Para extrair mais-valia é preciso que haja
mão-de-obra e esta vem escasseando nas economias capitalistas desenvolvidas. Em
particular, escasseia a mão-de-obra barata que assegura a manutenção de uma
taxa de lucro considerada atraente pelos capitalistas. Para responder a essa
escassez de mão-de-obra barata os capitalistas das economias desenvolvidas,
armados da doutrina neoliberal, fazem uso de pelo menos três medidas
(individualmente ou conjuntamente): a) atacam, através do seu Estado, os
direitos dos trabalhadores (salários, subsídios de desemprego, direitos
contratuais, etc.; é o que estamos a assistir em Portugal); b) apoiam a
imigração de mão-de-obra barata para os respectivos países; c) deslocalizam
empresas (ou parte do ciclo produtivo) para países de mão-de-obra barata. (Isto
se quiserem permanecer com a sua actividade no sector produtivo de bens e
serviços; muitos, cada vez mais, se deslocam para o sector financeiro -- em
particular, para as actividades especulativas com capital fictício -- que lhes
podem trazer grandes lucros a curto prazo.)
Existem, todavia, dificuldades com estas
medidas:
a) Para além da luta dos trabalhadores, é
preciso ter em conta que, nas economias desenvolvidas, o preenchimento do «exército»
disponível de trabalhadores que existiu no passado, devido às grandes migrações
de mão-de-obra da agricultura para a indústria, há muito acabou. A própria
queda da taxa de fertilidade nessas economias vem diminuindo as fileiras do
«exército», aumentando o poder reivindicativo dos trabalhadores.
b) Inclusive nos países em desenvolvimento
(economias emergentes, como os BRICS e outros) começa a escassear a mão-de-obra
necessária para as respectivas empresas, originando um menor fluxo de emigração
para as economias desenvolvidas. Por exemplo, cada vez iremos observar menos
russos e ucranianos a entrar em Portugal. A própria China, segundo alguns
estudos ([1]), está próxima do ponto em que já não terá possibilidades de ir
buscar mais mão-de-obra à agricultura para a colocar na indústria.
Por conseguinte, a busca global de valor por parte dos capitalistas começa a deparar
com dificuldades crescentes. Na China a população activa vai entrar em
declínio, conforme mostra o gráfico abaixo (ver também [2]).
Isto é, as
próprias bases do desenvolvimento económico capitalista começam a tornar-se
insustentáveis.
Evolução da população activa de alguns países (previsão
a partir de 2012).
Mas existe um outro aspecto ainda mais grave
da extracção de valor para o qual o sistema capitalista não encontra respostas
credíveis: como obter valor para
sustentar os não produtores de valor? É sobre este aspecto que vamos focar
a seguir a nossa atenção.
* *
*
«A maioria dos países da União Europeia (UE) enfrenta
sérios desafios aos seus sistemas de pensões, devido em larga medida ao
envelhecimento demográfico das populações. As populações estão a envelhecer por
causa das taxas de natalidade relativamente baixas e à rapidamente crescente
esperança de vida, particularmente nas idades seniores.» [tradução nossa].
Assim começa um relatório de 2012 da UE sobre
a sustentabilidade dos sistemas de pensões da Europa ([3]).
O problema desta sustentabilidade é analisado
ao longo do relatório, em particular a questão central do grau de dependência dos
seniores da população activa -- aquilo que se designa por «índice de
sustentabilidade potencial» e é geralmente calculado como o quociente entre a
população com mais de 65 anos (considerada inactiva) e aquela com idades entre
15 e 65 anos (considerada activa). Este índice tem vindo a aumentar significativamente
nos últimos anos e todos os estudos apontam para um aumento ainda mais
significativo nas próximas décadas (ver figura abaixo de [3]).
Taxa de dependência de seniores (>=65 anos) da população activa (entre 15 e 65 anos).
Olhando para o gráfico acima vemos, por
exemplo, que na Espanha em 2060 se estima que o
número de pessoas com mais de 65 anos (seniores) represente cerca de 60% do
número de pessoas activas. Por outras palavras, por cada sénior (em Espanha e
em 2060) existirão apenas 1/0,6 = 1,67 pessoas em idade activa capazes de a
sustentar. Note-se o optimismo desta estimativa: sabemos bem que actualmente em
Espanha grande parte da população em idade activa está desempregada!
As estimativas para Portugal não devem ser
muito diferentes das respeitantes à Espanha. Em Portugal, o valor para 2011 era
de 3,5 ("activos" para um "inactivo"; [4]) perto do valor
espanhol no mesmo ano. A mesma proximidade de valores era observável para anos
passados.
Existem outras formas de calcular o índice de
sustentabilidade das pensões, usando, em vez dos critérios acima (mais de 65
anos versus entre 15 e 65 anos),
critérios mais realistas baseados em estatísticas reais de população activa e
inactiva. O impacto da utilização desses critérios mais realistas nas
conclusões é, porém, diminuto. Seja que critério se considere, iremos sempre obter
gráficos muito parecidos com o da figura acima.
As razões do aumento dos índices de sustentabilidade
são claros: o grau de fertilidade (número de filhos por mulher) tem baixado,
embora se espere que venha a convergir para um valor próximo de 2,1 a partir de
2030, e a esperança de vida tem vindo sempre a aumentar e prevê-se que assim
continuará pelo menos até ao fim deste século (ver figura abaixo de [3]).
Esperança de vida em diversos países (projecções a partir de 2008).
Várias instituições e seguradoras privadas
procuram avaliar a sustentabilidade dos sistemas de pensões de vários países.
Um dos estudos muito citado a nível da UE, é o da Allianz Global Investors uma companhia multinacional alemã de
seguros e serviços financeiros ([5]), que desenvolveu um índice de
sustentabilidade que tem em conta vários aspectos, como por exemplo a evolução
demográfica, a situação orçamental do país, as características do sistema de
pensões utilizado, etc. O índice varia numa escala de 1 a 10, com 1
correspondendo sistemas de pensões sustentáveis, a menos de reformulações pouco
importantes, e 10 a sistemas com necessidade urgente de reformas. Os valores
desse índice para 2011 e para vários países, são mostrados na figura abaixo.
Verifica-se que o país com mais necessidade de
reforma do sistema de pensões é a Grécia, dado o estado de insolvência da sua
economia. A Índia, China e Japão estão no grupo de países com mau índice de
sustentabilidade, ao qual pertence também a Espanha e a Itália. Portugal
situa-se no grupo logo abaixo do «mau», tecnicamente chamado «zona de perigo».
De facto, a sustentabilidade do sistema de
pensões em Portugal tem sofrido alguns rombos devido à recessão (o desemprego
diminuiu as contribuições dos trabalhadores e transferências das empresas para
o Estado) e às políticas de austeridade (cortes nas pensões) que têm sido
seguidas. De 2011 para 2012 as contribuições para as reformas baixou de 672
milhões € e, devido aos cortes nas pensões, o Estado gastou menos 20 milhões €
(ver o artigo de Eugénio Rosa: [6]). (Portugal é dos países em que o Estado
menos gasta em protecção social: 27% do PIB em 2010, contra 29,4% de média da
Zona Euro.)
Mas basta de diagnóstico e passemos à
terapêutica. O que têm a propor os
representantes do capitalismo para resolver a sustentabilidade das
pensões/aposentações? Sobre esta pergunta regista-se uma notável unanimidade.
Todos propõem o aumento da idade da
reforma (com redução de reformas antecipadas; só se o cidadão for mesmo inválido!).
Recomendam também outras medidas, como a diversificação de esquemas de
financiamento privado de pensões. Este último aspecto é particularmente grato
aos neoliberais porque é uma forma do Estado, enquanto representante do grande
capital, se descartar do «peso» de ter de suportar os seniores. Porém, seja
público ou privado, o ónus da sustentabilidade dos seniores segundo a óptica
capitalista deve recair exclusivamente sobre os trabalhadores. Conforme afirma
o supracitado relatório da UE: «[…] todos os benefícios de pensões representam
uma transferência de recursos da população trabalhadora para a população
aposentada […]». E existe mesmo uma fórmula clássica, usada pelos representantes
do capital, relacionando os rendimentos dos trabalhadores com os «benefícios»
das pensões (o capitalismo neoliberal regressou à visão de que esta coisa de os
trabalhadores terem uma reforma quando já são velhos para trabalhar não é uma
necessidade mas sim um «benefício»):
Número
de contribuintes x rendimento
médio x percentagem de contribuição
=
Número
de aposentados x valor médio das aposentações
E aonde é que isto tudo nos leva? Bom,
simplesmente a isto: aplicando a fórmula acima e considerando que se mantém o
mesmo índice de sustentabilidade que em 2010, a idade de reforma deverá
ultrapassar os 70 anos em 2050, chegando mesmo em vários países a ultrapassar
os 75 anos (!) conforme a seguinte tabela ([7]):
Idade de reforma em 2050 de forma a manter o mesmo
índice de sustentabilidade potencial de 2010:
Espanha
|
76,0
|
Holanda
|
75,5
|
Irlanda
|
75,0
|
Itália
|
74,7
|
Polónia
|
74,3
|
Alemanha
|
73,9
|
França
|
72,8
|
Hungria
|
72,1
|
Reino Unido
|
71,7
|
Suécia
|
71,3
|
Se usarmos os dados mais recentes, de 2012 ([8]),
a situação ainda se agrava mais para alguns países; por exemplo, para a Espanha,
em vez da idade de reforma de 76 anos para 2050, passa a ser de 77,8 anos!
Efectuámos os cálculos para Portugal e
mostramos abaixo as respectivas projecções da idade de reforma até 2100,
mantendo o índice de sustentabilidade potencial de 2010. Para 2050 obtém-se um
valor próximo do da Espanha (76,6 anos) e, continuando a assumir que as
principais tendências em que se baseiam as projecções se mantêm válidas, para
2100 a idade de reforma seria de 85 anos!
A evolução da idade de reforma em Portugal (em anos no
eixo vertical) que, segundo os cálculos da óptica capitalista, asseguraria o
mesmo índice de sustentabilidade potencial de 2010.
Parece-nos óbvio que idades como 85 ou 75 anos
são totalmente desadequadas para a manutenção de actividade laboral normal. O
argumento do aumento de esperança de vida não colhe: uma coisa é o aumento da
esperança de vida; outra, é a manutenção de condições físicas e psíquicas
adequadas à actividade laboral. Na nossa opinião, mesmo com aumento de esperança de vida, impor a manutenção
obrigatória de actividade laboral a partir dos 65 anos (ou próximo disso) é
mais que desadequado pelos motivos expostos: é também cruel. Por outro lado, a
desadequação e até a inoperância de tal «solução» pode ser vista de outra
perspectiva não menos dramática: aumentar o número de idosos amarrados a um
emprego, além de baixar a eficiência do trabalho e aumentar o rotineirismo,
condena as camadas jovens ao desemprego. Enfim, estamos perante uma dupla
crueldade!
* *
*
Como já dissemos, os cálculos baseiam-se nas
projecções demográficas que têm em conta o aumento da esperança de vida e a
diminuição da fertilidade, factores que não se crê virem a alterar as suas
tendências fundamentais. Entretanto, a situação real é bem pior do que a
descrita por este índice de sustentabilidade potencial, porque ninguém tem dúvidas que a manterem-se as
políticas neoliberais o desemprego e a baixa de salários terão um efeito
desastroso no índice de sustentabilidade
real, que toma em linha de conta a população de facto activa e não simplesmente os que têm idades entre 15 anos
e a idade de reforma.
Em suma, e por mais voltas que se dê ao
problema e mezinhas que se aconselhem: dentro
do sistema capitalista não há sequer solução para a sustentabilidade da vida
humana, no que concerne ao proporcionar de uma vida digna aos idosos.
(Note-se que não se trata aqui de uma posição
moralista. São os próprios factos materiais, objectivos, indesmentíveis, que
obrigam necessariamente o sistema capitalista a prosseguir na via imposta pela
fórmula acima. Por muito boa vontade e muito humanismo que possuam este ou
aquele capitalista individualmente.)
* *
*
Só um sistema socialista, com uma repartição
mais igualitária de rendimentos baseada no valor socializável do trabalho e não
na exploração económica privada dos trabalhadores, onde a parte das mais-valias
criadas pelo trabalho (que actualmente a classe capitalista consome e esbanja)
seriam totalmente aproveitadas para a
satisfação de necessidades sociais, pode resolver este problema. Um sistema de
transição para o socialismo, dotado de medidas sociais avançadas, poderá trazer
já um contributo considerável à resolução do problema.
No artigo de Eugénio Rosa já citado são
apresentados os valores que corresponderiam a aplicar uma taxa de 0,25% sobre
as transacções financeiras. O quantitativo total, em 2011, ascenderia a 3.000
milhões de euros, superior ao total pago em subsídios de desemprego (2.104
milhões) mas bastante inferior ao total de pensões (14.448 milhões). É uma
medida do tipo da «taxa Tobin» ([9]), aceitável pelo pensamento
social-democrata. Poderia contribuir a curto prazo para algum alívio mas não
modificaria substancialmente a situação a longo prazo (ver o que dissemos em http://revolucaoedemocracia.blogspot.pt/2013/09/desenvolvimento-sustentavel-iv-causa-da.html
). Mas mesmo esta moderadíssima medida não seria certamente aceite pelo actual
governo ou por um provável próximo governo do PS!
[1] Cai Fang (2010)
Demographic Transition, Demographic Dividend, and Lewis Turning Point im China.
China Economic Journal, vol.3, 2: 107-119.
[2] Michael Roberts
(2013) The global search for value: http://thenextrecession.wordpress.com/2013/07/30/the-global-search-for-value/
[3]
"Sustainability of pension systems in Europe – the demographic
challenge", Groupe Consultatif Actueriel Européen Position Paper, Julho
2012.
[4] Dados obtidos de
www.pordata.pt em 2013-08-10
[5] Pension Systems
in a Demographic Transition, Outubro de 2011, Allianz Global Investors.
[6] Eugénio Rosa,A
Protecção Social em Portugal e na U.E. e como Garantir a Sustentabilidade dos
Sistemas de Segurança Social e C.G.A., 28/2/2013 http://www.eugeniorosa.com/Sites/eugeniorosa.com/Documentos/2012/9-2013-Sustentabilidade-Seg-Social-C.pdf
[7] A tabela é de [3]
e os cálculos usam dados da «UN 2010
Population Projections, 2010 Revision».
[8] UN 2012
Population Projections, 2012 Revision – dados para a folha de cálculo "low
fertility": http://esa.un.org/unpd/wpp/Excel-Data/population.htm
[9] Ver http://en.wikipedia.org/wiki/Tobin_tax.
Pensamos que Eugénio Rosa tinha em mente as transacções financeiras a nível
interno de Portugal. De facto, uma taxa deste tipo para transacções financeiras
a nível europeu, de 0,1% para acções e obrigações e de 0,01% nos contratos de
derivativos foi aceite, em princípio,
por 11 Estados da UE em Janeiro de 2013. Outros Estados opuseram-se com toda a
firmeza. Resta ainda decidir os detalhes e se a legislação europeia permite tal
pecado contra o capitalismo.