domingo, 9 de junho de 2013

PIB: Portugal e os Outros (I)

O Produto Interno Bruto (PIB) é um indicador económico muito vulgarizado. Representa a soma (em valor monetário) de todos os bens e serviços ([1]) produzidos num dado país e num dado período de tempo, geralmente ano ou trimestre. Quanto maior o PIB maior o nível de «riqueza» produzida num país (embora a «riqueza» possa ser armamento!).
No presente artigo vamos usar o PIB para comparar países quanto ao seu desenvolvimento económico, isto é, a sua produção de «riqueza». Algumas surpresas irão surgir.
A comparação entre países usando o PIB, pressupõe dois cuidados: 1) em vez do PIB teremos de usar o PIB per capita (PIBpc), isto é, o valor do PIB dividido pela população do país, que representa, portanto, um PIB médio por habitante (também chamado rendimento médio); 2) o PIB terá de ser medido usando um valor monetário fictício que corresponda ao mesmo poder de compra nos países comparados, isto é um PIB medido em paridade de poder de compra (PPC).
O PIBpc permite, como dissemos, para comparar países de acordo com a riqueza média produzida. Não pode ser usado para avaliar o nível de bem-estar da respectiva população. Um mesmo valor médio do rendimento pode corresponder a distribuições de rendimentos muito distintas, logo a diferentes níveis de bem-estar (frequentemente, de mal-estar).
Existem muitos repositórios de dados do PIB a nível mundial disponíveis na Internet. Um deles, bastante completo e actualizado para o período de 1980 até à actualidade, é o do Banco Mundial (BM). Desprezando pequenos países com menos de 100 mil habitantes, vejamos o que nos dizem os dados do PIBpc para 2011 do BM. A tabela abaixo mostra os valores do PIBpc (anual) de 184 países, ordenados por ordem decrescente, medidos em PPC usando o dólar dos EUA (de facto, o dólar de 2005).

PIBpc em PPC (constant 2005 international $) de 184 países (todos com mais de 100 mil habitantes).
Os países são designados pelo código ISO. Valores por ordem decrescente.
QAT
77987
GNQ
31969
LTU
17839
CRI
10735
BIH
7607
MNG
4187
CMR
2083
RWA
1132
LUX
68294
JPN
30660
HUN
17294
MNE
10469
CHN
7418
IDN
4094
KHM
2083
GNB
1122
MAC
68066
FRA
29820
PRI
16300
BRA
10279
SUR
7378
WSM
3952
KIR
2063
NPL
1106
SGP
53591
BHS
28239
HRV
15969
LCA
10240
KSV
7279
VUT
3867
YEM
2060
SSD
1066
KWT
47935
BHR
28200
CHL
15251
CUB
10200
UKR
6365
COG
3850
SDN
2053
HTI
1034
NOR
46971
KOR
27541
LVA
14856
SRB
9833
SLV
6032
PHL
3638
TJK
2052
AFG
1006
BRN
45707
ITA
27093
RUS
14714
ZAF
9678
NAM
6005
CPV
3616
STP
1834
SLE
998
HKG
44640
ESP
26952
MYS
14174
GRD
9570
BLZ
5892
HND
3574
PRK
1800
GIN
993
USA
42486
ISR
26719
GAB
13998
MKD
9537
EGY
5547
IRQ
3412
SEN
1737
COM
980
ARE
42293
CYP
26046
PAN
13766
VCT
9462
SWZ
5345
NIC
3366
GHA
1652
ETH
979
CHE
39385
OMN
25330
TUR
13468
JAM
9100
JOR
5268
IND
3223
GMB
1597
MLI
964
NLD
37118
SVN
24957
URY
13315
PER
9037
AGO
5227
FSM
3013
CIV
1580
TGO
927
AUT
36119
NZL
24429
BLR
13191
AZE
8885
BTN
5162
VNM
3013
BGD
1569
MOZ
861
CAN
35715
CZE
24125
IRN
13100
COL
8860
ARM
5112
MDA
2975
KEN
1510
MDG
853
IRL
35439
MLT
23192
BWA
13021
DOM
8651
SYR
5100
UZB
2903
LSO
1493
MWI
789
SWE
35184
GRC
22308
LBN
12900
TKM
8319
LKA
4929
DJI
2700
ZMB
1431
CAF
715
AUS
34853
TTO
22142
MEX
12814
TUN
8227
PRY
4858
SLB
2581
BEN
1430
NER
642
DEU
34573
PRT
21466
MUS
12733
GUY
8000
GEO
4826
LAO
2464
MMR
1400
SOM
600
ISL
33514
SAU
21430
LBY
12066
ALB
7861
BOL
4503
PAK
2424
TMP
1393
BDI
533
BEL
33088
SVK
20917
BGR
11998
MDV
7834
MAR
4373
PNG
2363
TZA
1336
LBR
517
GBR
32809
ARG
18200
KAZ
11568
ECU
7655
GTM
4351
NGA
2237
TCD
1323
ERI
517
DNK
32602
EST
18130
VEN
11258
DZA
7643
TON
4315
MRT
2236
UGA
1188
ZWE
500
FIN
32019
POL
17938
ROM
11005
THA
7635
FJI
4201
KGZ
2121
BFA
1150
ZAR
329


A primeira coisa que salta à vista é a grande diferença entre o valor mais alto, do Qatar ¾ 77987$ anuais, ou seja, 6499$/mês, 214$/dia ¾, e o valor mais baixo, correspondente ao Zaire  ¾ 329$ anuais, ou seja, 27$/mês, 0,9$/dia (!), bem abaixo do limiar de pobreza extrema de 1,25$ por dia.
O PIBpc de Portugal situa-se 41.º lugar. Dos 27 países da UE Só 6 da Europa de Leste têm PIBpc abaixo do de Portugal: Eslováquia, Estónia, Polónia, Lituânia, Hungria e Letónia. Num próximo artigo iremos ver que, dada a desigualdade social em Portugal ser elevada, a imagem transmitida pelo PIBpc é ainda mais agravada no que se refere a Portugal…
Vejamos agora a distribuição dos valores do PIBpc da tabela acima. Essa distribuição é mostrada na figura abaixo em intervalos de 10.000$. (Daqui para diante omitimos a menção de que se trata de dólares de 2005 em PPC.)

Distribuição do número de países com PIBpc em sucessivos intervalos de 10.000 dólares.

A distribuição do PIBpc é, como se constata da figura, rapidamente decrescente, com muitos países com baixos valores do PIBpc e poucos com altos valores. Efectivamente, temos:

PIBpc
N.º de países
Países por ordem decrescente do PIB
Acima de 70.000$
1
Qatar
Entre 60.000$ e 70.000$
2
Luxemburgo, Macau (*)
Entre 50.000$ e 60.000$
1
Singapura
Entre 40.000$ e 50.000$
6
Kuwait, Noruega, Brunei, Hong-Kong (*), Estados Unidos, Emiratos Árabes Unidos
Entre 30.000$ e 40.000$
15
CHE, NLD, AUS, CAN, IRL, SWE,AUT, DEU, ISL, BEL, GBR, DNK, FIN, GNQ, JPN
Entre 20.000$ e 30.000$
18
FRA, BHS, BHR, KOR, ITA, ESP, ISR, CYP, OMN, SVN, NZL, CZE, MLT, GRC, TTO, PRT, SAU, SVK
Entre 10.000$ e 20.000$
31
ARG, EST, POL, LTU, HUN, PRI, HRV, CHL, LVA, RUS, MYS, GAB, PAN, TUR, URY, BLR, IRN, BWA, LBN, MEX, MUS, LBY, BGR, KAZ, VEN, ROM, CRI, MNE, BRA, LCA, CUB
Abaixo de 10.000$
110
(restantes países)

(*) Região autónoma da China

Nos lugares cimeiros da tabela estão o Qatar, Luxemburgo, Macau e Singapura. São todos países com um forte sector financeiro, usados como offshores. O Qatar extrai vultuosos rendimentos da exportação de petróleo e seus derivados. Macau extrai dinheiro de capitalistas e incautos nos casinos.
Na fatia de 40 a 50 mil dólares aparecem os EUA e países ricos em petróleo. A única excepção é Hong-Kong cujas fontes de rendimento são semelhantes às de Macau. Note-se que todos os países com PIBpc acima dos 40 mil dólares, com a excepção da Noruega e Luxemburgo, têm uma forte desigualdade social, em particular o Brunei e os EUA. A Noruega era em 2011 o país com menor desigualdade social em todo o mundo.
Na fatia de 30 a 40 mil dólares surgem os países economicamente fortes da Europa, juntamente com o Canadá, a Austrália, o Japão e… a Guiné Equatorial (GNQ)! Este último país é o único de África a constar nos lugares cimeiros do PIBpc e constitui uma excelente ilustração de como médias como o PIBpc podem ser enganadoras. De facto, a Guiné Equatorial é um dos países com maior desigualdade social não só de África mas de todo o mundo! Os enormes rendimentos provenientes do petróleo deste pequeno país (cerca de 1,7 milhões de habitantes) acabam por cair nos bolsos de muito poucos.
Portugal tem um PIBpc que cai na fatia dos 20 a 30 mil dólares. Nesta fatia encontramos vários países da Europa e alguns produtores de petróleo do Médio Oriente: Bahrein, Oman e Arábia Saudita.
Vários países da América Latina aparecem na fatia de 10 a 20 mil dólares: Argentina, Chile, Panamá, Uruguai, México, Venezuela, Costa Rica, Brasil, Santa Lucia e Cuba. Notar o caso de Cuba, país de escassos recursos naturais e de economia planificada, que acompanha de perto países com muito mais recursos como a Argentina, Chile e Venezuela. De destacar que a desigualdade social em Cuba é menor que a de todos os países da fatia de 10 a 20 mil dólares. Fazem também parte desta fatia vários países do Leste Europeu: Estónia, Polónia, Lituânia, Hungria, Croácia, Letónia, Rússia, Bielo-Rússia, Bulgária, Kazaquistão, Roménia e Montenegro.
A fatia de mais baixo PIBpc inclui 49 países de África (44,5%), 36 da Ásia (32,7%) incluindo a China e a Índia, 16 da América Latina (14,5%) e 9 da Europa: Sérvia, Macedónia, Albânia, Bósnia e Herzegovina, Kosovo, Ucrânia, Arménia, Geórgia e Moldávia.
*    *    *
Se multiplicarmos os valores do PIBpc pelo número de habitantes do respectivo país obtemos os valores do PIB. A soma dos PIB ¾ isto é, a menos de alguns pequenos países, o valor total do PIB, logo o total das riquezas produzidas no planeta Terra ¾ foi em 2011 de 69.800.116 milhões de dólares (69,8 triliões de dólares). Como a população total dos 184 países era em 2011 de 6.944.515.772 seres humanos ([2]), se houvesse uma distribuição igualitária de toda a riqueza produzida na Terra por todos os seres humanos, obteríamos um PIBpc médio de 69.800.116/6.944,5 = 10.051 $/ano, ou seja, 838 $/mês.
Note-se que estamos a falar em população e não em agregados familiares. Um agregado familiar constituído por um casal e uma criança auferiria 2.514 $/mês, com base dessa repartição igualitária do PIB total. Isto em qualquer país do mundo. Isto é, se considerarmos a repartição igualitária da riqueza entre países e, dentro de cada país, entre todos os seres humanos, obter-se-ia um nível de vida digno para todos os habitantes do planeta Terra.
Pode-se argumentar e com razão que a igualdade absoluta é utópica. Todavia, podemos perfeitamente relaxar a condição de igualdade absoluta e ainda obter um nível de vida digno; pelo menos, muitíssimo melhor do que o actual. Suponhamos um esquema redistributivo pelo qual os países com PIBpc maior que 14.400$ (1.200$/mês [3]) distribuíam o excedente do PIB (face àquele valor do PIBpc) pelos restantes países. Esse excedente seria de 21.547.328 milhões de dólares e reporta-se aos 53 países mais ricos da tabela acima (do Qatar à Rússia). Suponhamos ainda que a distribuição do excedente era feita proporcionalmente ao PIB de cada país (uma espécie de compensação por trocas comerciais injustas). Nestas condições o PIB total dos restantes 131 países subiria de 29.306.673 milhões de dólares para quase o dobro (50.854.000 milhões de dólares) com uma subida igualmente apreciável do PIBpc médio: de 5.207$ para 9035$. Eis o que aconteceria ao PIBpc de alguns países mais pobres:

País
PIBpc em 2011
PIBpc com distribuição de PIB de países ricos (valores de 2011)
Etiópia
979
1416
Moçambique
861
1245
Níger
642
929
Somália
600
868
Zimbabwe
500
723
Congo, Rep. Dem.
329
476


A melhoria de condições de vida é claramente significativa, mantendo-se embora a um nível baixo. Outros esquemas redistributivos podem ser imaginados com efeitos semelhantes.
Desfaz-se assim o mito, tantas vezes propalado, de que a pobreza é algo imposto por condições exógenas às condições sociais que imperam no planeta. Imposto, por exemplo, por uma escassez de bens. No que se refere à nutrição já muitos investigadores demonstraram que a produção de alimentos ao nível global de toda a Terra é mais que suficiente para não existirem os fenómenos de fome e subnutrição que permanecem no nosso planeta.
O problema da miséria, da vida sem satisfação de necessidades essenciais, não é um problema de escassez. É, sim, um problema de distribuição. Um problema de desigualdade entre países e de desigualdade social dentro de cada país (com este último problema implicando o anterior, [4]).

[1] Contando apenas bens e serviços finais, isto é, excluindo do PIB todos os bens intermediários; evita-se, assim, o problema da dupla contagem, de valores gerados na cadeia de produção aparecerem contados duas vezes no PIB.
[2] O leitor pode espantar-se, e com razão, com a precisão dos últimos dígitos. É claro que, pelo menos os três últimos dígitos, são imprecisos. O leitor poderá, assim, tomar a população total como valendo 6.944.516 milhares de pessoas. Valores como o PIB, população, etc., resultam de declarações de impostos, inquéritos (censos), etc., contendo, portanto, um certo erro. Esse erro pode ser pequeno (da ordem de 1 a 5%) para países desenvolvidos, ou bem maior para países pouco desenvolvidos. Neste último caso chega-se a utilizar modelos matemáticos para obter estimativas da demografia e de dados macroeconómicos.
[3] Em 2011 60% das famílias portuguesas auferiam um rendimento menor que 9.663 euros, o que convertido para dólares de 2005 corresponde a um valor bem inferior a 14.400$.
[4] Um acontecimento recorrente é o da ajuda alimentar (ou outra) de um país capitalista rico a outro pobre quase desaparecer sem deixar rasto (a não ser mais tarde no mercado negro). Sob pressão dos protestos populares fazem-se inquéritos que não conduzem a resultados práticos. Isto, mesmo quando os culpados, elementos da burguesia local do país pobre, são conhecidos. O espírito de «solidariedade de classe» entre as burguesias explica o fenómeno. É que não interessa à burguesia do país rico indispor a burguesia do país pobre; esta permanecer-lhe-á um cliente reconhecido, pronto a todos os jogos que interessam à burguesia do país rico. Este é um de muitos exemplos pelos quais a desigualdade social tende a reproduzir a desigualdade nacional e não o contrário (ver também o que dissemos no nosso artigo «Os 1% do topo» de Outubro de 2012).