5 – As «Classes Médias» e a Pequena Burguesia
Para além das duas principais classes do capitalismo no seu estado puro ¾ a burguesia e o proletariado que vimos no artigo anterior ¾, com funções do trabalho e do capital totalmente separadas, existem outros estratos sociais com mistura de funções de trabalho com funções do capital.
Por exemplo, a nível da pequena empresa capitalista, com um número reduzido de capitalistas (detentores de meios de produção, (2) ¾ ver numeração da definição do artigo anterior) podem estes (todos ou alguns) exercer funções de trabalhador para além das funções do capital (mistura de funções nos pontos (1 e 3)). O agregado destes agentes constitui a chamada antiga classe média e constitui uma parte da chamada pequena burguesia.
Note-se que na antiga classe média das empresas capitalistas são sempre as funções do capital as dominantes; dominam as funções do trabalho. Isto é assim porque a propriedade legal e real dos meios de produção é do(s) capitalista(s).
Por outro lado, em todos os sistemas sócios-económicos, incluindo o capitalismo, existe sempre um número considerável de produtores independentes quer de bens (camponeses que exploram individualmente ou familiarmente os seus terrenos, artesãos individuais, sapateiros, etc.) quer de serviços (agentes de profissões liberais que trabalham de forma independente, picheleiros, biscateiros, mulheres-a-dias, limpa-chaminés, etc.) que vendem directamente no mercado esses bens e serviços. Agregam-se à antiga classe média, logo à pequena burguesia, os produtores independentes de bens e serviços, detentores de meios de produção (2): o camponês que vive da venda dos seus produtos agrícolas, o médico que vive exclusivamente dos serviços que presta no seu consultório ou em serviço ambulatório, o advogado que presta serviços no seu escritório, o picheleiro que vai com os seus instrumentos de trabalho prestar serviço ao domicílio, etc.
Vejamos agora o caso da grande empresa capitalista, com uma estrutura burocrática hierarquizada de agentes com funções do capital. Neste caso, a função do capital é exercida não só pela classe capitalista (gestores) mas também por uma outra classe cujas características são: 1) é ao mesmo tempo exploradora (ou opressora) e explorada (ou oprimida); 2) não detém nem legalmente nem economicamente os meios de produção; 3) desempenha funções do trabalho e do capital. Designa-se esta classe por nova classe média e faz parte da pequena burguesia.
A nova classe média difere da antiga no seguinte aspecto: como não possui os meios de produção a sua função do capital não é dominante sobre a do trabalho, como acontecia com a antiga classe média. Este aspecto é importante para compreender a natureza desta classe, em particular o seu processo de proletarização.
A obra de G. Carchedi ([4]) aborda a remuneração da nova classe média, constituída por uma componente de rendimento (proveniente do lucro capitalista) e uma componente de salário (pagamento da capacidade de trabalho, (4)), numa situação de privilégio face aos trabalhadores. Naturalmente, a componente de rendimento tende a tornar-se mais importante com a prevalência da função do capital sobre a função do trabalho, reflectindo menos a instabilidade dos salários dos trabalhadores.
A dita obra analisa também o processo de contínua proletarização da nova classe média, devido à tendência constante de desvalorizar o trabalho executado por esta classe, acompanhando ao mesmo tempo a crescente complexidade da divisão social do trabalho que cria novas funções e novos estratos de trabalhadores especializados. Assim, enquanto uns se vão proletarizando outros vêm engrossar a pequena burguesia.
Vemos, assim, como a «classe média», a pequena burguesia abarca um conjunto diferenciado de situações: capitalista a título individual com funções de trabalho, camponês independente, a parte da nova classe média em vias de proletarização, quadros técnicos que vêm engrossar a nova classe média, etc. Frequentemente o termo «classe média» é usado de forma não rigorosa, sem qualquer consideração pela caracterização classista (posição face aos meios de produção, função na divisão social do trabalho, etc.), simplesmente como o conjunto dos que auferem um rendimento médio (ver n/ artigo «Direita e Esquerda» de 14/1). É claro que tal caracterização, embora possa servir em termos de análise de rendimento, é inoperacional do ponto de vista da caracterização política e ideológica desta classe.
Existem também situações de privilégio relativamente às chamadas aristocracias operárias. Contrariamente à nova classe média, cujo privilégio resulta de acumulação de funções de capital a funções de trabalho, a aristocracia operária refere-se àqueles que apesar de serem trabalhadores, não possuírem meios de produção e serem explorados ou oprimidos, desenvolverem um interesse pelo modo de produção capitalista. Tal acontece nomeadamente em empresas monopolistas produzindo para o mercado internacional; um exemplo é o da melhor remuneração de trabalhadores autóctones face aos alóctones (emigrantes). É o próprio desenvolvimento capitalista que estimula a constituição de aristocracias operárias, que não desenvolvem uma consciência proletária (defendem políticas reformistas, não revolucionárias) e se aliam à pequena burguesia.
6 – Os Sectores Estatais
Como se sabe, os gastos do Estado provêm dos impostos. Na repartição dos impostos é preciso ter em conta que, em qualquer formação sócio-económica, o Estado é sempre essencialmente o representante dos interesses da classe dominante. No caso dos países capitalistas o Estado representa os interesses da burguesia. Ora, no caso da burguesia, os impostos que esta paga não são mais do que parte das mais-valias (no caso de viver do trabalho produtivo) ou do trabalho não pago (no caso de viver do trabalho improdutivo) que é extraído aos trabalhadores. Outra parte dos impostos provém dos rendimentos do trabalho. Mas é a burguesia, como classe dominante do Estado, quem determina: a) o peso relativo da carga fiscal sobre trabalho e capital; b) quanto das mais-valias e trabalho não pago está disposta a injectar no Estado subtraindo-o à recapitalização, à acumulação capitalista, bem como aos seus gastos próprios.
Alguns benefícios que os trabalhadores recebem do Estado, como por exemplo as pensões da Segurança Social, recebem-nas porque descontaram dos seus rendimentos durante os anos em que trabalharam. Além disso, os trabalhadores só obtiveram esses benefícios do Estado (subsídio de desemprego, cuidados de saúde, pensões de reforma, férias pagas, etc.) depois de um longo período de lutas contra os representantes do capital.
As actividades económicas do Estado categorizam-se em dois grandes grupos:
1) Actividades capitalistas do Estado (ACE): correspondem ao que se costuma chamar empresas estatais (por exemplo, uma siderurgia estatal, empresas de produção de energia, empresas de transporte, etc.). São geridas numa óptica capitalista; o dinheiro é atribuído pelo Estado com o objectivo de gerar dinheiro através da extracção de mais-valias. (O facto de, na prática, algumas empresas estatais terem prejuízos em vez de lucros é aqui irrelevante. Também as empresas capitalistas privadas podem ter prejuízos.)
2) Actividades não capitalistas do Estado (ANCE): correspondem às instituições subsidiadas pelo Estado para a satisfação de necessidades sociais (hospitais, escolas, etc.)
O sector ACE, do ponto de vista das relações de produção, é semelhante ao sector das empresas capitalistas privadas: ambos se comportam segundo as leis da competição e acumulação do capital, ambos geram mais-valias, ambos buscam maximizar lucros. A única diferença é que, em vez de a propriedade legal dos meios de produção ser dos accionistas, ela é agora do Estado, isto é, da burguesia como um todo. No sector ACE temos portanto as mesmas classes das empresas privadas: proletariado, nova classe média (pequena burguesia) e a burguesia que detém a propriedade real das empresas: os gestores. Duas observações:
a) No sector ACE podem também existir empresas que actuam no sector improdutivo da economia, como empresas comerciais do Estado ou instituições financeiras;
b) Mesmo que as empresas públicas dêem prejuízo em vez de lucro (o que também acontece com empresas privadas) os trabalhadores são sempre explorados ou oprimidos economicamente. Os proventos dos gestores não sofrem com os prejuízos.
Vejamos agora o sector ANCE, de que um exemplo é um hospital público. Um médico que trabalhe num hospital privado é um trabalhador (produtor de serviços de saúde) de uma empresa do sector improdutivo da economia. É oprimido economicamente a favor da burguesia (gestores) e da burguesia rentista (accionistas). No caso de trabalhar num hospital público a situação é semelhante. Embora ele não trabalhe para capitalistas, e portanto não seja estritamente válido classificar o trabalho como improdutivo, na prática ele trabalha numa estrutura dominada por processos de produção e relações capitalistas. Enfermeiros, médicos, professores e outros trabalhadores do sector ANCE podem, assim, considerar-se como trabalhadores improdutivos do Estado em instituições onde há uma burguesia (gestores) e, em muitos casos, uma nova classe média. É claro que muitos médicos e professores aspiram a ascender a cargos de proeminência, o que os motiva a orientarem-se politicamente para o campo da burguesia. (No caso dos professores tal não acontece, em geral, com professores do ensino primário ou secundário, mas acontece com frequência com professores universitários que vêm a ser gestores públicos ou privados.)
Existem também instituições do sector ANCE cujo trabalho improdutivo se destina a preservar a ordem social do Estado burguês (sistema judicial, polícia, forças militares, administração governamental e local), a manter e assegurar relações de propriedade privada (sistema judicial, polícia, instituições contabilísticas e de licenciamento, banco central, etc.) e a realizar operações financeiras (Bolsa, instituições de transacção de valores mobiliários, alfândegas, etc.).
7 – O Lumpen-proletariado
No sistema capitalista, como em outros sistemas sócio-económicos anteriores ao advento do capitalismo, existe um conjunto de indivíduos que vivem à margem da produção social; vivem de actividades marginais. Constituem o lumpen-proletariado (do alemão «lumpen» = «andrajo»), termo introduzido por Marx e Engels na obra «A Ideologia Alemã» (1845), reflectindo a ideia das actividades marginais em que caiem trabalhadores em situação de miséria extrema, tornando-se, por exemplo, ladrões e prostitutas. O conceito ganha precisão na obra de Marx «O 18 do Brumário de Luís Bonaparte» ([9]), onde é assim descrito (dois termos traduzidos e ênfase nossos):
«A pretexto de criar uma sociedade de beneficência, o lumpen-proletariado de Paris foi organizado em secções secretas, cada uma delas dirigida por um agente bonapartista, e sob a chefia de um general bonapartista. Lado a lado a roués [devassos] arruinados, com duvidosos meios de vida e de duvidosa procedência, junto a descendentes degenerados e aventureiros da burguesia, encontravam-se vagabundos, licenciados de tropa, ex-presidiários, fugitivos da prisão, saltimbancos, chantagistas, lazzaronis [ratoneiros], carteiristas, trapaceiros, jogadores, alcoviteiros, donos de bordéis, carregadores, escriturários, tocadores de realejo, trapeiros, amoladores de facas, soldadores, mendigos, em suma, toda uma massa informe, difusa e errante que os franceses chamam la bohème [a boémia]: com esses elementos, tão afins a ele, formou Bonaparte o corpo da Sociedade 10 de Dezembro.»
Leão Trotsky aprofundou o conceito ([10]) e, tal como Marx e outros autores posteriores, caracterizou o lumpen-proletariado como fácil de atrair às fileiras da reacção. Descreve assim a tomada de poder por Benito Mussolini na sua obra (não traduzida em português) «Fascismo: O que é e como combatê-lo» ([tradução nossa]): «Através da agência fascista o capitalismo põe em movimento as massas desesperadas da pequena burguesia e os bandos desclassificados e desmoralizados do lumpen-proletariado – todos os inumeráveis seres humanos a quem o capital financeiro conduziu ao desespero e frenesim». A marginalidade e desespero do lumpen-proletariado imprimem-lhe uma mentalidade mercenária ao serviço de um chefe da reacção.
A caracterização de Marx continua a ser usada pelos sociólogos actuais, marxistas ou não, que incluem no lumpen-proletariado todos aqueles que vivem fora do sistema salarial do trabalho embora dependam da economia formal para a sua existência. Para além dos citados exemplos, acrescentam: vigaristas, traficantes de droga, contrabandistas e gestores de apostas.
Atenção: nada tem a ver com o lumpen-proletariado a grande massa de trabalhadores desempregados, socialmente inseridos na busca de um trabalho e que mantém uma consciência proletária, combatendo ao lado dos trabalhadores activos pelas suas reivindicações sociais ([11]).
8 – Nota Final
A identificação (e caracterização) das classes do sistema capitalista, tal como expusemos, continua a ser seguida por sociólogos e estudiosos da economia política, marxistas e não marxistas. Novos contributos ao tema têm incidido mais sobre aspectos particulares da caracterização das sociedades capitalistas actuais, nomeadamente no que se refere a políticas de rendimento e à mobilidade entre classes. Quanto à identificação de outras classes, são escassas as tentativas nesse sentido, com exemplos de insucesso ([12]) e, menos frequentes, de sucesso ([13]).
[7] V. I. Lenin, "A Great Beginning. Heroism of the Workers in the Rear", Trabalhos Coligidos, 28/6/1919.
[8] F. Engels, "Princípios Básicos do Comunismo". Edições «Avante!».
[9] Kar Marx, "O 18 do Brumário de Louis Bonaparte", Editorial Centelha, 1975.
[11] Michael Lebowitz, What Makes the Working Class a Revolutionary Subject? (http://monthlyreview.org/2012/12/01/what-makes-the-working-class-a-revolutionary-subject)
[12] Um caso de insucesso é a proposta de uma exótica «classe ideológica» no trabalho de J.K. Lindsey, "The Conceptualization of Social Class", Studies in Political Economy, vol. 3, 17-36.
[13] Um caso de sucesso é a identificação e caracterização da lumpen-burguesia primeiro proposta no livro de A.G. Frank, "Lumpenbourgeoisie: lumpendevelopment; Dependence, class, and politics in Latin America", Monthly Review Press, 1972. A lumpen-burguesia é burguesia de países neocolonizados altamente dependente da burguesia do império e com comportamento criminoso. Um exemplo flagrante é o da burguesia colombiana enfeudada aos EUA que chacina o seu próprio povo recorrendo a forças paramilitares ¾ fora, portanto, do controlo do Estado ¾ e engajada em actividades criminosas de narcotráfico.