domingo, 7 de junho de 2015

Estado contra Bolonha

    A 24 de Maio p.p. a Assembleia da República (AR) abriu concurso para a contratação de 23 Assessores Parlamentares com licenciatura em nove áreas distintas do saber: 10 em Direito, 4 em Economia e Finanças, 1 em Arquivo, 1 em Relações Internacionais, 1 em Relações Públicas, 2 em Redacção, 2 em Informática, 1 em Engenharia Civil e 1 em Engenharia do Ambiente.
  Mas a licenciatura não podia ser uma qualquer. Conforme consta dos editais (http://www.parlamento.pt/GestaoAR/Paginas/RecrutamentodePessoal.aspx) e foi noticiado pelo Jornal de Negócios (JNeg) e outros órgãos de comunicação social, do concurso «são excluídos os candidatos que tenham uma licenciatura concluída já depois de o Processo de Bolonha entrar em vigor, ou seja, a partir do ano lectivo de 2008/2009». Isto é, o Parlamento não quer funcionários com as licenciaturas de três anos do Convénio de Bolonha. Não quer o que aprovou! O Estado Português, signatário do Processo de Bolonha, manifesta-se, assim, da forma mais clara possível -- ao nível dos seus altos funcionários de assessoria -- que está contra «Bolonha».
     Qual a razão invocada para este estranho comportamento? O JNeg questionou a AR que respondeu através do secretário-geral: «A carreira de assessor parlamentar é uma carreira especial, que requer elevadíssima exigência» e o Estatuto dos Funcionários Parlamentares deixa explícito isso mesmo: uma licenciatura de Bolonha, de três anos, não chega. São necessários os dois anos de mestrado.
    Tendo a Universidade de Lisboa (UL) considerado ilegal a distinção feita pela AR entre licenciaturas concluídas antes e depois do Processo de Bolonha (santa ingenuidade!), apontando que na Lei de Bases do Ensino Superior não é mencionada qualquer diferença de graus de licenciatura (santa credulidade), recebeu em resposta do mesmo secretário-geral da AR que o Estatuto dos Funcionários Parlamentares era «um estatuto especial na Administração Pública», no qual «é exigida a titularidade da licenciatura anterior ao Processo de Bolonha ou o 2.º ciclo de Bolonha [o grau de mestre]».
      Este evento merece-nos vários comentários:
    
-- O «Acordo de Bolonha»  («Bolonha» para simplificar) surgiu de um processo -- Bologna Process-the Lisbon Recognition Convention  -- liderado pelos países do Sul da UE, incluindo a França, em 1999, e teleguiado pelos EUA (ver p. ex., EUA Involvement in the Bologna Process http://www.eua.be/bologna-universities-reform/) inserindo-se na visão neoliberal de corte na educação pública e rápida passagem de licienciados e mestres ao mercado de trabalho.
    
-- Era então Ministro da Educação o lamentável PS Marçal Grilo, o tal que descobriu que as escolas pertenciam a toda a gente menos aos professores. Foi seguido, na mesma linha, por Júlio Pedrosa e, mais tarde, por Maria de Lurdes Rodrigues, com uns PSDs pelo meio. Todos uns modernaços das pós-modernistas «ciências da educação», que deram cabo da educação do País. O Crato também deu cabo da educação mas numa perspectiva de direita, às claras. Isto é, não vestiu roupagens pós-modernistas das «ciências da educação» de leve perfume de «esquerda». Uma das grandes descobertas destas «ciências» é de que não é preciso professores para ensinar os alunos. Fecham-se todos numa sala em actividade de «projecto»; quando mais tarde se abre a porta saiem de lá uns sabichões. Assim a modos da produção de ferro em fornos de aldeia nas célebres comunas maoístas do «Grande Salto em Frente».
    
-- Toda esta cáfila usou frases bonitas -- «equiparação de cursos», «mobilidade estudantil», «racionalização de recursos», «rendibilidade do ensino» -- para defender Bolonha. A equiparação de cursos nunca ofereceu dificuldade antes de Bolonha, a mobilidade não exige Bolonha, a racionalização traduziu-se na diminuição de verbas e cortes no pessoal, e quanto à «rendibilidade» consistiu em aplicar critérios capitalistas ao ensino público: entra carne (alunos) e sai salsichas (canudos), e é necessário que a máquina produza os canudos rapidamente e na maior quantidade possível.
    
-- Alguns docentes do Ensino Superior insurgiram-se logo contra Bolonha. Fizeram de imediato notar que comprimir 7-8 anos de licenciatura+mestrado em 5 anos iria ter inevitavelmente um impacto muito negativo na qualidade. Não serviu de nada. Foram considerados os do «contra» do costume, os conservadores. A acomodatícia maioria quase achava uma blasfémia criticar Bolonha. (Incidentalmente, esta acomodatícia maioria nas Universidades está cada vez mais cobarde, mais acéfala, sem espírito crítico, e subserviente do poder. Note-se que apenas a UL protestou e em termos muito suaves. O CRUP também não achou nada para dizer.) A magna «luta» que esta maioria desenvolveu foi em torno de saber se os 5 anos do Rossio posto na Betesga deviam ser 3+2 ou 4+1. Correram rios de tinta e gastaram-se horas e horas de reunião em torno desta magna questão. Com uns termos ianques de permeio, de major e minor. (Se não fosse os ianques, será que ainda saberíamos raciocinar?)
   
-- Muitos docentes prestigiados de Universidades estrangeiras também se insurgiram contra Bolonha, como p. ex. Chris Lorenz da Universidade de Amsterdão em 2010 (http://en.wikipedia.org/wiki/Bologna_Process#cite_note-9 ): «a ideia básica por trás dos planos educacionais da UE é económica: a ideia básica é o alargamento da escala dos sistemas Europeus de educação superior [...] de forma a aumentar a sua “competitividade” cortando os custos. Trata-se, portanto, de uma estandardização Europeia dos “valores” [valores no sentido mercantil, as salsichas] produzidos em cada um dos sistemas nacionais de educação superior. [...] é óbvio que a visão económica sobre a educação superior recentemente desenvolvida e formulada pelas Declarações da UE é semelhante e compatível com a visão desenvolvida pela OMC e pelo GATS [apêndices do FMI-BM]».
    
-- A famosa «competitividade» traduziu-se no aumento do «exército» de licenciados, mestres e doutores. Como acontece com todo o aumento de exército de trabalho, tal traduziu-se no desemprego e consequente baixa de salários e emigração – inevitáveis consequências do capitalismo. Enfim, traduziu-se na proletarização de licenciados, mestres e doutores (embora os mesmos não tenham dado por isso, mercê das suas ilusões elitistas).
Traduziu-se também na proliferação de cursos e disciplinas ad-hoc, a fim de justificar serviço docente e o não desemprego de docentes. Cursos e disciplinas de duvidosa pertinência e qualidade. Como as famosas disciplinas de empreendorismo, marketing, etc., em cursos de doutoramento (outra invenção). Como se a palavra de ordem fosse transformar todos e quaisquer profissionais em empresários! Portugal, um país só de empresários. Isto é o cúmulo da idiotia mas há quem acredite nisto. E tenha cursos superiores. Até catedráticos encontrámos que acreditam nisto!
    
-- Várias Universidades prestigiadas da Europa também sentiram algum desconforto com Bolonha. É o caso de Cambridge e Oxford. Vejamos, p. ex., o que diz Oxford dobre este assunto (http://www.admin.ox.ac.uk/edc/qa/bologna/#d.en.40020, 2012): «[...] a Universidade identificou um certo número de áreas em que teme um provável impacto negativo do Processo de Bolonha na cobertura educacional. Entre elas a mais importante é a posição futura dos cursos de mestrado que são tomados como primeiro grau pelos licenciados em Ciências e que, em Oxford, conduzem a várias qualificações de mestrado (Química, Engenharia, Física, etc.) [i.e., teme que, o que é com Bolonha, não seja o que era]. A preocupação principal da Universidade é assegurar a qualidade excepcional da cobertura educacional com a sua não diminuição aos níveis de licenciatura e graduação [mestrado, doutoramento] Por esta razão, está extremamente preocupada com as implicações de um sistema de reconhecimento que se baseia em créditos [...] em vez de resultados de aprendizagem». Exactamente. Bolonha preocupa-se com a forma (o sistema de créditos) mas não com o conteúdo (a real qualidade do ensino).
    
-- E o que diz a Alemanha, o motor imperialista da UE? Bom, também não estava nada satisfeita com Bolonha em 2012. E não era só a esquerda, era também a direita, conforme dá conta o Der Spiegel (http://www.spiegel.de/international/germany/press-review-on-bologna-process-education-reforms-a-850185.html, 15/8/2012). Num artigo que faz o balanço de 10 anos de Bolonha, é dito: «Mas muitos estudantes na Alemanha não gostam das reformas [...] Queixam-se que muito material foi comprimido nos três anos de licenciatura [...] Alguns também criticaram que o novo sistema foca demasiado a preparação para o trabalho em vez de fornecer uma educação alargada.» Horst Hippler, presidente do equivalente ao nosso CRUP, disse numa entrevista que «A actual abordagem de apressar os jovens nos seus estudos para os passar para o trabalho, é errada [...] As empresas querem contratar indivíduos bem preparados e não apenas licenciados». Disse também que «o objectivo de facilitar aos estudantes o estudo noutros países não foi alcançado. O novo Sistema Europeu de Transferência e Acumulação de Créditos não tornou os cursos intercompatíveis e a obtenção de créditos reconhecidos pode ser ainda difícil».
    
-- Os problemas da qualidade de ensino do Bolonha são referidos por outros observadores. Por exemplo, em After Bologna was hijacked (http://empowereu.org/?portfolio=detail-with-big-images) é apontado: «Como é que a Universidade de Munique sabe o que significa uma graduação em ciência da Universidade de Pisa (quando um estudante desta Universidade se candidata para a Universidade de Munique), se a duração do estudo, o processo de acreditação e o controlo de qualidade tiverem primeiro de ser averiguados? A Universidade de Munique terá primeiro que aplicar um teste GRE (Graduate Record Examination) em Matemática de forma a estabelecer a dmissibilidade, e isso limitará a mobilidade.» Em suma, teremos de regressar ao velho e provado método de avaliação de equivalência.
    
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    Uma última interrogação. Como será assegurada no futuro a «elevadíssima exigência» da «carreira de assessor parlamentar» quando todos os licenciados pré-Bolonha estiverem mortos ou aposentados? Bom, parece-nos que só há duas hipóteses:
    
a) Só aceitam os mestres per Bolonha; isto é, com 5 anos de ensino superior. A licenciatura+mestrado de Bolonha passaria a ser apenas uma nova e confusa designação da licenciarura pré-Bolonha. O «mestrado» desapareceria do mapa tornando-se um termo sem significado prático.
b) Só aceitam os licenciados per Bolonha, depois de um curso de formação, de 2 ou 3 anos. Conclusão idêntica à anterior.
    
Pergunta: Para que serviu/serve, então, Bolonha?
    

Resposta: Para baixar a qualidade de ensino e incentivar o facilitismo, fabricando licenciados, mestres e doutorados como quem fabrica salsichas. Para o grande capital, Bolonha é sem dúvida interessante. Mantém um exército de desempregados nas qualificações técnicas superiores, prontos a, em desespero, aceitar estágios não pagos de formação (a favor do capital) e salários baixíssimos (ou emigrar). Mantém também a espada de Dâmocles sobre a cabeça dos docentes universitários, amarrando-os a um mesquinho papel de fabricantes de salsichas, de facilitadores de passagem em todas as disciplinas, e sob a ameaça de poderem ser achados redundantes por falta de serviço docente.