sábado, 3 de fevereiro de 2018

Acerca de um artigo sobre vestuário e calçado

Num artigo anterior em que analisámos a produção em outsourcing – a actual fonte de super-exploração do trabalho usada pelos monopólios – referimos o caso de Portugal que «ainda produz em outsourcing bens de consumo como confecções e calçado, para grupos estrangeiros que exploram os nossos baixos salários e precariedade de emprego». Citámos, a esse respeito, um caso concreto da indústria de calçado.

Segundo os dados do Boletim da AICEP (Portugal Global n.º 90, Setembro 2016) -- que se baseia em dados do INE --, as indústrias de vestuário e calçado constituíram conjuntamente em 2015, o terceiro maior grupo exportador de bens, de entre 16 grupos: contribuiu com 9,6% do total de exportações de bens (4,8 mil milhões de euros de um total de 49,8 mil milhões de euros).

O grupo «vestuário e calçado» só foi suplantado nas exportações de bens pelo grupo «máquinas e aparelhos» (14,6%) e «veículos e outros materiais de transporte (11,4%).

As indústrias de vestuário e calçado são de trabalho intensivo. Segundo um estudo, empregavam em 2015 cerca de 115,9 mil trabalhadores; ou seja, cerca de 15% do total de trabalhadores empregados em 2015 nas indústrias trabalhadoras. (Nestas, há outras também de trabalho intensivo: «madeira e cortiça», «peles e couros», etc.)

O JN de hoje, 3 de Fevereiro, publicou um interessante artigo de opinião da autoria de Óscar Afonso, Presidente do OBEGEF-Observatório de Economia e Gestão de Fraude. Intitulado «Vestuário e calçado: nova crise iminente?» o artigo, que assume uma posição pró-capitalista, alerta precisamente para algo que abordámos no artigo supra-citado e ouros: a vulnerabilidade da economia portuguesa que, para além de assentar quase exclusivamente nas exportações -- desprezando a produção para o mercado nacional que diminuiria as importações --, assenta em larga medida em exportações de baixo valor acrescentado proveniente de produção terceirizada («sub-contratada», como diz pudicamente Óscar Afonso) para monopólios estrangeiros que super-exploram os trabalhadores portugueses. Isto, até acharem preferível deslocalizar empresas para outros horizontes que permitem maior super-exploração do trabalho. Quando o autor diz no final «subsiste ainda um elevado número de empresas cuja competitividade depende do preço», deve entender-se: cujo lucro para o patrão estrangeiro, descontado o lucro para o subcontratado patrão português, ainda é atraente para ambos, dado o muito baixo “preço” e más condições do trabalho português.
Aqui deixamos ficar o artigo:


Vestuário e calçado: nova crise iminente?
Escrito por Óscar Afonso
Publicado pelo Jornal de Notícias em 3-Fev-2018 (acessível online)

Desde há alguns meses, em particular no pós-verão, muitas empresas dos setores industriais intensivos em trabalho do vestuário e do calçado, localizadas maioritariamente nos concelhos de Felgueiras, S. João da Madeira, Santo Tirso, Trofa e Vizela, enfrentam uma quebra muito acentuada de encomendas - sabe-se informalmente da deslocalização para países de mão de obra barata do Leste europeu e Norte de África.

Muitas das respetivas empresas já atribuíram as férias do ano aos seus trabalhadores. Há mesmo trabalhadores que já "devem" horas às empresas (horas em casa sem produzir, mas pagas). Com este "clima" instalado, os prejuízos e as dificuldades vão-se avolumando. A refletir este cenário está o recurso, por parte de algumas empresas, ao Programa Especial de Revitalização (PER), vocacionado para as empresas recuperáveis, mas em situação económica difícil; isto é, em insolvência iminente.

Apesar deste programa, se nos próximos meses persistir a situação de ausência de encomendas, iremos certamente assistir a uma maré de falências e de desemprego nos concelhos referidos. Trata-se de setores com empresas fortemente integradas em redes, que produzem em Portugal em subcontratação por marcas internacionais - a Inditex é o exemplo de referência, mas parece não ser o único.

Salientam-se ainda dois aspetos que poderão ser paradoxais face a esta realidade. Por um lado, o longo silêncio das respetivas associações empresariais. Será caso para questionar se se inibem de trazer notícias indesejadas por dependerem quase integralmente de fundos estatais e, portanto, do poder político para a sua existência. Por outro lado, as exportações podem continuar a crescer apesar desta situação. Observando os valores de janeiro a novembro de 2017 do Instituto Nacional de Estatística regista-se que a taxa de variação homóloga nominal foi de 3,3% no vestuário e de 3,5% no calçado. No entanto, e aqui é que está o problema, esse aumento das exportações está sustentado por importações, sendo a transformação local apenas marginal - acabamentos e embalagem! Efetivamente, naquele período, a taxa de variação das importações foi bem mais significativa, registando 5,5% no vestuário e 6,0% no calçado.

Apesar da fração de empresas que evoluíram substancialmente nas últimas décadas, em ambos os setores, com melhoria nas suas competências e nos modelos de negócio, subsiste ainda um elevado número de empresas cuja competitividade depende do preço.