar o «povo», isto é, os trabalhadores e os mais desfavorecidos. Mas o artigo concentra-se exclusivamente na Venezuela, não discorrendo em comparações entre os «casos» da Venezuela e da Ucrânia, como o título levaria a esperar. Aliás, há um aspecto básico de que não se encontra menção no artigo e que, precisamente, desmente o título: no que respeita à ingerência do imperialismo no derrube de um governo que, apesar de democraticamente eleito, prejudica os interesses do grande capital, a Venezuela é a Ucrânia.
    Seja como for, o artigo transmite informação de interesse, essencialmente verdadeira e documentada, pelo que aqui deixamos a nossa tradução com comentários (inseridos entre parênteses rectos):
   
    «O conflito na Venezuela é apresentado pelos media ocidentais de forma muito enganadora. Trata-se de um conflito clássico entre direita e esquerda, entre ricos e pobres [de facto, entre burguesia e proletariado].
    [O artigo insere aqui uma foto mostrando um manifestante da oposição a atirar um dispositivo incendiário contra a Guarda Nacional Bolivariana num protesto em Caracas, no dia 28/2/2014: uma de muitas actuações violentas de manifestantes que os media ocidentais apresentam como pacíficos. Como na Ucrânia.]
    Os actuais protestos na Venezuela são reminiscentes de um outro momento histórico, quando os protestos de rua eram usados pelos políticos da direita como componente dos seus intentos de derrube de um governo eleito. De Dezembro de 2002 a Fevereiro de 2003 teve lugar uma greve dos trabalhadores de colarinhos brancos da indústria nacional de petróleo, a que se juntaram alguns negociantes. Os media dos EUA aproveitaram-na para transmitir a ideia que a maior parte do país estava em greve contra o governo, quando, de facto, a greve envolvia menos de 1% da força laboral. [Esta táctica da reacção é velha como o mundo. Tem sido usada por Washington em inúmeras ingerências noutros países.]
    A difusão na última década de telemóveis com vídeo e dos media sociais tornou mais difícil transmitir uma falsa imagem de eventos facilmente capturados por câmara vídeo [o jornalista Mark Weisbrot está a ser optimista; aquilo que se escolhe captar e a forma como a captação é relatada tem grande influência]. Mas a Venezuela é ainda grosseiramente distorcida nos principais media. O New York Times teve de inserir uma correcção na semana passada num artigo que começava pela afirmação “A única estação de televisão que regularmente emite vozes críticas do governo...” Ora, na realidade, todas as estações privadas de TV “emitem regularmente vozes críticas do governo”. E os media privados detêm mais de 90% da audiência da televisão da Venezuela. Um estudo do Centro Carter, sobre a campanha das eleições presidenciais no passado Abril, revelou uma vantagem de 34% a 57% na cobertura de TV do presidente Maduro sobre o seu adversário Henrique Capriles nas eleições de Abril, mas tal vantagem é fortemente diminuída ou mesmo eliminada quando são tomadas em conta as quotas de audiência.
    Embora existam abusos de poder e problemas com o estado de direito na Venezuela – como existem em todo o hemisfério – o país está muito longe do Estado autoritário que a maioria dos consumidores dos media ocidentais é induzida a acreditar. O objectivo em curso dos líderes da oposição é o derrube de um governo democraticamente eleito – objectivo que proclamam; com esse fim retratam o governo como uma ditadura repressiva que está a reprimir com violência protestos pacíficos. Trata-se de uma estratégia standard de “mudança de regime”, que muitas vezes inclui manifestações violentas com vista a provocar a violência estatal.
    Os últimos números oficiais confirmam oito mortos entre os manifestantes da oposição, mas nenhuma evidência de que foram a consequência de esforços do governo para esmagar a [expressão de] dissensão. Pelo menos duas pessoas pró-governamentais foram também mortas, e duas pessoas em motos foram mortas (uma decapitada) por arames alegadamente colocados pelos oposicionistas. Onze de 55 pessoas actualmente detidas por alegados crimes durante os protestos são agentes de segurança.
Claro que a violência de ambos os lados é deplorável, e os manifestantes detidos – incluindo o seu líder, Leopoldo López – deveriam ser soltos sob fiança, a não ser que haja causa legal e justificável de prisão preventiva. É, porém, difícil argumentar com base na evidência que o governo está a tentar suprimir protestos pacíficos.
    De 1999 a 2003 a oposição na Venezuela tinha uma estratégia de “tomada militar”, de acordo com Teodoro Petkoff (pdf) um jornalista proeminente da oposição que edita o diário Tal Cual. Tal estratégia incluiu o golpe militar de Abril de 2002 e a greve do petróleo e dos negociantes de Dezembro de 2002 a Fevereiro de 2003 que muito prejudicou a economia. Embora a oposição tenha eventualmente optado pela via eleitoral para chegar ao poder, não se trata aqui do tipo de processo que se vê na maioria das democracias, em que os partidos da oposição aceitam a legitimidade do governo eleito e procuram cooperar em pelo menos alguns objectivos comuns. [Manifesta-se aqui uma ingenuidade básica. Nas democracias «ocidentais» a que se refere Mark Weisbrot os “partidos da oposição aceitam a legitimidade do governo eleito” porque servem no essencial os mesmos interesses de classe. Uns e outros servem o capitalismo. Como dissemos num artigo anterior, uns partidos correspondem ao Plano A dos capitalistas e outros ao Plano B. Sempre que surge, mesmo que democraticamente, uma ameaça real a este «entendimento de cavalheiros» as boas maneiras «democráticas» são de imediato abandonadas. Tal como a cooperação «em pelo menos alguns objectivos comuns». Os objectivos de um povo que enceta uma caminhada para um sistema socialista – ou, como na Venezuela, está a construir um sistema misto, de transição, com um forte sector da economia de controlo estatal – são opostos dos objectivos do grande capital. Não há cooperação possível. A «democracia» no capitalismo é sempre a democracia que os capitalistas consentem. A palavra «democracia» designa um conceito abstracto, idealizado; a «democracia» na prática e pela prática, é sempre o reflexo de uma realidade concreta. Tal como o ponto geométrico sem dimensões e os muitos «pontos» que podemos desenhar no papel com lápis e canetas.]
    Uma das forças mais importantes que tem encorajado esta polarização extrema [e inevitável] tem sido o governo dos EUA. É certo que outros governos de esquerda que têm implementado mudanças económicas progressivas também têm sido politicamente polarizados: por exemplo, Bolívia, Equador e Argentina. E têm-se verificado esforços violentos de desestabilização por parte da direita na Bolívia e no Equador [e não na Argentina porque os seus dirigentes não colocam em causa os interesses do grande capital]. Mas Washington tem-se comprometido mais com uma “mudança de regime” na Venezuela do que noutros lugares da América do Sul – o que não surpreende dado que está sobre as maiores reservas de petróleo do mundo. [Mas não é só o petróleo que conta! É um erro infantil de alguma esquerda reduzir tudo ao petróleo ou a outros recursos naturais. A Guatemala não tinha petróleo (tinha bananas) e o seu governo progressista de 1953 foi derrubado por ingerência dos EUA. O Chile também não tinha petróleo (tinha cobre) e o seu governo progressista foi derrubado por ingerência dos EUA em 1973. E a ilha de Grenada não tinha nem petróleo, nem bananas, nem cobre, nem nada, e aconteceu-lhe o mesmo em 1983. Para além de recursos, há muitas outras preocupações dos imperialistas. Uma das quais é o «mau exemplo» e efeito de contágio – os imperialistas chamam-lhe efeito dominó -- que dão certos povos que não se deixam pacificamente explorar pelos imperialistas e têm, inclusive, o topete de se revoltarem contra isso.] Tal tem dado aos políticos da oposição um forte incentivo de não operar dentro do sistema democrático.
    A Venezuela não é a Ucrânia, onde os líderes da oposição puderam ser vistos a colaborar publicamente com agentes oficiais dos EUA nos seus esforços de derrube do governo, sem pagar qualquer preço por isso. Claro que o apoio dos EUA ajudou a oposição da Venezuela com financiamento: pode-se encontrar cerca de 90 milhões de dólares em financiamento dos EUA à Venezuela desde 2000, simplesmente consultando os documentos do governo americano disponíveis na web, incluindo 5 milhões de dólares no actual orçamento federal. Pressões para unir a oposição e aconselhamento táctico e estratégico também ajudam: Washington tem décadas de experiência no derrube de governos, e este é um conhecimento especializado que não se aprende em Universidades. [Mas muitos conhecem essas práticas de Washington. Elas foram todas denunciadas, expostas e documentadas, em especial por investigadores marxistas.] De maior importância ainda é a sua enorme influência nos media internacionais e, portanto, na opinião pública.
    Quando John Kerry inverteu a sua posição em Abril e reconheceu os resultados eleitorais na Venezuela, tal significou o fim da campanha da oposição pelo não reconhecimento [do governo eleito]. Além disso, a proximidade entre os líderes da oposição e o governo dos EUA é um factor negativo num país que foi o primeiro a liderar a ”segunda independência” da América Latina, iniciada com a eleição de Hugo Chávez em 1998. Num país como a Ucrânia os líderes políticos podiam sempre apontar para a Rússia (e mais ainda agora) [não entendemos este “mais ainda agora”; se se refere à Crimeia, está deslocado.] como uma ameaça à independência nacional; tentativas dos líderes da oposição venezuelana de retratar Cuba como ameaça à soberania da Venezuela são ridículas. São os EUA, unicamente, quem ameaça a independência da Venezuela, já que Washington luta por recuperar o controlo que perdeu sobre uma região.
    Onze anos depois da greve do petróleo as linhas divisivas de 2002 não mudaram muito. Existe a óbvia divisão de classes e uma diferença ainda perceptível de cor da pele entre a oposição (mais branca) e as multidões pró-governamentais – o que não surpreende num país e região cujo rendimento e raça estão muitas vezes correlacionados. [O racismo e conflitos entre raças estão – e estiveram -- sempre subordinados a interesses da classe dominante. A luta na Venezuela (e noutras regiões) não é entre raças; é entre classes.]
    Nas lideranças, uma parte está na aliança regional anti-imperialista; a outra, tem Washington como aliado. E sem dúvida existe uma grande diferença entra as duas lideranças no seu respeito por democracia duramente conquistada em eleições, como mostra o conflito em curso. Trata-se da divisão clássica entre esquerda e direita na América Latina [e não só!; não se entende porque Mark Weisbrot restringe a «divisão» à América Latina e porque a classifica de «clássica»; qual é a não clássica?].
    O líder da oposição Henrique Capriles tentou criar uma ponte sobre a divisão com uma metamorfose; deixando a sua incarnação de direita e transformando-se no Lula da Venezuela nas suas campanhas eleitorais, louvando os programas sociais de Chávez e prometendo expandi-los. Mas andou para trás e para a frente no seu respeito por eleições e democracia e – ultrapassado pela extrema-direita (Leopoldo López e María Corina Machado) – recusou ofertas de diálogo com o presidente na semana passada [mostrando assim a sua verdadeira face apesar da «metamorfose»]. Ao fim e ao cabo eles são todos demasiado ricos, elitistas e direitistas (pensem em Mitt Romney e no seu desprezo pelos 47%) para um país que votou repetidamente em candidatos que defendem uma plataforma de socialismo.
    Em 2003, dado que não controlava a indústria petrolífera, o governo não satisfez muitas das suas promessas. Uma década depois a pobreza e o desemprego foram reduzidos para menos de metade, a pobreza extrema baixou em mais de 70%, e milhões têm pensões que não tinham dantes. A maioria dos venezuelanos não está para deitar isto fora só porque tiveram ano e meio de inflação elevada e falhas crescentes de abastecimento. [Estas falhas de abastecimentos e o decorrente mercado negro e subida de preços que contribui para a inflação, inserem-se na sabotagem económica teleguiada pelos americanos e implementada por agentes locais. Um dos métodos que os ianques têm usado na Venezuela é a construção de sites que propagandeiam descidas artificiais da cotação da moeda local face ao dólar. A sabotagem económica tem sido uma arma de agressão usada em muitas ingerências dos EUA. Um autêntico atlas de medidas de sabotagem económica foi posto em prática pela CIA no Chile de Allende. Esperemos que os líderes da Venezuela estejam atentos e tenham aprendido os ensinamentos da História.] Em 2012, de acordo com o Banco Mundial, a pobreza [na Venezuela] caiu 20% -- a maior queda nas Américas. Os problemas recentes não permaneceram tempo suficiente para a maioria da população abandonar um governo que elevou os níveis de vida mais do que fez qualquer outro em décadas.»