A 24 de Maio p.p. a Assembleia da República (AR)
abriu concurso para a contratação de 23 Assessores Parlamentares com licenciatura em nove áreas distintas do
saber: 10 em Direito, 4 em Economia e Finanças, 1 em Arquivo, 1 em Relações
Internacionais, 1 em Relações Públicas, 2 em Redacção, 2 em Informática, 1 em Engenharia
Civil e 1 em Engenharia do Ambiente.
Mas a licenciatura
não podia ser uma qualquer. Conforme consta dos editais (http://www.parlamento.pt/GestaoAR/Paginas/RecrutamentodePessoal.aspx)
e foi noticiado pelo Jornal de Negócios (JNeg) e outros órgãos de comunicação
social, do concurso «são excluídos os candidatos que tenham uma licenciatura
concluída já depois de o Processo de Bolonha entrar em vigor, ou seja, a partir
do ano lectivo de 2008/2009». Isto é, o Parlamento não quer funcionários com as
licenciaturas de três anos do Convénio de Bolonha. Não quer o que aprovou! O
Estado Português, signatário do Processo de Bolonha, manifesta-se, assim, da
forma mais clara possível -- ao nível dos seus altos funcionários de assessoria
-- que está contra «Bolonha».
Qual a razão invocada para este estranho
comportamento? O JNeg questionou a AR que respondeu através do
secretário-geral: «A carreira de assessor parlamentar é uma carreira especial,
que requer elevadíssima exigência» e o Estatuto dos Funcionários Parlamentares
deixa explícito isso mesmo: uma licenciatura de Bolonha, de três anos, não chega.
São necessários os dois anos de mestrado.
Tendo a Universidade de Lisboa (UL)
considerado ilegal a distinção feita pela AR entre licenciaturas concluídas
antes e depois do Processo de Bolonha (santa ingenuidade!), apontando que na
Lei de Bases do Ensino Superior não é mencionada qualquer diferença de graus de
licenciatura (santa credulidade), recebeu em resposta do mesmo secretário-geral
da AR que o Estatuto dos Funcionários Parlamentares era «um estatuto especial
na Administração Pública», no qual «é exigida a titularidade da licenciatura
anterior ao Processo de Bolonha ou o 2.º ciclo de Bolonha [o grau de mestre]».
Este evento merece-nos vários comentários:
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O «Acordo de Bolonha» («Bolonha» para
simplificar) surgiu de um processo -- Bologna Process-the Lisbon Recognition
Convention -- liderado pelos países do Sul da UE, incluindo
a França, em 1999, e teleguiado pelos EUA (ver p. ex., EUA Involvement in the Bologna Process http://www.eua.be/bologna-universities-reform/)
inserindo-se na visão neoliberal de corte na educação pública e rápida passagem
de licienciados e mestres ao mercado de trabalho.
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Era então Ministro da Educação o lamentável PS Marçal Grilo, o tal que
descobriu que as escolas pertenciam a toda a gente menos aos professores. Foi
seguido, na mesma linha, por Júlio Pedrosa e, mais tarde, por Maria de Lurdes
Rodrigues, com uns PSDs pelo meio. Todos uns modernaços das pós-modernistas
«ciências da educação», que deram cabo da educação do País. O Crato também deu
cabo da educação mas numa perspectiva de direita, às claras. Isto é, não vestiu
roupagens pós-modernistas das «ciências da educação» de leve perfume de
«esquerda». Uma das grandes descobertas destas «ciências» é de que não é
preciso professores para ensinar os alunos. Fecham-se todos numa sala em
actividade de «projecto»; quando mais tarde se abre a porta saiem de lá uns
sabichões. Assim a modos da produção de ferro em fornos de aldeia nas célebres
comunas maoístas do «Grande Salto em Frente».
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Toda esta cáfila usou frases bonitas -- «equiparação de cursos», «mobilidade
estudantil», «racionalização de recursos», «rendibilidade do ensino» -- para
defender Bolonha. A equiparação de cursos nunca ofereceu dificuldade antes de
Bolonha, a mobilidade não exige Bolonha, a racionalização traduziu-se na
diminuição de verbas e cortes no pessoal, e quanto à «rendibilidade» consistiu
em aplicar critérios capitalistas ao ensino público: entra carne (alunos) e sai
salsichas (canudos), e é necessário que a máquina produza os canudos
rapidamente e na maior quantidade possível.
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Alguns docentes do Ensino Superior insurgiram-se logo contra Bolonha. Fizeram
de imediato notar que comprimir 7-8 anos de licenciatura+mestrado em 5 anos
iria ter inevitavelmente um impacto muito negativo na qualidade. Não serviu de
nada. Foram considerados os do «contra» do costume, os conservadores. A
acomodatícia maioria quase achava uma blasfémia criticar Bolonha.
(Incidentalmente, esta acomodatícia maioria nas Universidades está cada vez
mais cobarde, mais acéfala, sem espírito crítico, e subserviente do poder.
Note-se que apenas a UL protestou e em termos muito suaves. O CRUP também não achou nada para dizer.) A magna «luta» que
esta maioria desenvolveu foi em torno de saber se os 5 anos do Rossio posto na
Betesga deviam ser 3+2 ou 4+1. Correram rios de tinta e gastaram-se horas e
horas de reunião em torno desta magna questão. Com uns termos ianques de
permeio, de major e minor. (Se não fosse os ianques, será
que ainda saberíamos raciocinar?)
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Muitos docentes prestigiados de Universidades estrangeiras também se insurgiram
contra Bolonha, como p. ex. Chris Lorenz da Universidade de Amsterdão em
2010 (http://en.wikipedia.org/wiki/Bologna_Process#cite_note-9
): «a ideia básica por trás dos planos educacionais da UE é económica: a ideia
básica é o alargamento da escala dos sistemas Europeus de educação superior
[...] de forma a aumentar a sua “competitividade” cortando os custos. Trata-se,
portanto, de uma estandardização Europeia dos “valores” [valores no sentido
mercantil, as salsichas] produzidos em cada um dos sistemas nacionais de
educação superior. [...] é óbvio que a visão económica sobre a educação
superior recentemente desenvolvida e formulada pelas Declarações da UE é
semelhante e compatível com a visão desenvolvida pela OMC e pelo GATS
[apêndices do FMI-BM]».
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A famosa «competitividade» traduziu-se no aumento do «exército» de licenciados,
mestres e doutores. Como acontece com todo o aumento de exército de trabalho,
tal traduziu-se no desemprego e consequente baixa de salários e emigração –
inevitáveis consequências do capitalismo. Enfim, traduziu-se na proletarização
de licenciados, mestres e doutores (embora os mesmos não tenham dado por isso,
mercê das suas ilusões elitistas).
Traduziu-se também
na proliferação de cursos e disciplinas ad-hoc,
a fim de justificar serviço docente e o não desemprego de docentes. Cursos e
disciplinas de duvidosa pertinência e qualidade. Como as famosas disciplinas de
empreendorismo, marketing, etc., em cursos de doutoramento (outra invenção).
Como se a palavra de ordem fosse transformar todos e quaisquer profissionais em
empresários! Portugal, um país só de empresários. Isto é o cúmulo da idiotia
mas há quem acredite nisto. E tenha cursos superiores. Até catedráticos
encontrámos que acreditam nisto!
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Várias Universidades prestigiadas da Europa também sentiram algum desconforto
com Bolonha. É o caso de Cambridge e Oxford. Vejamos, p. ex., o que diz Oxford
dobre este assunto (http://www.admin.ox.ac.uk/edc/qa/bologna/#d.en.40020,
2012): «[...] a Universidade identificou um certo número de áreas em que teme
um provável impacto negativo do Processo de Bolonha na cobertura educacional.
Entre elas a mais importante é a posição futura dos cursos de mestrado que são
tomados como primeiro grau pelos licenciados em Ciências e que, em Oxford,
conduzem a várias qualificações de mestrado (Química, Engenharia, Física, etc.)
[i.e., teme que, o que é com Bolonha,
não seja o que era]. A preocupação
principal da Universidade é assegurar a qualidade excepcional da cobertura
educacional com a sua não diminuição aos níveis de licenciatura e graduação
[mestrado, doutoramento] Por esta razão, está extremamente preocupada com as
implicações de um sistema de reconhecimento que se baseia em créditos [...] em
vez de resultados de aprendizagem». Exactamente. Bolonha preocupa-se com a
forma (o sistema de créditos) mas não com o conteúdo (a real qualidade do
ensino).
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E o que diz a Alemanha, o motor imperialista da UE? Bom, também não estava nada
satisfeita com Bolonha em 2012. E não era só a esquerda, era também a direita,
conforme dá conta o Der Spiegel (http://www.spiegel.de/international/germany/press-review-on-bologna-process-education-reforms-a-850185.html,
15/8/2012). Num artigo que faz o balanço de 10 anos de Bolonha, é dito: «Mas
muitos estudantes na Alemanha não gostam das reformas [...] Queixam-se que
muito material foi comprimido nos três anos de licenciatura [...] Alguns também
criticaram que o novo sistema foca demasiado a preparação para o trabalho em
vez de fornecer uma educação alargada.» Horst Hippler, presidente do
equivalente ao nosso CRUP, disse numa entrevista que «A actual abordagem de
apressar os jovens nos seus estudos para os passar para o trabalho, é errada
[...] As empresas querem contratar indivíduos bem preparados e não apenas
licenciados». Disse também que «o objectivo de facilitar aos estudantes o
estudo noutros países não foi alcançado. O novo Sistema Europeu de
Transferência e Acumulação de Créditos não tornou os cursos intercompatíveis e
a obtenção de créditos reconhecidos pode ser ainda difícil».
-- Os problemas da qualidade de ensino do Bolonha são
referidos por outros observadores. Por exemplo, em After Bologna was hijacked (http://empowereu.org/?portfolio=detail-with-big-images)
é apontado: «Como é que a Universidade de Munique sabe o que significa uma
graduação em ciência da Universidade de Pisa (quando um estudante desta Universidade
se candidata para a Universidade de Munique), se a duração do estudo, o
processo de acreditação e o controlo de qualidade tiverem primeiro de ser
averiguados? A Universidade de Munique terá primeiro que aplicar um teste GRE (Graduate Record Examination) em
Matemática de forma a estabelecer a dmissibilidade, e isso limitará a
mobilidade.» Em suma, teremos de regressar ao velho e provado método de
avaliação de equivalência.
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Uma última interrogação. Como será assegurada
no futuro a «elevadíssima exigência» da «carreira de assessor parlamentar»
quando todos os licenciados pré-Bolonha estiverem mortos ou aposentados? Bom,
parece-nos que só há duas hipóteses:
a) Só aceitam os mestres per Bolonha; isto é, com 5 anos de ensino superior. A licenciatura+mestrado
de Bolonha passaria a ser apenas uma nova e confusa designação da licenciarura
pré-Bolonha. O «mestrado» desapareceria do mapa tornando-se um termo sem significado
prático.
b) Só aceitam os licenciados per Bolonha, depois de um curso de formação,
de 2 ou 3 anos. Conclusão idêntica à anterior.
Pergunta: Para que
serviu/serve, então, Bolonha?
Resposta: Para
baixar a qualidade de ensino e incentivar o facilitismo, fabricando
licenciados, mestres e doutorados como quem fabrica salsichas. Para o grande
capital, Bolonha é sem dúvida interessante. Mantém um exército de desempregados
nas qualificações técnicas superiores, prontos a, em desespero, aceitar estágios
não pagos de formação (a favor do capital) e salários baixíssimos (ou emigrar).
Mantém também a espada de Dâmocles sobre a cabeça dos docentes universitários,
amarrando-os a um mesquinho papel de fabricantes de salsichas, de facilitadores
de passagem em todas as disciplinas, e sob a ameaça de poderem ser achados
redundantes por falta de serviço docente.