segunda-feira, 4 de março de 2013

A Primavera Árabe. Parte IV (Líbia)

IV – Das Revoluções à Actualidade
(Ver Preâmbulo da Parte IV no artigo «A Primavera Árabe. Parte IV (Preâmbulo, Tunísia)»)

Líbia
Em 15 de Fevereiro de 2011 cerca de 500 pessoas manifestam-se em frente do quartel da polícia em Bengazi contra a prisão do activista pelos direitos humanos Fathi Terbil; são violentamente reprimidas pela polícia. Em Beida (Al-Bayda) e Zintan centenas de manifestantes pedem «o fim do regime». Era o início da revolução. Tal como na Tunísia e no Egipto, rapidamente largas massas populares se unem lutando pela liberdade, dignidade e emprego. Lutam sem medo, determinadas a alcançar os seus objectivos, mesmo à custa da própria vida.
A 16 de Fevereiro os manifestantes são dispersos por canhões de água. Nos confrontos com a polícia registam-se seis mortos. Ocorrem também protestos em Derna e Zintan. Em Tripoli têm lugar ajuntamentos de apoiantes de Kadafi.
17 de Fevereiro é conhecido como o «Dia da Revolta». A Conferência Nacional da Oposição Líbia, no exílio, tinha convocado todos os grupos oposicionistas para uma manifestação em Bengazi. A resposta do regime é da maior brutalidade: solta 30 presos de delito comum e arma-os para lutar contra os manifestantes; põe franco-atiradores e helicópteros a atirar a matar. Vários manifestantes são mortos. Cenas semelhantes têm lugar em Beida, Ajdabya e Derna, cidades próximas de Benghazi. Ocorrem também protestos em Tripoli e Zintan.
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Não foi por acaso que a insurreição começou em Bengazi e cidades adjacentes (Ajdabya, Beida, Derna, Tobruk, etc.). Trata-se da zona economicamente mais desenvolvida do país, a Cirenaica, que concentra cerca de 80% da riqueza do petróleo (ver figura 1). É servida por uma série de portos importantes, incluindo os de própria Bengazi e Tobruk. A maior parte das indústrias líbias ¾ processamento de alimentos (peixe, tâmaras, azeitonas, lã, carne), têxteis, cimento (grande fábrica de cimento de al-Hawari), materiais de construção ¾ concentram-se nesta região. A indústria do turismo também é aqui importante. Bengazi tem a Universidade mais antiga da Líbia. Muitos bancos e corporações estrangeiras têm a sua sede em Bengazi. Em suma, a região de Benghazi concentra grande parte da burguesia e da classe trabalhadora autóctones, bem como de estudantes e quadros técnicos. Tinha também tradições nos protestos contra o regime.
Em comparação com Benghazi, Tripoli, a capital, é fundamentalmente um centro financeiro, político e administrativo (funcionalismo público, em geral reconhecido a Kadadi, militares, forças de segurança) mais do que um centro industrial e comercial. Possui o maior porto offshore de petróleo da Líbia (El-Bouri) e um porto de carga e de navios de passageiros (incluindo turistas).


Fig. 1. Terminais e refinarias de petróleo e gás na Líbia (http://arthurzbygniew.blogspot.pt/2011/02/libya-oil-map.html).

A Conferência Nacional da Oposição Líbia colocou três objectivos da sua luta política: a) a destituição de Kadafi; b) a formação de um governo transitório formado por personalidades «dignas de crédito» por um período não excedendo um ano e com a missão de trazer o país a um regime constitucional; c) o estabelecimento de um estado democrático e constitucional, garantindo as liberdades fundamentais e os direitos humanos, um estado de direito com igualdade de oportunidades de todos os cidadãos sem qualquer forma de discriminação.
A revolução Líbia desenvolveu-se em várias fases, desembocando numa guerra civil. A coragem e heroísmo das forças populares (como já não se via desde as lutas de libertação da 2.ª guerra mundial) foram evidentes e amplamente exibidas em imagens na televisão. Dizer, como faz certa esquerda, que desde o início a revolução não foi mais do que uma agressão imperialista, é fechar os olhos à realidade. As agressões imperialistas caracterizam-se por serem movidas por mercenários e profissionais da guerra; caracterizam-se por serem acções cobardes, encobertas, e bastante seguras para quem as move: os que combatem ao serviço do imperialismo fazem-no por dinheiro, não por ideais; não estão, por isso mesmo, prontamente disponíveis para o sacrifício da própria vida. Actuam como vimos fazer aos mercenários chadianos na Líba, disparando do cimo de prédios ou a partir de helicópteros e aviões. É simplesmente contra a realidade e anti-histórico admitir que largas massas de população, representando várias camadas sociais (estudantes, quadros técnicos, trabalhadores) combatendo a pé, defendendo palmo a palmo o seu território, com armas de ocasião, disponíveis ao sacrifício da própria vida, estejam ao serviço do imperialismo.
A brutalidade do regime não conheceu limites e só veio a comparar-se, mais tarde, com a do regime sírio de Al-Assad: uso de aviação e tanques quer contra revoltosos armados quer contra civis desarmados, homens, mulheres e crianças; uso de franco-atiradores contra manifestantes; prisões indiscriminadas e torturas; liquidações sumárias de detidos e suspeitos, violações; etc., etc.
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A revolução e guerra civil desenrolaram-se em várias fases; registamos aqui apenas os factos essenciais ([1]).


Fig. 2. Mapa parcial da Líbia.

1 - Manifestações, insurreições e início da luta armada (15 de Fevereiro a 5 de Março)
Depois do «Dia da Revolta» de 17 de Fevereiro sucedem-se manifestações grandiosas por toda a Líbia. Milhares em Bengazi a 18, com adesão de alguns militares e tomada da rádio local. Também em Beida com captura da base aérea. Os protestos grandiosos continuam em Bengazi a 19; artilharia e helicópteros disparam sobre os manifestantes: 49 mortos. Protestos também em Tobruk e Misrata.
Em 20/2 os protestos aumentam. Em Bengazi são capturados quartéis; brigadas militares juntam-se aos protestos. Pela primeira vez membros do clero muçulmano de todas as partes da Líbia apelam ao fim do derramamento de sangue e à demissão do governo. Têm lugar alguns protestos em Tripoli. Engrossam para largas multidões durante a noite; franco-atiradores e apoiantes de Kadafi disparam sobre a multidão: 600 a 700 mortos. O filho de Kadafi, Saif al-Islam condena na televisão os «actos de sabotagem» de «agentes estrangeiros». Os revoltosos populares são sempre denominados de terroristas, bandidos, agitadores e agentes estrangeiros em todas as revoluções ou lutas de libertação. Já ninguém minimamente esclarecido acredita nestes impropérios; a não ser, pelos vistos, alguns ideólogos do PCP e de outros partidos comunistas estalinistas ([2]).
Em Bengazi os manifestantes controlam a cidade e apoderam-se de armamento. Em Tripoli continuam os protestos: 61 mortos. Navios de guerra bombardeiam zonas residenciais. O complexo de Kadafi é alvo de assalto de manifestantes: 80 mortos. A cidade de Ras-Lanuf é tomada pelos trabalhadores do centro petrolífero. Porta-vozes dos manifestantes declaram rejeitar qualquer intervenção estrangeira, nomeadamente da NATO.
A partir de 22/2 começam as deserções de altas figuras ligadas ao aparelho do regime (embaixadores, chefes de gabinete, etc.). Kadafi faz uma aparição na televisão onde chama aos manifestantes «cães loucos» e «drogados». Tais aparições irão repetir-se com um Kadafi cada vez mais desligado da realidade e em atitudes patéticas como aquela em que perante apoiantes na Praça Verde de Tripoli puxa do seu Livro Verde para encontrar argumentos contra os protestos. Entretanto, faz vir do Chade centenas de mercenários. Procura também alianças com os fundamentalistas islâmicos (com quem sempre manteve relações). A repressão brutal alastra e não poupa hospitais; em Tripoli os mercenários entram no hospital e matam vários feridos.
Abdul Younis, figura largamente comprometida com o regime (ex-ministro do interior) deserta: os ratos procuram abandonar o barco.
Em 23/2 a maior tribo da Líbia declara a sua oposição a Kadafi e apela a outras para se lhe juntarem. Manifestações insurreccionais sucedem-se por várias cidades do país, com cenas de brutalidade do regime e deserções de militares.
Em 27/2 é anunciado o Conselho Nacional de Transição (CNT) dos revoltosos.
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Os imperialistas ainda estão divididos sobre a posição a tomar. Sarkozy e Berlusconi apelam à não-violência e defendem uma solução negociada que mantenha o amigo Kadafi no poder. Obama pede a Kadafi que se demita para evitar nova violência. A ONU vota a 26/2 sanções contra as autoridades líbias e embargo de armas. Os imperialistas estão todos de acordo quanto ao embargo de armas aos rebeldes. Contudo, a 27/2, Hilary Clinton oferece «qualquer tipo de assistência» à oposição líbia; diz «oposição» e não «CNT» sobre o qual se mantêm dúvidas nas mentes imperialistas. O CNT rejeita negociar com Kadafi e declara que «nós [Benghazi] ajudaremos a libertar outras cidades líbias, em particular Tripoli, com o nosso exército nacional [entretanto formado] […] Nós estamos completamente contra qualquer intervenção estrangeira. O resto da Líbia será libertado pelo povo e as forças de segurança de Kadafi serão eliminadas pelo povo da Líbia».
A composição social do CNT é representativa da burguesia autóctone, de tendência democrática, constituída por académicos, quadros técnicos e homens de negócios. O presidente do Conselho, Mustafa Jalil, ex-ministro da Justiça, tinha tomado posições contra violações dos direitos humanos e, no papel de juiz, decisões contra o regime. Em 2010 quis demitir-se da televisão (a demissão não foi aceite) por estar contra a não libertação de presos políticos. Um telegrama diplomático dos EUA descreve-o como «aberto e cooperante» (WikiLeaks). O vice-presidente, Abdul Ghoga, era um juiz defensor dos direitos humanos; foi o advogado das famílias dos presos massacrados em 1996 na prisão de Abu Salim. Zubeir El-Sharif, representante dos presos políticos no CNT, conspirou contra Kadafi em 1970; foi preso e condenado à morte, sendo em 1988 sentenciado a mais 13 anos de prisão; esteve na solitária e foi frequentemente torturado; só foi solto em 2001, sendo o prisioneiro com mais anos de prisão da Líbia. Omar El-Hariri, representante militar, organizou em 1975 uma conspiração contra Kadafi; quando descoberta, esteve preso 15 anos sob pena de morte, quatro e meio em solitária; em 1990 passou ao regime de prisão domiciliária.
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Até 3 de Março de 2011 sucedem-se rebeliões noutras cidades (Misrata, Zawiya, Brega, Bishr, etc.) que conseguem repelir ataques governamentais. A 4 de Março as forças rebeldes iniciam a sua marcha para oeste a partir de Bengazi. Atingem e dominam Ras-Lanuf mas são obrigadas a parar antes de Sirte, importante centro petrolífero e praça-forte da tribo de Kadafi.
2 - A contra-ofensiva de Kadafi (6 de Março a 19 de Março)
A 6 de Março as forças governamentais iniciam o ataque a Misrata que não conseguem dominar. A 7, os tanques de Kadafi entram em Zawiya, mas falham a ocupação completa da cidade. Entretanto, Ras-Lanuf é atacada por aviões. A luta continuou de parte a parte com avanços e recuos. A 9 de Março o Conselho Europeu reconhece o CNT. A 10, Zawiya é tomada pelas tropas de Kadafi. O mesmo se passa a 11, com Ras-Lanuf.
A aviação e as brigadas de tanques permitem a Kadafi uma supremacia evidente sobre as forças rebeldes, apesar do seu heroísmo. Permitem também a Kadafi metralhar à vontade os ajuntamentos populares. A Liga Árabe coloca na ONU o pedido de imposição de interdição de espaço aéreo com vista a «proteger civis de ataques aéreos».
A 13 de Março as forças de Kadafi tomam Brega. Manifestantes anti-Kadafi são presos e torturados, uma cena que se irá repetir. Um coronel da força aérea deserta e junta-se aos rebeldes. Seguem-se, nos dias seguintes, outras deserções importantes.
A 15 de Março as forças de Kadafi atacam Ajdabiya que é ocupada a 17, depois de três horas de combates. A 16, a ONU apela ao cessar-fogo e estabelece o texto provisório de interdição de espaço aéreo. Em Misrata, cidade mártir, os rebeldes derrotam as forças atacantes. A ONU aprova uma resolução que autoriza estados membros «a tomar quaisquer medidas […] para proteger civis e áreas povoadas por civis sob ameaça de ataque […] excluindo força de ocupação» (Alemanha – país da NATO! –, Brasil, Índia, China e Rússia abstiveram-se). Começa, assim, a notar-se a aposta do imperialismo noutro interlocutor; é também sinal disso o fornecimento de armas aos rebeldes pelo Egipto, reportado pelo Wall Street Journal.
A 18 de Março o governo de Kadafi anuncia que aceita a resolução da ONU e que está a actuar no sentido de proteger os seus civis. Trata-se de uma cortina de fumo porque na noite de 18 tem lugar uma grande concentração de tropas governamentais perto de Bengazi, com uma frota naval a tomar Zuwetina a norte de Ajdabiya. Misrata está cercada e debaixo de fogo de artilharia. Zawiya é tomada. A 19, torna-se claro que está eminente o esmagamento dos rebeldes num banho de sangue. Uma força de tanques entra em Bengazi pelo sul e oeste, enquanto se sucedem os bombardeamentos por Mig-23. Zintan é bombardeada e as forças governamentais entram na cidade. Em Misrata o governo procede ao corte de electricidade, água e comunicações.
3 - Começo das operações da NATO (19 de Março a 5 de Abril)
As operações da NATO começam ao fim da tarde de 19 de Março: aviões franceses e italianos sobrevoam Bengazi e abatem alguns tanques. Forças britânicas e americanas bombardeiam com mísseis e aviões duas bases aéreas, ao mesmo tempo que forças navais bloqueiam a costa. Operações com aviões e mísseis prosseguem nos dias seguintes, destruindo tanques e carros blindados, bem como aviões. A 23 de Março a aviação líbia estava praticamente destruída. As operações da NATO continuam, contra posições de defesa antiaérea e brigadas de tanques.
As forças da coligação imperialista excedem claramente os termos da resolução da ONU, mostrando bem a hipocrisia da sua retórica «humanista». De facto, já com a força aérea de Kadafi destruída, sucedem-se as operações sem sentido, do tipo «vale tudo», com grande desprezo pelos civis que os imperialistas diziam querer proteger. Em Ajdabiya, 114 civis são mortos pelos bombardeamentos e 445 feridos. Fonte do Vaticano reporta que em Tripoli os ataques aéreos da coligação mataram 40 civis. Os desmandos da NATO com inúmeras vítimas civis continuam nos dias seguintes, com participação de aviões noruegueses, dinamarqueses, canadianos e… do Qatar! È como se todos aproveitassem a situação para treinar os seus «humanitários» militares no «tiro aos patos». Aproveitassem também para testar novas armas, como no ataque de dois RQ-1 Predator drones contra um lança-foguetes perto de Misrata. Enfim, a nojeira habitual das intervenções imperialistas.
A 5 de Abril a NATO dizia que um terço das capacidades militares do governo líbio tinham sido destruídas. Entretanto, vários países da NATO faziam chegar ajuda aos rebeldes em dinheiro, equipamento e peritos militares, e também em informação.
4 - Segundo avanço rebelde e impasse (20 de Março a 27 de Julho)
A 20 de Março de 2011 as forças rebeldes retomam a ofensiva, avançando para Ajdabyia. Os avanços prosseguem com apoio da NATO, que prossegue nas operações de destruição de casernas e depósitos de armamento (por vezes, imaginários). Contudo, é a infantaria rebelde, de soldados improvisados (muitos deles estudantes e desempregados), que se encarrega da tarefa última e árdua da derrota das forças governamentais. Estas detêm ainda um grande poder bélico, de soldados profissionais bem armados, e gozam de apoios importantes de certas tribos. Além disso, os desmandos da NATO serviram para Kadafi ganhar apoios, podendo apresentar-se como defensor do povo contra a ingerência militar estrangeira. Deve também ter-se em conta a magnitude do teatro de guerra, de 1800 km de extensão ao longo da costa, entrecortado por regiões desérticas e favorecendo ataques de surpresa de rotas vindas do sul.
Em 26 de Março é tomada Ajdabiya. Seguem-se Brega, Ras Lanuf e Bin Jawad. As forças de Kadafi continuam a lutar em Misrata com tanques, artilharia, morteiros e franco-atiradores; ocupam parte da cidade. Navios de guerra de Kadafi tomam o porto de Misrata.
A 29 de Março uma contra-ofensiva de Kadafi leva à retirada dos rebeldes de Ras-Lanuf e Brega. Mantém-se uma situação de impasse nesta região. No leste os rebeldes capturam Wazin a 28 de Abril, perto da fronteira com a Tunísia. No sudoeste apoderam-se de Al-Jawf e Kufra a 10 de Maio. Durante todo o mês de Maio as forças de Kadafi encarniçam-se contra Misrata que não cede; mérito dos seus defensores mais do que das forças da NATO.
A 27 de Maio ocorrem confrontos violentos entre manifestantes e forças de segurança em quatro áreas de Tripoli. A 29, desertam 120 soldados e oito oficiais que abandonam a Líbia. Nesse dia rebenta um protesto de 1000 pessoas no funeral de vítimas dos confrontos do dia 27; é disperso pela milícia de Kadafi que atira a matar: 2 mortos.
No início de Junho os rebeldes em Bengazi destroem uma quinta coluna de fiéis a Kadafi, incluindo a brigada Al-Nidaa.
A 11 de Junho, inicia-se uma série de pequenos sucessos das forças rebeldes: tomada de Zawiya a 11 de Junho; a 12, membros de uma tribo de Sabha revoltam-se contra Kadafi; a 13, forças de Kadafi são repelidas de Misrata; a 26, os rebeldes tomam a iniciativa nas montanhas Nafusa. A 14 de Julho, os rebeldes tomam al-Qawalish. No geral, porém, mantém-se uma situação de impasse o que leva alguns países da NATO a considerar que um Kadafi com poderes diminutos poderia continuar a governar o país!!! É um cenário rejeitado pelo CNT.
5 - Ofensiva final (28 de Julho a 20 de Outubro)
A 28 de Julho, com a tomada de Ayn al Ghazaya perto da fronteira tunisina, inicia-se a ofensiva final. A 1 de Agosto os rebeldes tomam Zliten; a 6, a cidade de Bir al-Ghanam; a 9, a maior parte de Taworgha é tomada por rebeldes de Misrata. As forças governamentais usam mísseis Scud disparados de Sirte contra posições rebeldes.
A 14 e 15 de Agosto os rebeldes tomam localidades próximas de Tripoli, preparando o seu cerco. A 19, tomam a refinaria de Zawiya. A 20, desencadeia-se uma insurreição geral em Tripoli, com o rápido controlo de várias partes da cidade. Insurreição também em Khoms. Em 22, os rebeldes ocupam a Praça Verde renomeada Praça dos Mártires. A 23, atacam o complexo militar e operacional de Kadafi, Baba al-Azizia, que é tomado à noite. São aprisionadas várias personagens importantes do regime.
Depois da tomada de Tripoli só a tomada de Sirte, praça-forte de Kadafi e da sua tribo, oferece dificuldades. Só se consuma a 20 de Outubro. Muamar Kadafi e outros são mortos pelos rebeldes quando tentavam fugir da cidade. O filho, Saif al-Islam, um dos mais fanáticos defensores do regime e líder da liberalização económica dos anos 90, é capturado a 19 de Novembro perto da fronteira com o Níger.
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Em Janeiro de 2012 Bengazi voltou a ser palco de protestos, Desta vez os manifestantes exigiam o pagamento de salários com o dinheiro do petróleo e a demissão de Abdul Ghoga acusado da lentidão em satisfazer os pedidos populares. Acabou por ser demitido. Os estudantes da Universidade de Bengazi e os trabalhadores do petróleo estiveram à frente das manifestações. Estes últimos fizeram greve para que fossem removidos do governo provisório figuras ligadas a Kadadfi.
Em 7 de Julho de 2012 realizaram-se eleições para a Assembleia Legislativa. Concorreram 21 partidos e 120 independentes. Na Líbia, durante o longo período de Kadafi não existiam partidos de esquerda e a situação continua. Os dois partidos mais votados foram um partido liberal e outro próximo da Irmandade Muçulmana. A Constituição irá a referendo em 2013. Certamente consagrará uma democracia parlamentar burguesa com ideias da Declaração Constitucional do NTC em Agosto de 2012, nomeadamente o multipartidarismo, o alinhamento da legislação com a Sharia, um estado de direito prevalecendo sobre lealdades tribais, não discriminação com base na religião, grupo étnico e sexo.
Em 11 de Setembro houve um ataque à embaixada dos EUA em Bengazi. Trata-se de uma provocação dos islamitas que custou a vida ao embaixador; revelou o New York Times que a seguir ao ataque os EUA evacuaram operativos e contratantes da CIA que operavam na embaixada.
Em 21 de Setembro uma milícia islamita reaccionária foi expelida de Bengazi, aos gritos de "Líbia, Líbia, Al Qaeda nunca mais!" e «O sangue que derramámos pela liberdade não será em vão!»
Em Novembro de 2012 os trabalhadores do petróleo de Bengazi exigiram medidas descentralizadoras na administração e repartição de benefícios da indústria do petróleo ([3]). Sentiam-se marginalizados por Tripoli e queixavam-se de falta de transparência. Os trabalhadores começam a mostrar que querem ser actores activos na indústria do petróleo.
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O novo amigo de Sarkozy: Mamud Jibril, primeiro ministro provisório de Março a Outubro de 2011 e presidente do partido vencedor das eleições de 7 de Julho de 2012 (Aliança das Forças Nacionais).

Que ganhou o imperialismo com a revolução e guerra civil na Líbia? Para já, nada de substantivo. Tinha como aliado o ditador Kadafi e agora tem como aliado um governo democrático burguês, tão subserviente como Kadafi aos interesses do imperialismo. Tão desejoso como o anterior de fornecer o petróleo nas condições impostas pelas multinacionais estrangeiras.
Os trabalhadores e o povo em geral, contudo, ganharam algo de importante: a possibilidade de conduzirem em melhores condições a sua luta contra o desemprego e por um melhor nível de vida; melhores condições também para lutar contra as sobrevivências tribais e a opressão capitalista estrangeira, algo impossível de levar a cabo sob o regime de terror de Kadafi. As notícias de que dispomos parece apontarem para isso mesmo: um povo atento e mobilizado para que o sangue derramado não tenha sido em vão. Para os trabalhadores e classe operária da Líbia há, porém, ainda um longo caminho a percorrer: não têm partidos de esquerda que os defendam, não têm sindicatos, e permanecem atitudes de xenofobia e discriminação face aos seus irmãos de classe, os trabalhadores imigrantes (em geral, negros africanos) brutalmente explorados (por vezes num regime de quase escravatura) nos trabalhos mais humildes que lhes estão reservados: serviços de limpeza, trolhas, trabalhos agrícolas, empregados domésticos.

[1] A wikipedia, na versão inglesa, tem uma página sobre a cronologia dos acontecimentos muito exaustiva e bem documentada: Timeline of the Libyan Civil War.
[2] Um exemplo é o ideólogo do PCP Miguel Urbano Rodrigues, que diz assim num artigo intitulado «Líbia: O que os media escondem»: «Sabe-se hoje que nessas manifestações desempenhou um papel importante a chamada Frente Nacional para a Salvação da Líbia, organização financiada pela CIA.» Efectivamente, a Frente Nacional para a Salvação da Líbia (FNSL) foi financiada pela CIA. Contudo, o «dia da revolta» foi convocado pela Conferência Nacional para a Oposição da Líbia (CNOL) e não pela FNSL. A FNSL só por um breve período de tempo se juntou à CNOL (2005-2007) de que se separou por diferenças ideológicas. Por outro lado, acreditar que milhares de manifestantes, de todas as camadas sociais, com predominância dos mais desfavorecidos, por toda a Líbia, arriscariam a sua vida em manifestações e insurreições, apenas para servir os interesses da CIA, é pura cegueira política; é fechar os olhos à realidade. Além disso, quando rebentou a revolução, Kadafi era amigo do imperialismo, amigo em particular de Sarkozy e Berlusconi que procuraram uma solução que mantivesse Kadafi no poder.
[3] Libya oil workers vie for regional vs central control. Notícia da Reuters, 1 de Novembro de 2012.