A Grande Recessão de 2007-2009 tem vindo a estimular estudos económicos sobre as causas das crises e, de uma forma geral, sobre o que determina os ciclos de expansão-recessão das economias capitalistas, os «ciclos de negócios». Já referimos em artigos anteriores que, para os marxistas, a causa principal dos ciclos tem a ver com a queda dos lucros dos capitalistas. Expusemos em termos simples, a propósito disso, a chamada lei da queda tendencial da taxa de lucro (ver nosso artigo «A Crise do Euro. Parte I») descoberta por Karl Marx.
Como se sabe, em Ciência não basta que uma teoria se apresente como internamente consistente. Exige-se que ela possa também explicar os factos, a evidência empírica. Ora, se em muitos ramos da Ciência é possível obter dados prontos a usar, ou realizar experiências adequadas que os produzam, este aspecto não é tão fácil em Economia, que depende obviamente da evolução histórica. Assim, Marx não dispunha no seu tempo de sequências históricas de valores económicos (séries temporais) que lhe permitissem avaliar adequadamente as suas teorias (embora procurasse fazê-lo com os dados de que dispunha). Só actualmente dispomos de dados (e instrumentos de análise desses dados) permitindo avaliar as teorias sobre as causas dos ciclos. Por exemplo, dispomos para os EUA (o país com mais bem validadas e mais longas séries de dados) de valores económicos, como por exemplo os lucros trimestrais das empresas, que vão desde 1947 até à actualidade.
Um trabalho recente de um economista investigador da Universidade de Michigan, José T. Granados ([1]), trouxe nova evidência a favor da teoria de Marx (e não só).
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No seu trabalho, José Granados começa por referir que, relativamente às causas dos ciclos económicos, as diversas escolas económicas se dividem em dois grandes grupos:
a) As que defendem que os ciclos têm causas exógenas, exteriores ao sistema económico.
b) As que defendem que os ciclos têm causas endógenas, internamente geradas pelo sistema económico.
As teorias defensoras de causas exógenas estão hoje largamente desacreditadas. Por exemplo, o economista W. S. Jevons procurou explicar a existência de ciclos, em artigos de 1875 a 1882, como sendo causados por variações climáticas, sendo estas, por sua vez originadas por manchas solares. Na mesma linha de raciocínio o economista H. L. Moore usou, em livros publicados entre 1914 e 1023, a explicação das variações climáticas, mas agora atribuídas ao planeta Vénus. E. Huntington, em 1920, propôs-se explicar as recessões como devidas ao aumento da taxa de mortalidade: o aumento da mortalidade causa tristeza, logo causa depressão nos negócios. Enfim, tudo explicações esotéricas que faziam da Economia uma autêntica astrologia.
Outras teorias mais recentes de causas exógenas invocam misteriosos choques externos (I. Adelman, F. Adelman, 1950), choques tecnológicos (Schumperer, Hayek), choques na oferta (para J. Hamilton, 1988, 1994, os choques na oferta tinham a ver com os preços do petróleo), etc. Os neoclássicos, incluindo os neoliberais, invocam também explicações casuísticas mal definidas, como mudanças demográficas, influências políticas e um rol de outras explicações enigmáticas como a «natureza humana» ([2]); como dizia Ben Bernanke, presidente da Reserva Federal dos EUA para «explicar» a Grande Recessão: «É a natureza humana, a não ser que alguém possa encontrar um meio de modificar a natureza humana iremos ter mais crises e nenhuma delas se assemelhará a esta, porque nenhuma crise tem qualquer coisa em comum com outra, excepto a natureza humana.». Um esclarecimento espantoso como se vê. Continuamos no domínio da astrologia.
Karl Marx foi o primeiro que apresentou uma teoria coerente que explicava os ciclos económicos por causas endógenas: a causa principal (a causa das causas) dos ciclos económicos é o volume de lucros, submetido à lei da queda tendencial da taxa de lucro. Como se sabe, o lucro é o móbil do capitalismo. Marx explicava os ciclos como uma alternância entre períodos de expansão, em que a introdução de novas indústrias favorece altas taxas de lucro, e períodos de recessão, em que a introdução de novas tecnologias, a fim de ganhar a luta competitiva, força os capitalistas a substituir homens por máquinas e outros equipamentos, diminuindo preços e baixando consumos, logo baixando também os lucros ([3]).
Não foi só Marx a propor o lucro ¾ mais propriamente, a rentabilidade ¾ como causa das causas das crises. O americano Wesley Mitchell (1874-1948), que escreveu uma obra sobre ciclos de negócios em 1913 (Business Cycles) e foi professor em várias universidades americanas e presidente do prestigiado NBER (National Bureau of Economic Analysis) também defendeu a tese de que era a rentabilidade a causa dos ciclos.
O polaco Michal Kalecki e o inglês John Maynard Keynes (que foi beber muitos dos seus argumentos a Kalecki) também propuseram (respectivamente em trabalhos de 1932 e 1936) uma teoria explicativa dos ciclos baseada em causas endógenas ([4]). Mas para eles a causa das causas é o investimento.
Diz Keynes (itálicos nossos): «[durante a expansão] muito do novo investimento mostrou uma rentabilidade não insatisfatória. A desilusão começa porque subitamente se levantam dúvidas sobre a confiança da rentabilidade prospectiva, talvez porque a rentabilidade corrente mostra sinais de decrescimento […]». Portanto, para os keynesianos é o investimento que controla os ciclos, não os lucros. E porque decresce o investimento? Porque «subitamente se levantam dúvidas». Temos, assim, os keynesianos a basear as suas explicações em causas subjectivas («dúvidas», «confiança»), não mensuráveis. De facto, mais apropriadamente se designaria de assentes em causas exógenas as explicações dos keynesianos. Note-se, porém, a frase «talvez porque a rentabilidade corrente mostra sinais de decrescimento». Portanto, Keynes não parece muito seguro sobre se é o investimento ou a rentabilidade a causa das causas. Esta falta de segurança não é inédita em Keynes, conhecido por constantemente desdizer o que tinha dito antes. O próprio Kalecki, num trabalho de 1933, veio desdizer o que tinha dito antes, apresentando a rentabilidade como a variável «que estimula o desejo de investir. Isto é inteiramente consistente com a realidade, já que o incentivo para investir é a rentabilidade esperada, a qual é estimada com base na rentabilidade das fábricas existentes».
Em suma: quem tem razão? Os marxistas, que explicam os ciclos económicos apresentando a rentabilidade como a causa das causas, ou os keynesianos que atribuem esse papel ao investimento?
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O trabalho de José Granados analisa as séries de valores trimestrais dos lucros e investimentos fixos (i.e., investimentos de capital fixo, excluindo portanto salários) das empresas dos EUA, desde 1947 até ao fim do 3.º trimestre de 2009 ([5]). Trata-se, portanto, de um período correspondente a 251 trimestres.
Durante este período ocorreram 11 recessões. Estas foram definidas por um organismo oficial dos EUA, o NBER (National Bureau of Economic Analysis), tendo em conta não só taxas de crescimento do PIB mas ainda outros factores como rendimento das famílias, emprego, produção industrial e volume de vendas. O início e o fim de cada recessão são também definidos pelo NBER.
Fig.1. Investimento e lucros das empresas nos EUA desde o 1.º trimestre de 2000 (2000-1) ao início do 1.º trimestre de 2010. As zonas cinzentas correspondem aos períodos recessivos.
A Figura 1 mostra a evolução dos investimentos fixos e lucros das empresas dos EUA, em biliões de dólares, desde o primeiro trimestre de 2001 até ao fim de 2009. As zonas marcadas a cinzento representam períodos de recessão. Como estamos a lidar com dados trimestrais, a recessão começa no trimestre que contém a data de início oficial (definida pelo NBER) e acaba no trimestre que contém a data de fim oficial (também definida pelo NBER). Note-se que a Figura 1 mostra os lucros antes e depois do pagamento de impostos ([6]). Como as conclusões do trabalho de José Granados são semelhantes quer se use a série «antes» quer a série «depois», vamos aqui considerar apenas a série «antes» que designamos por lucros tout court.
Os períodos de tempo entre recessões são designados por expansões. Nos 251 trimestres considerados no trabalho de José Granados, 201 correspondem a expansões e 50 a recessões. A Figura 1 mostra que antes do início da Grande Recessão (2007-4) o lucro já tinha vindo a decrescer, a partir de 2006-3 ¾ isto é, cerca de uma ano antes ¾, enquanto o investimento ainda não mostrava sinais de decrescimento; só veio a decrescer já em plena recessão. Algo de semelhante se verifica na recessão de 2001 a 2002.
Uma avaliação global, para os 251 trimestres, foi feita no trabalho que temos vindo a acompanhar da seguinte forma: calcularam-se taxas trimestrais de crescimento ([7]) e, a partir delas, calcularam-se valores médios das taxas, quer para o investimento quer para os lucros, em determinados trimestres antecedendo o início de uma recessão.
Fig. 2. Taxa média de crescimento trimestral de investimento e lucros em trimestres anteriores a uma qualquer recessão dos EUA.
A Figura 2 mostra os resultados obtidos. No eixo horizontal temos a contagem de trimestres antes de uma qualquer recessão (esta ocorre no trimestre 0, marcado pela barra cinzenta); o valor -1 corresponde ao trimestre anterior ao da recessão, -2 ao segundo trimestre anterior à recessão, etc. A figura mostra claramente que, 6 trimestres antes da recessão, os lucros em média têm um crescimento positivo. Passam, a seguir, a valores negativos; isto é, decrescem de trimestre para trimestre com excepção para o trimestre -2 (segundo trimestre antes da recessão) em que o crescimento médio é de apenas 0,2%. A taxa média de crescimento do investimento permanece, entretanto, positiva, embora menor. Tudo se passa como se a seguir ao primeiro alerta de descida dos lucros a taxa de crescimento do investimento descesse; isto a cinco trimestres antes da recessão. Entretanto, os lucros continuam a decrescer (com a ligeira retoma a 2 trimestres da recessão que se pode atribuir às primeiras vendas ao desbarato) para cair acentuadamente no trimestre anterior ao início da recessão: -1,9% de queda trimestral. Durante a recessão a queda é em média (agora a média refere-se aos trimestres da recessão) de -3,9%. Note-se que só a um trimestre da recessão o investimento decresce pela primeira vez (em termos médios), enquanto isso já vinha a acontecer aos lucros a 5 trimestres antes da recessão.
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Para além da inspecção visual de gráficos adequados, o trabalho de José Granados reporta e discute os resultados da aplicação de dois métodos científicos na análise das séries.
Num desses métodos tem-se em vista avaliar a capacidade de prever os valores presentes de uma das séries à custa de valores presentes e passados da outra série ([8]). Os resultados deste método, aplicado às séries de crescimento trimestral médio de lucro e investimento e para um número adequado de valores passados ([8]) mostram o seguinte: a) os lucros no trimestre presente e em cinco trimestres passados têm um efeito positivo e significativo na previsão do investimento, com 44% da variação do investimento explicável (previsível) pela variação dos lucros; b) o investimento, pelo contrário, tem menor poder explicativo dos lucros (31% em vez de 44%) com a agravante de que só o valor presente do investimento tem um efeito explicativo positivo, os valores passados têm um efeito negativo (têm o sinal contrário do que deviam ter).
O outro método consistiu na aplicação de testes de causalidade ([9]) às séries de lucro e investimento originais (e não às séries de crescimento trimestral médio). Os resultados mostraram que a hipótese do lucro não ajudar a prever o investimento é rejeitada com elevado nível de significância estatística ([10]), enquanto a hipótese do investimento não ajudar a prever o lucro falha várias vezes para um nível de significância moderado ([11]). Em suma, a hipótese de que os lucros causam os investimentos é fortemente suportada pelo teste de causalidade, enquanto o mesmo não acontece quanto à hipótese de os investimentos causarem os lucros.
O trabalho de José Granados contém ainda outros resultados e cita outros autores que em trabalhos dos anos noventa já defendiam que a rentabilidade era o determinante principal do investimento. Será que esta tese, primeiro defendida por Marx, é uma tese exótica que não lembra ao diabo? Certamente que não, e podemos estar seguros que nenhum capitalista se sentirá inclinado a investir num ramo de negócio que não esteja a dar lucros. Contudo Keynes, Milton Friedman e seguidores pura e simplesmente rejeitam a evidência empírica, mesmo quando cientificamente analisada, se essa evidência não lhes agrada. Já vimos isso nos nossos anteriores artigos «A Economia convencional: uma pseudociência»; o trabalho de José Granados revela outros aspectos deste tópico.
[1] José A. Tapia Granados. Does investment call the tune? Empirical evidence and endogenous theories of the business cycle. Artigo submetido em Maio de 2012 e a aparecer brevemente na revista Research in Political Economy.
[2] De facto, nenhuma luminária da economia convencional tem uma explicação credível dos ciclos porque (como já vimos em artigos anteriores) partem do pressuposto que o capitalismo é, por sua própria natureza, o melhor dos sistemas e um sistema estável.
[3] Estamos aqui a condensar em poucas palavras uma explicação que na sua forma completa é bem mais complexa. O leitor interessado pode recorrer à própria fonte (o vol. III de "O Capital", infelizmente não disponível em português), ao artigo de José Granados, ou a qualquer livro ou artigo da vasta bibliografia existente em inglês (e noutras línguas incluindo francês e espanhol, excepto português) sobre economia marxiana. Poderá ver também o que escrevemos em «A Crise do Euro. Parte I».
[4] M Kalecki, Is a capitalist overcoming of the crisis possible? (1932). J M Keynes, General theory of employment, interest and Money (1936).
[5] Estas séries estão disponíveis no portal do BEA - Bureau of Economic Analysis. Os investimentos privados fixos encontram-se na Tabela NIPA 5.3.5. Os lucros encontram-se na Tabela NIPA 6.16 e também na Tabela 1.12 (lucros com ajuste de excedentes (IVA = Inventory Adjustment) e de consumo de capital (CCAdj = Capital Consumption Adjustment). Todos os valores são em biliões de dólares e as séries sofreram um ajuste sazonal. (Muitas séries de dados económicos exibem flutuações sazonais; p. ex., é no período do Natal, logo no 4.º trimestre, que aumentam os consumos das famílias. Estas flutuações sazonais que tendem a mascarar o comportamento anual, são, em regra, retiradas das séries por processos matemáticos adequados, bem conhecidos dos economistas. O BEA faz isso mesmo.)
[6] A série de lucros referida na nota anterior é a série «antes». A série «depois» pode também obter-se usando a Tabela NIPA 1.12.
[7] A fim de obter uma valorização homogénea das taxas de crescimento, todos os valores das séries foram referidos a dólares de 2005, usando para tal as taxas de inflação.
[8] Trata-se do método da regressão linear, usando um critério adequado, baseado na Teoria da Informação, para determinar quantos valores passados da variável preditora usar (a chamada ordem do modelo).
[9] Trata-se dos testes Granger de causalidade, propostos na sua forma original pelo economista Clive Granger (Prémio Nobel da Economia). A série X causa Y se se puder provar com testes estatísticos adequados que valores passados de X fornecem informação estatisticamente significativa sobre Y, quando Y é também descrita pelos seus valores passados. No caso presente o teste de Granger reconheceu como importantes o uso de 9 valores passados da variável preditora, X.
[10] A hipótese é rejeitada para todos os 9 valores passados da variável preditora (o lucro) com probabilidade < 0,001 (1%o).
[11] Nos 9 valores passados do investimento a significância estatística foi bastante acima ou perto de 5% para 4 desses valores. Em outros 4 desses valores esteve acima de 1%. Só num dos valores a significância foi de 1%o.