terça-feira, 23 de junho de 2015

A Revolução Portuguesa no WikiLeaks

    O portal da WikiLeaks (https://search.wikileaks.org/search?q=portugal) disponibiliza várias dezenas de documentos de grande interesse para a análise da Revolução Portuguesa. São quase todos do repositório designado por «telegramas de Kissinger» (Kissinger Cables), desclassificados em 2005-2006. Muitos deles têm os cabeçalhos originais, com o assunto, nível de confidencialidade – secreto, confidencial, uso oficial limitado –, o emissor e o(s) destinatário(s),  etc. (ver Nota.) Infelizmente, a muitos falta o texto e é patente (por faltas de telegramas referenciados) que muitos ou ainda não foram desclassificados ou não foram obtidos pelo WikiLeaks.
    Não se encontra na WikiLeaks um único telegrama sobre o envolvimento dos serviços secretos dos EUA nas iniciativas contra-revolucionárias: intentona do «28 de Setembro», putch do «11 de Março» e golpe do «25 de Novembro». È evidente que essas manobras passavam por canais próprios dos serviços secretos, fora dos canais diplomáticos Kissinger-Embaixadas dos EUA.
    Henry Kissinger foi o todo-poderoso Secretário de Estado de várias administrações estado-unidenses, em particular durante o período da Revolução Portuguesa, de 25/4/1974 a 25/11/1975. Kissinger era, de facto se não de jure, o controleiro-mor de todos os serviços secretos e de todas as iniciativas da política externa dos EUA, incluindo a missão dos EUA na NATO.
    Os «telegramas» dizem respeito a vários temas: 1) política interna de Portugal, 2) questões coloniais (auto-determinação das ex-colónias); 3) segurança da NATO; 4) adesão de Portugal à CEE; 5) relações com os países socialistas; 6) outros (pressões sobre a INTER, promessas de ajuda dos EUA, participação de Portugal na UNESCO, participação em cimeiras regionais, por exemplo, OEA, etc.). No presente artigo vamos focar unicamente as questões da política interna de Portugal, apresentando os «telegramas» pertinentes por ordem quase cronológica. (A consulta da WikiLeaks é de Janeiro de 2015).
    Muitos telegramas são longos. Removemos de vários deles segmentos de texto de nenhum ou reduzido interesse. Inserimos títulos e comentários mínimos (entre parênteses rectos). Todos eles confirmam o que já dissemos na nossa série de artigos «A história ignominiosa do PS». Trazem, contudo, novos elementos para reflexão.
    
1974
O primeiro telegrama disponível na WikiLeaks sobre o «25 de Abril» data de 3 de Maio de 1974.
    
3 de Maio de 1974
Uso oficial limitado | De: Missão dos EUA na NATO | Para: Kissinger, Embaixada dos EUA em Lisboa.

O representante permanente Português [na NATO] Nogueira anunciou formalmente  a 2 de Maio que a nova e proclamada Junta se comprometeu a respeitar os anteriores compromissos internacionais de Portugal, guiada pelos princípios de independência e igualdade entre Estados e não-interferência. Rumsfeld.
    
    Tudo normalíssimo. Parece que não houve revolução. O salazarento Franco Nogueira continua a representar Portugal na NATO e até a designação «Junta» se presta a equívocos. Equívocos, aliás, justificados. Dos 7 elementos da Junta 4 são de extrema-direita (Spínola, Galvão de Melo, Diogo Neto, Silvério Marques).
     São muito poucos os telegramas disponíveis de 1974 abordando questões de política interna. A esmagadora maioria trata das questões coloniais – revelando a grande inquietação dos EUA com o futuro regime político das colónias portuguesas, em particular de Angola – e a preocupação dos EUA, Canadá e países europeus com a segurança de programas da NATO, devido à presença de elementos do PCP nos governos de Portugal. A representação portuguesa na NATO foi excluída da participação nas reuniões do programa nuclear da NATO. Exclusão aceite por Costa Gomes e reportada nestes termos num telegrama de 7/11/1974: «Costa Gomes disse que retiraria Portugal do programa nuclear e de actividades relacionadas até o sistema de segurança de Portugal cumprir os padrões da NATO». Isto é, logo que os comunistas saiam do governo. Note-se a posição servil de Costa Gomes.
     Durante todo o ano de 1974 a impressão que se colhe da leitura dos telegramas é a de que os EUA pensam que o governo português que saiu de um «golpe» quer apenas resolver a questão colonial e orientar-se para um país capitalista «normal». Passou-lhes ao lado a componente revolucionária popular do processo.
Um telegrama de 1974 sobre Angola merece ser mencionado (apresentamos apenas alguns segmentos) porque ilustra a informação deficiente que o embaixador dos EUA, Scott, passava nessa altura aos seus superiores:
    
27 de Novembro de 1974
Secreto | De: Embaixada dos EUA em Lisboa | Para: Kissinger    
    
1. O "alvarez" de Bula [Bula Mandungu, o homem de Mobutu em Portugal e Angola] é sem dúvida o Major Victor Alves, que é, como o Major Melo Antunes, um ministro sem pasta, membro da Comissão Coordenadora do MFA e conselheiro de Estado. Alves, Antunes e o PM [Vasco] Gonçalves são em tudo os membros mais influentes do governo.[...] Antunes é geralmente considerado o mais esquerdista dos três. Se isto faz dele “orientado por Moscovo” pode depender do ponto de vista do observador. Ele evidencia claramente ser “orientado para o Terceiro Mundo” e parece partilhar a visão terceiro-mundista a favor do MPLA [...]
2. Depois do golpe, as opiniões sobre Victor Alves eram inicialmente confusas (o que se aplica praticamente a todos os desconhecidos homens do MFA), alguns chamando-o comunista, outros insistindo que ele era fascista. Agora é considerado um moderado dentro do MFA […] Alves, claro, opera dentro da orientação política geral do MFA que é claramente à esquerda do regime de Caetano [...] Não rejeitamos a possibilidade que a presente e aparente orientação do MFA possa ser o lobo comunista com pele de cordeiro. [...] Scott.
    
1975
   
Carlucci e Soares entram em cena
    
Durante todo o ano de 1974 foi embaixador dos EUA em Lisboa Stuart Nash Scott. Veio a ser despedido por não ter visto que estava em curso uma revolução. Foi substituído a 25/1/75 por Frank Carlucci, homem da CIA tarimbado no ex-Congo Belga, que iria tratar de esmagar a revolução. Há razões para crer que a sua vinda e o alerta dos EUA para o «perigo comunista» foram influenciados por Mário Soares, na altura ministro dos Negócios Estrangeiros. Veja-se o seguinte telegrama de uma semana antes da chegada de Carlucci a Lisboa:
      
19 de Janeiro de 1975
Assunto: SOARES VÊ A SITUAÇÃO CRÍTICA
Secreto | De: Embaixada dos EUA em Lisboa | Para: Kissinger
             
1. Dcm Okun e eu tivemos uma conversa  de duas horas com o ministro Soares a 18 de Janeiro. […] 2. Soares não perdeu tempo a dizer-nos como a situação actual da cena política doméstica lhe parecia crítica. Segundo Soares, a questão da lei da unicidade sindical escalou a situação de deterioração da coligação no governo 3.[...] segundo Soares, o MFA e os comunistas votarão em bloco a favor da lei e ela será aprovada. "perderemos", disse, "numa questão muito crítica" 4. Soares criticou acidamente a atitude do PM [Vasco] Gonçalves na reunião de 17 de Janeiro […] Quando apontou a Gonçalves que a lei de unicidade sindical não era necessária para filiação na OIT o PM descartou a questão dizendo que a OIT era uma "organização reaccionária." [Que de facto era e é. Basta aqui dizer que entre os dirigentes da OIT estão patrões!] […] Fiz notar a Soares  que a sua avaliação da situação actual da cena política portuguesa era bastante negra. Ele encolheu os ombros e fez notar o controlo comunista dos media e da estrutura organizativa dos sindicatos. […] O aspecto mais optimista da situação é que os socialistas finalmente acordaram para o facto de que o curso actual do governo português coloca uma ameaça real a eles como partido. Carlucci.
    
Apecie-se, agora, esta entrevista de Soares a um semanário monarquista espanhol:
    
11 de Fevereiro de 1975
Assunto: ATAQUE DE SOARES A CUNHAL
Uso oficial limitado | De: Embaixada dos EUA em Madrid  | Para: Kissinger, Embaixadas dos EUA em Lisboa, Bona, Londres, Paris, Missão dos EUA na NATO

1. A última edição da revista semanal "Blanco y Negro" (monarquista) traz uma entrevista com o ministro dos negócios estrangeiros e líder socialista Soares. Pontos salientes da entrevista: inquirido sobre uma afirmação anterior da possibilidade de guerra civil, Soares respondeu que tal posiibilidade era plausível se os socialistas abandonassem o governo e o deixassem nas mãos dos comunistas e dos militares; “por essa razão vamos permanecer no governo” [mais tarde abandonaram o governo; queriam guerra civil?] [...] (d) “o partido comunista não joga o jogo democrático e tem sob seu controlo exclusivo a rádio e a televisão. Estou desapontado. Álvaro Cunhal não joga limpo” [...]
    
O único telegrama sobre o «11 de Março»
    
11 de Março de 1975
Não classificado | De: Embaixada dos EUA em Madrid | Para: Kissinger, Embaixada dos EUA em Lisboa
    
[…] 2.O  Gen. Antonio Spinola acompanhado da mulher e de vários oficiais portugueses subordinados chegou à Base Aérea espanhola de Talavera esta tarde, onde foram “internados” pelas autoridades espanholas 3. Toda a fronteira espanhola-portuguesa foi fechada às 1800 horas de hoje por iniciativa das autoridades portuguesas. 4. O governo Espanhol emitiu um comunicado negando qualquer envolvimento na insurreição contra o governo português, reafirmando a sua adesão ao princípio de não intervenção.
    
Facetas do Senhor Carvalho
   
Várias passagens do telegrama abaixo indicam que «Carvalho» é Otelo Saraiva de Carvalho. Os estrangeiros referiam-no quase sempre por Carvalho ou Otelo de Carvalho. Repare-se na têmpera revolucionária do sujeito.
    
9 de Abril de 1975
Secreto | De: Embaixada dos EUA em Londres | Para: Kissinger, Embaixada dos EUA em Lisboa, Dep. Secretário Assistente Hartman em Lisboa, embaixador Carlucci
    
1. Elliott Roosevelt telefonou-me a 7 de Abril. 2. Ele chegou recentemente ao Reino Unido vindo de Portugal onde viveu e tem interesses de negócios. [...]. Relatou que o seu advogado lisboeta, Dr. Manuel Salema, que representa os interesses legais de Roosevelt em Portugal, lhe disse durante um almoço que Carvalho -- segundo Salema, um amigo pessoal próximo -- está ainda na defensiva acerca do incidente do golpe de 11 de Março, no qual ele [Carvalho] avisou o embaixador Carlucci que, pessoalmente, não poderia garantir-lhe a segurança. Segundo Salema, Carvalho vê com maus olhos as perspectivas a longo prazo de Portugal, é altamente critico da chefia do governo, e teme  que a situação possa degenerar num caos conducente ao domínio comunista do país. Salema descreveu Carvalho como ambicioso com um olho em ser primeiro-ministro. 2. Salema disse especificamente que Carvalho desejaria abrir um canal não-oficial com o governo dos EUA mas aparentemente sem especificar qual o objectivo de tal canal. [...]. 3. Roosevelt […] sugeriu que o embaixador [Carlucci] poderia considerar entrar em contacto com Salema, sem dar nas vistas, para ver exactamente o que ele tinha em vista e o que Carvalho pensava sobre um canal informal privilegiado ao governo dos EUA. Lewis disse que Salema é um membro de uma das mais importantes firmas judiciais de Liboa, a qual é dirigida por um certo Dr. Pereira que tinha ligações fortes ao anterior regime  e que vive agora na Suíça. Salema é considerado um anglófilo e socialista convicto mas não um comunista. […]
    
Repare-se nas seguintes facetas do Senhor Carvalho:
      «está ainda na defensiva acerca do incidente do golpe de 11 de Março». Confere com Otelo que não mexeu uma palha para travar o putsch e veiculou essa «defensiva», isto é, procurou, ainda que sem grande alarde, passar a mensagem do putsch como uma inventona comunista.
       «é altamente critico da chefia do governo». Confere com Otelo. Foi Otelo que demitiu e ostracizou Vasco Gonçalves.
       «teme  que a situação possa degenerar num caos conducente ao domínio comunista». Confere com Otelo, para quem o inimigo principal sempre foi o PCP.
        «Carvalho como ambicioso». Confere com Otelo, o auto-proclamado «Fidel da Europa».
       «com um olho em ser primeiro-ministro». Confere com Otelo, que se fez ao lugar depois da demissão de Vasco Gonçalves.
      O único aspecto novo neste telegrama e que clarifica a têmpera do «revolucionário» sempre pronto a traições é que «desejaria abrir um canal não-oficial com o governo dos EUA»!...
     
Imperiais Europeus: É preciso apoiar os moderados (leia-se, o PS)
     
20 de Maio de 1975
Secreto | De: Embaixada dos EUA em Londres | Para: Kissinger
     
Durante a minha conversa com o secretário dos negócios estrangeiros [Jim Callaghan] em 19 de Maio, ele falou de Portugal. […] Disse que francamente discordava da apreciação do secretário sobre a situação em Portugal e que, tal como outros líderes europeus, pessoalmente acreditava que Portugal não estava para além da salvação. Callaghan indicou que sentia convictamente que na cimeira da NATO o presidente e secretário não deviam deixar de passar algum tempo com a delegação  portuguesa [não esqueçamos que a delegação portuguesa foi escolhida por Soares] de forma a fortalecer as posições dos moderados de Lisboa. Hattersley, que estava presente, deixou saber que os países da CEE tinham-se mostrado entusiasmados em levar a cabo acções práticas  (p. ex., assistência económica, visitas, etc.) para apoiar as posições dos moderados em Portugal.
     
Mas os EUA têm pouca fé nas tácticas dos imperiais subalternos
     
22 de Maio de 1975
Secreto | De: Kissinger (em Ankara) | Para: Embaixada dos EUA em Londres
     
Se vir Callaghan antes dele prtir para a reunião em Paris apresente-lhe os seguintes pontos que também eu vou apresentar aqui a Hattersley: A. Os EUA não “desistiram” de Portugal. Simplesmente fazemos um análise da situação significativamente mais pessimística, a qual parece ser mais realista cada dia que passa. B. Não temos nenhuma intenção  de afrontar os líderes portugueses. Vi [Melo] Antunes em Bona e o presidente irá avistar-se com [Vasco] Gonçalves em Bruxelas. Expressar-lhes-emos as nossas preocupações com os desenvolvimentos internos de Potugal e mais partiularmente a nossa incompreensão de como a aliança NATO possa ter membros com políticas externas algures entre a da Jugoslávia e a da Argélia. C. Os europeus deviam pensar melhor sobre a sua tese de que ajudando um Portugal radical e “dispendendo mais tempo com” os seus líderes radicais irão de alguma forma fortalecer os moderados. Estamos a fazer ambas as coisas, mas dificilmente com a convicção de que o resultado ajudará os moderados; mais porque não conseguimos tirar os nossos amigos europeus das suas convicções. [...] Pergunto-me, [o que acontecerá] se Soares acabar por ser arriado e os europeus tentarem encontrar um outro escuro cavalo “moderado” até que a ala esquerda da ditadura neutralista apoiada pelos comunistas estiver instalada como um exemplo para outros da europa ocidental seguirem. [O mau exemplo de Portugal: uma constante dor de cabeça para os imperiais]
     
Mon ami Mitterand [Soares dixit] o «socialismo do Sul da Europa» e a liberdade dos patrões decidirem do que se deve noticiar
    
5 de Junho de 1975
Uso oficial limitado | De: Embaixada dos EUA em Paris | Para: Kissinger, info Embaixadas dos EUA em Londres, Bona
     
1. Mitterrand e o caso [do jornal] República. Em 29 de Maio o semanário do PS [francês] l’Unité publicou artigos condenando o apoio do PCF aos ataques do PCP às liberdades portuguesas. […] Vários quadros e jornalistas bem colocados do PS [francês] disseram à embaixada que o apoio de Mitterrand ao [jornal] República e aos socialistas portugueeses (PSP) resulta de três factores: -- o afecto e respeito pessoal de Mitterrand por Soares e o tipo de socialismo que este defende; -- o desejo de Mitterrand de novamente enfatizar até onde o socialismo do Sul da Europa pode e deve seguir um caminho de cooperação com os comunistas e simultaneamente servir de protector da democracia pluralista e civil – o desejo do PS [francês] de claramente apontar aos votantes fanceses a diferença de atitudes entre o PS e o PCF face às liberdades civis. [...]
     
De como a imprensa deve «esclarecer» as razões pelas quais os socialistas abandonaram o governo (IV Governo Provisório)
     
11 de Julho de 1975
Assunto: GUIÃO DE IMPRENSA SUGERIDO PARA 11 DE JULHO
Uso oficial limitado | De: Kissinger | Para: Secretário da delegação dos EUA, imediato
     
Recomendo que o porta-voz do departamento de imprensa responda como se segue, na sessão informativa de 11 de Julho, às questões que presumo serão colocadas sobre a saída dos socialistas do governo provisório português. – questão: o departamento [de Estado dos EUA] tem algum comentário a fazer sobre a saída dos socialistas do governo português? – resposta: consideramos isso uma mudança significativa da situação em Portugal. Tal como a entendemos, as razões que impeliram o partido socialista a abandonar o governo são razões graves. Tinham sido dadas garantias sobre o jornal “República” que não foram seguidas. Lembrar-se-ão que o Secretário [Kissinger] tinha expresso há algum tempo atrás a nossa preocupação sobre uma possível evolução não democrática dos acontecimentos em Portugal. Conforme mostraram as eleições de Abril, os socialistas são de longe o maior partido em Portugal. A sua saída do governo irá por isso causar apreensão e preocupação sobre o curso dos acontecimentos em Lisboa. Citado por Carlucci.
     
A independência do Algarve, Açores e Madeira e as estranhas atitudes da Espanha sobre o assunto
     
18 de Julho de 1975
Assunto: ACTIVIDADES DAS ORGANIZAÇÕES DE INDEPENDÊNCIA DOS AÇORES
Confidencial | De: Embaixada dos EUA em Madrid | Para: Kissinger, info Embaixada dos EUA em Lisboa
     
1. Um funcionário da Embaixada [dos EUA] recebeu a 11 de Julho um cidadão português que se identificou como tendo residido no Canadá e está agora a residir em Faro, Algarve, que é activo no movimento para a independência do Algarve. Esta fonte alegou que duas outras organizações de independência dos Açores e Madeira concluiram recentemente um acordo para trabalhar em conjunto com aquela a que ele pertence, e pressionar o governo português a reverter a sua política extremista. O objectivo anunciado da organização é a independência, mas o objectivo real, segundo a fonte, era meramente colocar pressão no governo português. O funcionário disse ao português que o governo dos EUA tem relações normais com o governo português e não podia ser envolvido nos assuntos internos portugueses. 2. O director para os assuntos da Europa Ocidental do Ministério dos Negócios Estrangeiros [espanhol] disse ao funcionário, a 14 de Julho, que a organização da independência dos Açores tinha contactado a Embaixada de Espanha em Washington. O embaixador espanhol em Washington recusou receber os representantes da organização mas autorizou um funcionário da Embaixada a encontrar-se com um representante dos Açores num restaurante em Washington. O director do Ministério dos Negócios Estrangeiros [espanhol] não acreditava que qualquer movimento no Algarve tivesse algum sucesso mas estava bem consciente que os açoreanos tinham um grupo numeroso e influente nos EUA. 3. A imprensa espanhola tem incluído vários relatos detalhados sobre distúrbios em Ponta Delgada. 4. Comentário: na medida em que o director do Ministério dos Negócios Estrangeiros [espanhol] levantou a questão sobre os Açores ao funcionário da embaixada [dos EUA], é possível que o director procurasse obter alguma indicação da atitude dos EUA sobre a situação dos Açores, pensando que qualquer mudança de estatuto das ilhas poderia afectar o curso das actuais conversações bilaterais EUA/Espanha. O funcionário da Embaixada disse-lhe que a posição dos EUA era neutral e que não tínhamos nenhum interesse em envolver-nos numa questão sobre a integridade de Portugal.
     
Três meses depois, quando a administração Ford já não punha de parte a independência dos Açores, a FLA sobe de tom, levando a questão à Missão dos EUA na ONU:
     
14 de Outubro de 1975
Assunto: PORTUGAL E OS AÇORES
Confidencial | De:  Missão dos EUA na ONU | Para: Kissinger | Distribuição Exclusiva de Goott para Lowenstein
     
1. A fonte que Lowenstein referiu a Goott na Missão dos EUA na ONU informou este último que Augusto Soares [chefe da FLA] tenciona telefonar a Laingen [...] A fonte considera Soares um jovem “brilhante, muito perceptivo e prometedor”. 2. […] Soares e colega relataram que o movimento de independência dos Açores está extremamente forte e confiante. Estão empenhados na política de emissão de uma declaração pedindo o direito de auto-determinação através de plebiscito aberto sob supervisão internacional [...] Originalmente tinham planeado contar com o apoio dos EUA, mas agora viram que os EUA não podem ter uma responsabilidade directa. Estão muito ansiosos sobre a garantia de que a política dos EUA estará completamente planeada e atenta em antecipação do evento, que poderá ocorrer a todo o momento. Sobretudo, desejam que os EUA desencoragem o governo de Lisboa de enviar cruzadores ou paraquedistas para a ilha e use a força para impedir o referendo. […] gostariam que nós estivéssemos preparados para dizer em Washington, Lisboa, Bruxelas e ONU, que o requisito de plebiscito parece razoável, ou não desrazoável, ou qualquer coisa de melhor se possível.
3. A fonte não faz outras recomendações específicas nesta altura, a não ser para que nós prestemos uma atenção cuidadosa à perspectiva da autodeterminação dos Açores e à sequente reacção dos EUA, e particularmente a desejável não utilização das bases militares dos EUA para os fins indicados acima.
     
Os imperiais subalternos usam a CSCE (Comissão para a Segurança e Cooperação na Europa) para admoestar a URSS
     
22 de Julho de 1975
Assunto: PORTUGAL E A CSCE
Secreto | De: Embaixada dos EUA em Londres | Para: Kissinger
     
Durante uma discussão geral com Jim Callaghan [ministro inglês dos negócios estrangeiros] num evento social deste fim-de-semana, este disse-me que tinha tido discussões com Giscard [PR francês] e Schmidt [Chanceler RFA] durante o Conselho de Chefes de Governo da CEE na última semana. Ambos, Giscard e Schmidt, disseram que planeavam aproveitar-se da oportunidade oferecida pela reunião de Helsinki [da CSCE] para dizer aos soviéticos que o apoio deles aos comunistas portugueses ia contra o espírito de détente e era inconsistente com a própria CSCE. Ele [Callaghan] pediu-me para lhe confidenciar isto. Richardson.
     
Uma arma imperial sempre de grande recurso: o Vaticano
     
21 de Agosto de 1975
Secreto | De: Kissinger | Para: Embaixada dos EUA em Roma, info imediata Embaixada dos EUA em Lisboa
     
Julgamos importante ter uma troca contínua de ideias com o Vaticano sobre a situação em Portugal. Solicito-lhe, portanto, marcar um encontro com o secretário de Estado Casaroli para uma troca de pontos de vista [...] Deverá inquirir qual é a percepção do Vaticano sobre Portugal e perguntar a Casaroli que papel a Igreja pensa desempenhar que contribua para uma evolução mais esperançosa em Portugal. [...].
     
27 de Agosto de 1975
Secreto | De: Kissinger | Para:           Secretário da Delegação dos EUA em Bruxelas

[…] Casaroli disse que o Vaticano partilhava das preocupações dos EUA com a evolução da situação política portuguesa. […] disse que o episcopado tem um poder potencialmente considerável mas que tem sido cuidadoso na forma de como o exerce por três razões: falta de organização ao nível político; receio de represálias da extrema-esquerda; auto-contenção, em geral, em actividades políticas directas. A Igreja portuguesa tem evitado publicamente uma associação com os partidos políticos existentes. [...] Tem também mantido contactos (não identificdos) com o MFA.  No Norte, disse, o papel da Igreja tem sido mais visível e mais directo. A este respeito citou o exemplo das actividades do arcebispo de Braga, [Francico Maria] da Silva [reaccionário, que recomendava publicamente aos cristãos votarem ou no CDS ou no PDC. Responsável moral pelos ataques bombistas e assassinatos coordenados pelo seu braço direito, cónego Melo], e disse que o arcebispo do Porto poderia provavelmente ser um mobilizador mais eficaz da opinião pública dado o seu passado como opositor de Salazar.
     
2 de Setembro de 1974
Secreto | De: Embaixada dos EUA em Roma | Para: Kissinger

[…] Como sugeriu na referência B [não encontrada] qualquer desenvolvimento específico da nossa iniciativa sobre Portugal deverá depender da resposta de Casaroli. O embaixador [dos EUA] Lodge poderá, porém, pronunciar-se sobre pontos da referência B durante a reunião planeada com Casaroli e o arcebispo Benelli, scretário de Estado adjunto [do Vaticano].
     
As manobras de Costa Gomes sobre desconsiderar ou não o documento COPCON e Programa do V Governo Provisório, em favor do Documento dos Nove. Isto é, sobre embarcar ou não no barco da contra-revolução.
     
25 de Agosto de 1975
Assunto: SUMÁRIO DE PORTUGAL ÀS 12:00 DE NOVA IORQUE, 25 DE AGOSTO
Secreto | De: Kissinger | Para: Secretário da Missão dos EUA na NATO imediato

A menos de um dia da emissão de um comunicado em seu nome, o presidente Costa Gomes autorizou um comunicado e desautorizou outro, que tinha sido interpretado como vitória do PM [Vasco] Gonçalves. Costa Gomes não negou a autoria do primeiro e ambíguo comunicado (tratado no sumário de 24 de Agosto, 13:00 horas NI), o qual o partido comunista, a imprensa e as organizaçõe sindicais rapidamente interpretaram como favoráveis aos seus pontos de vista. O segundo comunicado, emitido por Costa Gomes a 24 de Agosto, 22:00 tempo de Lisboa, pela pró-comunista quinta divisão das forças armadas, era uma exortação muito menos ambígua a: -- respeito pela Assembleia do MFA; -- unidade do MFA em torno do programa de acção política do COPCON e do programa do governo de Gonçalves em defesa da revolução, e rejeição do documento [Melo] Antunes; -- elaboração de uma proposta de aliança directa do MFA com o povo, e  -- decisão sobre o destino dos membros [dos Nove] suspensos do Conselho da Revolução (Antunes e companhia) pela Assembleia radical do MFA.
Costa Gomes declarou nulo e sem efeito o segundo comunicado porque tinha sido obtido e publicado sem o conhecimento do presidente. [...] É ainda muito cedo para dizer se, todavia, o segundo comunicado foi inventado pela quinta divisão, ou se Costa Gomes foi obrigado a recuar de afirmações que tinha autorizado. Tudo isto aponta para a dificuldade em confiar em Costa Gomes para forçar a saída de Gonçalves. De qualquer forma, os “moderados” estão conscientes da necessidade de se moverem depressa e dos riscos de dar muita confiança a Costa Gomes.
Há relatos de que uma unidade do exército leal a Gonçalves “se prepara para a luta” e que unidades opositoras do exército estão em manobras [...] Contudo, a embaixada em Lisboa frisou que a atmosfera geral na segunda-feira era a mesma – tensa mas calma [...] relatos de imprensa indicam que o almirante Vitor Cespo poderia ser o novo PM responsável pela economia num novo governo mais moderado [...]
     
Pressões («iniciativas»!) imperiais sobre Costa Gomes:
     
29 de Agosto de 1975
Assunto: INICIATIVAS A TOMAR COM COSTA GOMES
Secreto | De: Kissinger | Para: Embaixada dos EUA em Lisboa imediato, info Embaixadas dos EUA em Londres, Bona, imediato
     
[...] 1. Falei com o encarregado de negócios britânico Moreton sobre a prevista iniciativa deles sobre Costa Gomes. Disse que tínhamos sido informados de que esta iniciativa seria muito menos impositiva do que aquela que você [Carlucci] tinha apresentado. Disse-lhe que o nosso desejo de encorajar iniciativas impositivas dos europeus ocidentais foi reforçado, por informação recente e fiável, de que tinham tido um efeito útil sobre Costa Gomes, e que abordagens semelhantes dos britânicos e outros também teriam. Moreton disse que o embaixador Trent estava bastante hesitante sobre a utilidade de uma iniciativa tal como a que propusemos. Sugeri que Trent talvez quizesse entrar em contacto consigo para obter a sua apreciação mais actual da situação.
2. Também comuniquei aos alemães o nosso desapontamento com a falta de firmeza  [force] da iniciativa deles. Sugeri-lhes que talvez quizessem que o encarregado de negócios deles entrasse em contacto consigo, e tendo feito isso, pudessem então examinar se a abordagem deles poderia ser reforçada de forma útil. 3.Você talvez deseje passar aos colegas britânicos e alemães alguns dos aspectos específicos que o levaram a julgar ser útil aplicar nesta altura iniciativas vigorosas dos europeus ocidentais.
     
Os imperiais aborrecidos com um sucesso económico do governo de Vasco Gonçalves. Afinal, não há caos em «Lisboa».
     
3 de Outubro de 1975
Assunto: O DÉFICE MENSAL DA BALANÇA COMERCIAL DE PORTUGAL DECRESCE ACENTUADAMENTE
Uso oficial limitado | De: Embaixada dos EUA em Lisboa | Para: Kissinger, info Embaixadas dos EUA em Bona, Bruxelas, Copenhaga, Dublin, Londres, Luxemburgo, Madrid, Paris, Roma, e Haia, Missão da CEE em Bruxelas, Mssão dos EUA na OCDE em Paris, Missão dos EUA na NATO, Cônsul dos EUA no Porto [Ó da guarda, que o défice comercial de Portugal baixou!!!]
     
1. Dados apresentados ontem (2/10) pelo INE mostram que o nível do défice mensal da balança comercial de Portugal baixou drasticamente desde Maio. As importações (a preços ajustados) durante Janeiro-Abril 1975 totalizaram 36,2 biliões de escudos (27,24 escudos equivalem a um dólar EUA), um crescimento de 59% desde Janeiro-Abril 1974. O mais surpreendente é que caíram de 8,4 biliões para 4,9 biliões de escudos entre Abril e Julho de 1975. O último valor representa uma descida de 44% face às importações de Julho 1974. Logo, durante Janeiro-Julho 1975, elas alcançaram 51 biliões de escudos, ou seja um aumento de apenas 13% face a igual período de 1974.
2. As exportações (a preços ajustados) diminuiram um pouco, mas mantiveram-se bastante bem. Diminuiram de 4,5 biliões de escudos em Janeiro para 4,2 biliões em Julho, este último valor estando só ligeiramnte abaixo dos 4,5 biliões exportados em Julho 1974.
3. Este forte desvio no padrão commercial estreitou consideravelmente o défice. Eenquanto o défice no periodo Janeiro-Abril 1975 tinha alcançado 18,7 biliões de escudos, durante os três meses subsequentes cresceu apenas para 25,5 biliões. Em Julho, o défice totalizou 0,7 billiões de escudos comparados com os 5,1 em Janeiro 1974  e 4,0 billiões em Julho 1974. [negrito nosso]
4. As causas desta melhoria dramática são ainda incertas. É atribuída considerável importância ao aumento de taxas sobre as importações desde 1 de Maio, mas a causa principal é provavelmente a actual recessão. [...] 5. Em suma, a evolução das importações em Julho representam uma melhoria notável da balança comercial. É pouco provável, contudo, que o nível extremamente baixo das importações registado em Julho possa ser mantido até ao fim do ano. [...]
     
O que Carlucci não via ou não queria ver foi o aumento da produção de muitas pequenas empresas e da zona da Reforma Agrária para o mercado interno. Isto, juntamente com as restrições às importações de artigos de luxo, explica o «milagre». Uma lógica em tudo diferente da actual em que, apesar da recessão – que segundo Carlucci explicaria o «milagre»!!! -- o défice da balança comercial tem sempre aumentado e muito. Carlucci dizia «É pouco provável, contudo, que o nível extremamente baixo das importações registado em Julho possa ser mantido até ao fim do ano». Tinha razão. As coisas logo descambaram com o VI Governo Provisório do PS-PPD. Mais tarde, com o I Governo Constitucional do PS, o défice da balança comercial sofreu um aumento em flecha.
     
O golpe contra-revolucionário do 25 de Novembro
     
18 de Novembro de 1975
Assunto: A VISITA DE SPINOLA AOS EUA
Confidencial | De: Embaixada dos EUA em Madrid | Para: Kissinger imediato, info Embaixada dos EUA em Lisboa
     
1. A embaixada informou a 18/11 o director [do departamento] para os assuntos europeus do ministério dos negócios estrangeiros [espanhol] sobre a planeada visita de Spínola. O director apreciou a recepção da informação e a clarificação de que o ramo executivo dos EUA não estava de nenhuma forma envolvido na visita. O director disse que a visita era de todo indesejável nas actuais circunstâncias porque seria usada pelos elementos portugueses de esquerda para demonstrar que forças externas estavam ansiosas de desfazer os resultados revolucionários da insurreição militar do 25 de Abril. Do seu ponto de vista, a data da visita de Spínola não podia ter sido pior escolhida, por se seguir a um fim-de-semana em que as forças pró-Vasco Gonçalves estavam a concentrar-se para o assalto final ao governo de Azevedo.
2. O director informou a embaixada de que o ministério dos negócios estrangeiros [espanhol] tinha sabido que Vasco Gonçalves e o general Otelo de Carvalho tinham tido um encontro secreto em Beja, no Sábado de 15 de Novembro. Embora Carvalho tivesse sido gradualmente destituído de algum do seu poder, ele é ainda uma figura imensamente popular entre as massas e tem de se contar com isso, disse o director. […]
     
Note-se neste telegrama o tratamento de Otelo por «Otelo de Carvalho» e «Carvalho».
     
26 de Novembro de 1975
Assunto: POSSÍVEL GUIÃO DE IMPRENSA
Uso oficial limitado | De: Embaixada dos EUA em Lisboa | Para Kissinger
     
1. Se os desenvolvimentos correntes em Portugal forem levantados na conferência de imprensa hoje à noite, sugere-se o seguinte guião possível da imprensa para ser usado se perguntado, repito se perguntado: -- questão: o que está a contecer em Portugal? -- resposta: como todos sabem, pelos telegramas das agências noticiárias, parece que o governo teve sucesso no esmagamento de uma rebelião liderada por paraquedistas amotinados.  questão: isso foi um tentativa comunista de derrubar o governo? – resposta: penso que a situação ainda não é clara e preferiria não entrar para já nas motivações. – questão: mas esses paraquedistas eram de orientação radical, não eram? – resposta: basicamente, concordaria consigo. Mas os paraquedistas também tinham os seus problemas internos. – questão: os EUA tiveram alguma acção durante esta crise? – resposta: claro que seguimos a situação de perto. Mas, contudo, isto é um puro assunto interno português. – questão: houve americanos feridos? A nossa embixada foi atacada? – resposta: tanto quanto sabemos nenhuns americanos foram feridos. A embaixada está a trabalhar normalmente.
     
 Nas respostas sugeridas por Carlucci, para a conferência de imprensa da Secretaria de Estado Norte-Americana em Washington, é patente a preocupação em afastar, a nível internacional, qualquer suspeita de envolvimento dos EUA no 25 de Novembro. Embora se saiba sobejamente que tal envolvimento existiu, o que o próprio Carlucci mais tarde reconheceu.
     
Nota
Os telegramas usam muitas siglas o que pode dificultar a tarefa de decifração ao principiante. Aqui deixamos ficar o significado de algumas delas:
     
AMEMBASSY: American Embassy, Embaixada dos EUA
CONCEPTS: aspectos envolvidos
EMBOFF: Embassy Official, funcionário da embaixada
EXDIS: Exclusive Distribution, Distribuição Exclusiva
FM: From, De
GOP: Government of Portugal, Governo de Portugal
MFA: Ministry of Foreign Affairs, Ministério dos Negócios Estrangeiros
Atenção: não confundir com o nosso MFA, que em inglês é AFM (Armed Forces Movement)
MNUC: Military and Defense Affairs-Military Nuclear Applications (NATO), Assunto Militares e de Defesa - Aplicações Militares Nucleares (OTAN)
NPG: Nuclear Planning Group (NATO) Grupo de Planeamento Nuclear
PERMREP: Permanent Representative, Representante Permanente
PFOR: Political Affairs - Foreign Policy and Relations, Assuntos Políticos – Política e Relações Externas
PO - Portugal
REFTEL: Reference Telegram, Telegrama de Referência
SS, SECSTATE: Secretary of State, Secretário de Estado (equivalente a PM nos EUA)
USDEL: US Delegation in Brussels, Delegação dos EUA em Bruxelas

USMISSION: US Mission, Representação (Missão) dos EUA (p. ex., na NATO)

domingo, 7 de junho de 2015

Estado contra Bolonha

    A 24 de Maio p.p. a Assembleia da República (AR) abriu concurso para a contratação de 23 Assessores Parlamentares com licenciatura em nove áreas distintas do saber: 10 em Direito, 4 em Economia e Finanças, 1 em Arquivo, 1 em Relações Internacionais, 1 em Relações Públicas, 2 em Redacção, 2 em Informática, 1 em Engenharia Civil e 1 em Engenharia do Ambiente.
  Mas a licenciatura não podia ser uma qualquer. Conforme consta dos editais (http://www.parlamento.pt/GestaoAR/Paginas/RecrutamentodePessoal.aspx) e foi noticiado pelo Jornal de Negócios (JNeg) e outros órgãos de comunicação social, do concurso «são excluídos os candidatos que tenham uma licenciatura concluída já depois de o Processo de Bolonha entrar em vigor, ou seja, a partir do ano lectivo de 2008/2009». Isto é, o Parlamento não quer funcionários com as licenciaturas de três anos do Convénio de Bolonha. Não quer o que aprovou! O Estado Português, signatário do Processo de Bolonha, manifesta-se, assim, da forma mais clara possível -- ao nível dos seus altos funcionários de assessoria -- que está contra «Bolonha».
     Qual a razão invocada para este estranho comportamento? O JNeg questionou a AR que respondeu através do secretário-geral: «A carreira de assessor parlamentar é uma carreira especial, que requer elevadíssima exigência» e o Estatuto dos Funcionários Parlamentares deixa explícito isso mesmo: uma licenciatura de Bolonha, de três anos, não chega. São necessários os dois anos de mestrado.
    Tendo a Universidade de Lisboa (UL) considerado ilegal a distinção feita pela AR entre licenciaturas concluídas antes e depois do Processo de Bolonha (santa ingenuidade!), apontando que na Lei de Bases do Ensino Superior não é mencionada qualquer diferença de graus de licenciatura (santa credulidade), recebeu em resposta do mesmo secretário-geral da AR que o Estatuto dos Funcionários Parlamentares era «um estatuto especial na Administração Pública», no qual «é exigida a titularidade da licenciatura anterior ao Processo de Bolonha ou o 2.º ciclo de Bolonha [o grau de mestre]».
      Este evento merece-nos vários comentários:
    
-- O «Acordo de Bolonha»  («Bolonha» para simplificar) surgiu de um processo -- Bologna Process-the Lisbon Recognition Convention  -- liderado pelos países do Sul da UE, incluindo a França, em 1999, e teleguiado pelos EUA (ver p. ex., EUA Involvement in the Bologna Process http://www.eua.be/bologna-universities-reform/) inserindo-se na visão neoliberal de corte na educação pública e rápida passagem de licienciados e mestres ao mercado de trabalho.
    
-- Era então Ministro da Educação o lamentável PS Marçal Grilo, o tal que descobriu que as escolas pertenciam a toda a gente menos aos professores. Foi seguido, na mesma linha, por Júlio Pedrosa e, mais tarde, por Maria de Lurdes Rodrigues, com uns PSDs pelo meio. Todos uns modernaços das pós-modernistas «ciências da educação», que deram cabo da educação do País. O Crato também deu cabo da educação mas numa perspectiva de direita, às claras. Isto é, não vestiu roupagens pós-modernistas das «ciências da educação» de leve perfume de «esquerda». Uma das grandes descobertas destas «ciências» é de que não é preciso professores para ensinar os alunos. Fecham-se todos numa sala em actividade de «projecto»; quando mais tarde se abre a porta saiem de lá uns sabichões. Assim a modos da produção de ferro em fornos de aldeia nas célebres comunas maoístas do «Grande Salto em Frente».
    
-- Toda esta cáfila usou frases bonitas -- «equiparação de cursos», «mobilidade estudantil», «racionalização de recursos», «rendibilidade do ensino» -- para defender Bolonha. A equiparação de cursos nunca ofereceu dificuldade antes de Bolonha, a mobilidade não exige Bolonha, a racionalização traduziu-se na diminuição de verbas e cortes no pessoal, e quanto à «rendibilidade» consistiu em aplicar critérios capitalistas ao ensino público: entra carne (alunos) e sai salsichas (canudos), e é necessário que a máquina produza os canudos rapidamente e na maior quantidade possível.
    
-- Alguns docentes do Ensino Superior insurgiram-se logo contra Bolonha. Fizeram de imediato notar que comprimir 7-8 anos de licenciatura+mestrado em 5 anos iria ter inevitavelmente um impacto muito negativo na qualidade. Não serviu de nada. Foram considerados os do «contra» do costume, os conservadores. A acomodatícia maioria quase achava uma blasfémia criticar Bolonha. (Incidentalmente, esta acomodatícia maioria nas Universidades está cada vez mais cobarde, mais acéfala, sem espírito crítico, e subserviente do poder. Note-se que apenas a UL protestou e em termos muito suaves. O CRUP também não achou nada para dizer.) A magna «luta» que esta maioria desenvolveu foi em torno de saber se os 5 anos do Rossio posto na Betesga deviam ser 3+2 ou 4+1. Correram rios de tinta e gastaram-se horas e horas de reunião em torno desta magna questão. Com uns termos ianques de permeio, de major e minor. (Se não fosse os ianques, será que ainda saberíamos raciocinar?)
   
-- Muitos docentes prestigiados de Universidades estrangeiras também se insurgiram contra Bolonha, como p. ex. Chris Lorenz da Universidade de Amsterdão em 2010 (http://en.wikipedia.org/wiki/Bologna_Process#cite_note-9 ): «a ideia básica por trás dos planos educacionais da UE é económica: a ideia básica é o alargamento da escala dos sistemas Europeus de educação superior [...] de forma a aumentar a sua “competitividade” cortando os custos. Trata-se, portanto, de uma estandardização Europeia dos “valores” [valores no sentido mercantil, as salsichas] produzidos em cada um dos sistemas nacionais de educação superior. [...] é óbvio que a visão económica sobre a educação superior recentemente desenvolvida e formulada pelas Declarações da UE é semelhante e compatível com a visão desenvolvida pela OMC e pelo GATS [apêndices do FMI-BM]».
    
-- A famosa «competitividade» traduziu-se no aumento do «exército» de licenciados, mestres e doutores. Como acontece com todo o aumento de exército de trabalho, tal traduziu-se no desemprego e consequente baixa de salários e emigração – inevitáveis consequências do capitalismo. Enfim, traduziu-se na proletarização de licenciados, mestres e doutores (embora os mesmos não tenham dado por isso, mercê das suas ilusões elitistas).
Traduziu-se também na proliferação de cursos e disciplinas ad-hoc, a fim de justificar serviço docente e o não desemprego de docentes. Cursos e disciplinas de duvidosa pertinência e qualidade. Como as famosas disciplinas de empreendorismo, marketing, etc., em cursos de doutoramento (outra invenção). Como se a palavra de ordem fosse transformar todos e quaisquer profissionais em empresários! Portugal, um país só de empresários. Isto é o cúmulo da idiotia mas há quem acredite nisto. E tenha cursos superiores. Até catedráticos encontrámos que acreditam nisto!
    
-- Várias Universidades prestigiadas da Europa também sentiram algum desconforto com Bolonha. É o caso de Cambridge e Oxford. Vejamos, p. ex., o que diz Oxford dobre este assunto (http://www.admin.ox.ac.uk/edc/qa/bologna/#d.en.40020, 2012): «[...] a Universidade identificou um certo número de áreas em que teme um provável impacto negativo do Processo de Bolonha na cobertura educacional. Entre elas a mais importante é a posição futura dos cursos de mestrado que são tomados como primeiro grau pelos licenciados em Ciências e que, em Oxford, conduzem a várias qualificações de mestrado (Química, Engenharia, Física, etc.) [i.e., teme que, o que é com Bolonha, não seja o que era]. A preocupação principal da Universidade é assegurar a qualidade excepcional da cobertura educacional com a sua não diminuição aos níveis de licenciatura e graduação [mestrado, doutoramento] Por esta razão, está extremamente preocupada com as implicações de um sistema de reconhecimento que se baseia em créditos [...] em vez de resultados de aprendizagem». Exactamente. Bolonha preocupa-se com a forma (o sistema de créditos) mas não com o conteúdo (a real qualidade do ensino).
    
-- E o que diz a Alemanha, o motor imperialista da UE? Bom, também não estava nada satisfeita com Bolonha em 2012. E não era só a esquerda, era também a direita, conforme dá conta o Der Spiegel (http://www.spiegel.de/international/germany/press-review-on-bologna-process-education-reforms-a-850185.html, 15/8/2012). Num artigo que faz o balanço de 10 anos de Bolonha, é dito: «Mas muitos estudantes na Alemanha não gostam das reformas [...] Queixam-se que muito material foi comprimido nos três anos de licenciatura [...] Alguns também criticaram que o novo sistema foca demasiado a preparação para o trabalho em vez de fornecer uma educação alargada.» Horst Hippler, presidente do equivalente ao nosso CRUP, disse numa entrevista que «A actual abordagem de apressar os jovens nos seus estudos para os passar para o trabalho, é errada [...] As empresas querem contratar indivíduos bem preparados e não apenas licenciados». Disse também que «o objectivo de facilitar aos estudantes o estudo noutros países não foi alcançado. O novo Sistema Europeu de Transferência e Acumulação de Créditos não tornou os cursos intercompatíveis e a obtenção de créditos reconhecidos pode ser ainda difícil».
    
-- Os problemas da qualidade de ensino do Bolonha são referidos por outros observadores. Por exemplo, em After Bologna was hijacked (http://empowereu.org/?portfolio=detail-with-big-images) é apontado: «Como é que a Universidade de Munique sabe o que significa uma graduação em ciência da Universidade de Pisa (quando um estudante desta Universidade se candidata para a Universidade de Munique), se a duração do estudo, o processo de acreditação e o controlo de qualidade tiverem primeiro de ser averiguados? A Universidade de Munique terá primeiro que aplicar um teste GRE (Graduate Record Examination) em Matemática de forma a estabelecer a dmissibilidade, e isso limitará a mobilidade.» Em suma, teremos de regressar ao velho e provado método de avaliação de equivalência.
    
*    *    *
    Uma última interrogação. Como será assegurada no futuro a «elevadíssima exigência» da «carreira de assessor parlamentar» quando todos os licenciados pré-Bolonha estiverem mortos ou aposentados? Bom, parece-nos que só há duas hipóteses:
    
a) Só aceitam os mestres per Bolonha; isto é, com 5 anos de ensino superior. A licenciatura+mestrado de Bolonha passaria a ser apenas uma nova e confusa designação da licenciarura pré-Bolonha. O «mestrado» desapareceria do mapa tornando-se um termo sem significado prático.
b) Só aceitam os licenciados per Bolonha, depois de um curso de formação, de 2 ou 3 anos. Conclusão idêntica à anterior.
    
Pergunta: Para que serviu/serve, então, Bolonha?
    

Resposta: Para baixar a qualidade de ensino e incentivar o facilitismo, fabricando licenciados, mestres e doutorados como quem fabrica salsichas. Para o grande capital, Bolonha é sem dúvida interessante. Mantém um exército de desempregados nas qualificações técnicas superiores, prontos a, em desespero, aceitar estágios não pagos de formação (a favor do capital) e salários baixíssimos (ou emigrar). Mantém também a espada de Dâmocles sobre a cabeça dos docentes universitários, amarrando-os a um mesquinho papel de fabricantes de salsichas, de facilitadores de passagem em todas as disciplinas, e sob a ameaça de poderem ser achados redundantes por falta de serviço docente.

terça-feira, 2 de junho de 2015

Programas PS e PSD/CDS: a mesma coisa e mais do mesmo

Os programas do PS e do PSD/CDS -- para o governo a sair das próximas eleições legislativas – são praticamente iguais e representam a continuidade das políticas de «austeridade» para os trabalhadores e povo comum, em favor do grande capital.
    
    Ao contrário do que António Costa e outros do PS têm anunciado, e tem sido martelado na cabeça dos portugueses pelos meios de comunicação social, não há qualquer diferença substantiva entre os programas do PS e do PSD/CDS.
   Passemos à demonstração desta afirmação, tomando como fonte os próprios programas do PSD/CDS -- «Programas Nacional de Reformas e de Estabilidade 2015-2019» -- e do PS -- «Uma década para Portugal», cujo conteúdo económico é da autoria de um grupo de 12 economistas do PS. Usaremos dados quantitativos das previsões dos dois programas divulgados nos artigos [1-3], cuja leitura recomendamos. (Note-se que para o cidadão comum estes dados quantitativos não são fáceis de obter.)
     
a) Crescimento económico
    As previsões da variação anual real do PIB, dos programas do PSD/CDS e PS, são as da tabela I. A diferença entre os dois programas é mínima e praticamente sem significado na diminuição da dívida pública (ver http://revolucaoedemocracia.blogspot.pt/2015/05/portugal-ponto-da-situacao.html ).
     
Tabela I. Previsões da variação anual real do PIB.

2015
2016
2017
2018
2019
Média dos 5 anos
PSD/CDS
1,6%
2,0%
2,4%
2,5%
2,4%
2,2%
PS
1,6%
2,4%
3,1%
2,6%
2,3%
2,4%

b) Investimento
    
Tabela II. Previsões da variação anual da formação bruta de capital fixo (FBCF).

2015
2016
2017
2018
2019
Média dos 5 anos

FBCF Total
PSD/CDS
3,8%
4,4%
4,9%
4,9%
4,0%
4,4%
PS
2,9%
7,8%
8,4%
4,7%
4,4%
5,6%

FBCF do sector público
PSD/CDS
2,30%
2,20%
2,20%
2,30%
2,20%
2,2%
PS
1,90%
2,90%
3,00%
2,80%
2,60%
2,6%
     
    As previsões do PS para 2016 e 2017 da FBCF total parecem claramente inflacionadas, tendo em conta a revisão em baixa do investimento empresarial para 2014 (1% e não, como se esperava, de 2,4%) e a previsão de queda para 2015 com variação nominal de -2,2% [4]. Como é que, de um decair sistemático da FBCF desde 2008 (ver http://revolucaoedemocracia.blogspot.pt/2014/10/capitalismo-de-mal-pior-ii.html ) e respectiva previsão negativa para 2015, se vai dar o salto para os níveis de 4,4% do PSD/CDS ou os mais espantosos 7,8% do PS, é coisa difícil de entender.
    As previsões da FBCF para o sector público do PSD/CDS e PS são semelhantes. As médias dos últimos 5 anos pouco diferem e são bastante baixas (conforme se refere em [1] a taxa média em 2009/20013 foi de 3,9% e a taxa média da UE em 2014 foi de 2,9%).
     
c) Remuneração do trabalho
     
Tabela IV. Previsões da variação anual da remuneração média do trabalhador.

2015
2016
2017
2018
2019
Média dos 5 anos
PSD/CDS
0,6%
1,0%
1,3%
1,5%
1,5%
1,2%
PS
0,7%
0,0%
-0,1%
-0,4%
0,6%
0,2%

    Ambos os programas prevêem subidas sem significado.
    Além disso, o programa do PS prevê uma redução média dos custos unitários do trabalho (CUT) de -0,8 %/ano. (O programa do PSD-CDS não contém essa previsão.) Isto é, o PS permanece na lógica de diminuir os custos do trabalho face aos custos do capital. Lógica que vem de longe (ver o que dissemos sobre o assunto na secção V de http://revolucaoedemocracia.blogspot.pt/2014/03/belmiro-e-o-mito-dos-trabalhadores_30.html ).
    Lembremos que os CUT incluem, para além do salário, as contribuições destinadas à Segurança Social (pensões, subsídios de desemprego, etc.) Uma dessas contribuições é a Taxa Social Única (TSU), paga pelas empresas (está agora em 23,75% do salário) e pelos trabalhadores (11% do salário).  O PS defende a redução da TSU das empresas e dos trabalhadores, com o argumento de que tal contribuiria, respectivamente, para eliminar o trabalho precário e aumentar o rendimento dos trabalhadores, logo o consumo. Contas feitas [1] o Regime Geral da Segurança Social sofreria com isso um rombo de 420 M€ (M€=milhão de euros) em 2016 e de 1.800 M€ em 2018. Conforme é dito em [1], tal medida «aumentaria os lucros das empresas à custa da descapitalização da Segurança Social».
    Quanto à redução da TSU sobre o trabalho, também em [1] é proposta uma muito melhor alternativa: a eliminação da sobretaxa de IRS. Contudo, o PS defende a manutenção da sobretaxa de IRS e, de uma forma geral, a injustiça fiscal sobre os trabalhadores.
     
d) Consumo público
    
    Ambos os programas concordam na estagnação com tendência de decrescimento do consumo público, isto é no consumo de bens e serviços necessários à actividade da Administração Pública.

Tabela V. Previsões da variação anual do consumo público.

2015
2016
2017
2018
2019
Média dos 5 anos
PSD/CDS
-0,70%
0,10%
0,10%
0,20%
0,20%
-0,0%
PS
-0,30%
-0,40%
-0,10%
-0,10%
-0,20%
-0,2%

e) Consumo privado
        
    Ambas os programas concordam praticamente nos mesmos valores de crescimento do consumo privado (famílias e empresas privadas). Quanto ao consumo das famílias é difícil crer que mesmo estes baixos valores se concretizem, dado o que vimos em c). O aumento de consumo das empresas está dependente da FBCF.
     
Tabela VI. Previsões da variação anual do consumo privado.

2015
2016
2017
2018
2019
Média dos 5 anos
PSD/CDS
1,90%
1,90%
2,10%
2,10%
2,10%
2,0%
PS
1,80%
2,00%
3,10%
2,60%
2,30%
2,4%
     
f) Criação de emprego e taxa de desemprego
     
Tabela VII. Previsões da taxa anual de desemprego.

2015
2016
2017
2018
2019
Média dos 5 anos
PSD/CDS
13,2%
12,7%
12,1%
11,6%
11,1%
12,1%
PS
13,6%
12,2%
10,2%
8,6%
7,4%
10,4%
     
    Ambas as previsões parecem bastante optimistas, tendo em conta os baixos valores da FBCF e do consumo. Além disso, conforme é referido em [1], não se entende a previsão optimista do PS para a taxa de desemprego em 2019 (3,7% menor que a do PSD/CDS) – e também em 2018 (3% menor) – dado que, quanto ao crescimento económico, a previsão do PS é apenas 0,2% maior.
    Para além disso, há estudos que mostram que só com uma taxa de crescimento anual do PIB acima de 2,7% (e os economistas do PSD-CDS e do PS conhecem isso) seria possível não aumentar o desemprego[6]. Não é com taxas de crescimento médias do PIB de 2,2% ou 2,4% que a situação de desemprego irá melhorar substantivamente.
     
 g) Outros indicadores
    
    As despesas com prestações sociais são semelhantes e diminuem nos dois programas (em percentagem do PIB, de 19,4% para 18,3% no programa PSD/CDS e de 19,8% para 17,8% no programa do PS). Semelhança e diminuição também nas despesas com pessoal (de 11,1% para 9,9% no programa PSD-CDS e de 11,1% para 9,8% no programa PS) o que sugere o aumento de despedimentos na função pública.
    Os valores também são semelhantes no que se refere ao saldo orçamental (PPD/CDS mais optimista, 0,2% em 2019 contra -1% do PS) e à dívida pública (PPD/CDS mais optimista, 107,1% em 2019 contra 117,6% do PS).
    Ambos, PSD/CDS e PS, apostam num aumento exportações para o aumento do crescimento económico, com máximos de taxa de crescimento anual das exportações de 6% (PSD/CDS) e 6,3% (PS).  (Em 2015, as previsões são, respectivamente, de 4,8% e 5%.) Já vimos em http://revolucaoedemocracia.blogspot.pt/2015/05/portugal-ponto-da-situacao.html as grandes limitações de tal aposta.
    Quanto às privatizações, o PS apenas diz ser necessário reavaliar o método a seguir nas privatizações. Propõe-se, portanto, manter e continuar com as privatizações; só coloca a questão do «método» a seguir nas próximas.
     
h) Leis laborais
     
    Embora o PS proponha a redução da TSU das empresas, alegadamente para eliminar o trabalho precário, não tem, por outro lado, o menor escrúpulo em atacar essa mesma precariedade no que diz respeito à contratação do trabalho. De facto, o grupo dos 12 do PS propôs «a regulamentação do mercado de trabalho de forma a facilitar o ajustamento do emprego às condições económicas das empresas». E que «regulamentação» é essa que o PS acha necessária? É acabar com «as diferenças processuais entre contratos a prazo e contratos permanentes», passando a haver um «contrato único» com direitos reduzidos e que permita às entidades patronais despedir trabalhadores alegando razões económicas.
    Na actual proposta do PS o «contrato único» passou a ser denominado «contrato para a equidade laboral» -- soa melhor, não soa? – assim formulado: «Propõe-se ainda complementar a actual legislação de cessação de contratos de trabalho [portanto, de despedimentos] com um novo regime conciliatório e voluntário em que as empresas podem iniciar um procedimento conciliatório, em condições equiparadas às do despedimento colectivo, englobando ainda os motivos de razão económica (de mercado, estruturais e tecnológicas) que tenham posto em causa a sobrevivência do emprego». Este texto é incrível! É um exemplo acabado do jesuitismo do PS. No fundo, diz que os patrões podem despedir quem quiserem e sempre que quiserem. Só que o PS tem de mascarar as suas reais intenções para não perder a sua pose de «esquerda». Assim, insinua que o despedimento só ocorrerá por via conciliatória ou voluntária, como por exemplo se um trabalhador se quiser despedir «voluntariamente» para aumentar a viabilidade económica do empresa, tipo sacrifício e altruísmo a favor dos patrões, por constatar que a «sobrevivência» do seu emprego por «motivos de razão económica» está posta em causa. «Motivos» que nada têm a ver com os lucros. Não. São «motivos» que ocorrem como as pragas do Egipto, sem a «motivação» dos patrões ter algo a ver com isso. O despedimento ocorrerá em condições «equiparadas» às do despedimento colectivo. Vêem? O PS não está a dizer nada que já não exista. Só que a equiparação, afinal, não é bem equiparação, dado que engloba «ainda os motivos de razão económica». Mas, fora os motivos delituosos, haverá outros motivos para os patrões despedirem sempre que quiserem que não sejam «económicos»? Aqui, porém, o capitalista é figura invisível, dado que – já vimos -- os motivos do despedimento nada têm a ver com lucros; são simplesmente uns meros motivos de mercado, estruturais e tecnológicos, que na óptica PS devem preocupar da mesma forma patrões e trabalhadores.
    Não contentes com a total submissão aos interesses dos capitalistas, o PS ainda por cima advoga medidas que iriam diminuir as indemnizações por despedimentos[1].
     
i) Outras convergências PSD/CDS - PS
     
PSD/CDS e PS também convergem na abdicação da produção nacional, na recusa de renegociar a dívida, e na submissão a todos os ditames da UE, BCE, e instituições da troika.
    
*    *    *
Um documento do PCP, lido por Jerónimo de Sousa a 27/4 em conferência de imprensa [7], faz uma excelente análise política dos programas do PSD/CDS e PS. Nele se diz, nomeadamente:
    
«Estes programas do PS, PSD e CDS, são produtos das mesmas opções políticas e económicas determinadas pela mesma subordinação aos interesses dos grupos económicos e dos centros do capital financeiro, que têm justificado o saque dos recursos nacionais que, de PEC em PEC até ao Pacto de Agressão, têm unido PS, PSD e CDS.
Estes programas, são instrumentos desse mesmo objectivo, com esta ou aquela diferença de ritmo ou intensidade, com esta ou aquela medida acessória para disfarçar o essencial, de amarrar o País à dependência e condenar os trabalhadores e o povo ao empobrecimento e ao retrocesso social.»
     
Sempre qualificámos o PS como um partido da direita, expondo as razões de tal qualificação em inúmeros artigos deste blog (ver definição de direita e esquerda em http://revolucaoedemocracia.blogspot.pt/2013/01/direita-e-esquerda.html ; ver também http://revolucaoedemocracia.blogspot.pt/2013/04/congresso-do-ps-o-mesmo-rumo.html) e com montanhas de dados e factos. Dissemos ainda que o PS era o Plano B da grande burguesia. O Plano A (PSD/CDS) e o Plano B têm-se alternado no Poder, com casamentos de permeio, de acordo com os resultados eleitorais mostrados no gráfico abaixo.
    
Resultados das eleições para a AR, de 1976 a 2011, do PSD/CDS (soma dos votos ou votação na AD em 1979 e 1980) e do PS (FRS em 1980). Em 1985, na véspera da entrada de Portugal na CEE, o PRD retirou aos partidos do «arco da governação» cerca de 17% dos votos. Em 1987 a retirada de votos pelo PRD foi menor, cerca de 4%. Isto é, com correcção dos votos retirados pelo PRD, o total de votos PSD-CDS-PS (curva a preto) corresponderia aproximadamente a interpolar entre os valores de 1983 e 1991. Notar a alternância no poder. O PS constituiu governo 6 veses e o PSD/CDS 7 vezes [8]. O PS já governou com o CDS (1978-79) e com o PSD (1983-85).
     
    A máquina dos meios de comunicação social tem estado devidamente oleada ao serviço do ludíbrio do PS como verdadeira alternativa ao PSD/CDS.
   Está também em curso uma inicativa de restrição às liberdades democráticas, com a alteração da lei de cobertura jornalística das televisões que, a pretexto de uma pretensa «liberdade editorial», as deixaria fazerem o que quisessem[8]; isto é, serem apenas porta-vozes do PSD/CDS e PS, como praticamente fazem na programação corrente, silenciando os incómodos PCP e (em grau menor) BE. Esta «liberdade editorial» é de há muito um objectivo da direita. Cavaco Silva, pronunciou-se sobre a lei de cobertura jornalística desta forma: «Penso que em Portugal é a lei mais anacrónica que existe. Quando fui primeiro-ministro, encontrei uma lei anacrónica, que era a lei da reforma agrária, e mudei-a». Tudo que cheire a «25 de Abril» é anacrónico para Cavaco. No reino do capital, liberdades só para o capital.
    É muito provável que o Plano B ganhe as eleições. Se não tiver maioria absoluta poder-se-á talvez assistir a um casamento entre os dois Planos. Repetindo o que já dissemos em http://revolucaoedemocracia.blogspot.pt/2013/04/congresso-do-ps-o-mesmo-rumo.html, uma coisa é certa: vão ser mais quatro anos perdidos.
     
Referências
[1] Eugénio Rosa, O Programa do Governo PSD/CDS e o Programa Grupo de Economistas do PS Não São Tão Diferentes como os Media Pretendem Fazer Crer, 29/4/2015, http://www.eugeniorosa.com/Sites/eugeniorosa.com/Documentos/2015/16-2015-ps-psd-cds.pdf
[2] Eugénio Rosa, O Mito da Redução da “TSU” para Eliminar o Trabalho Precário e um Novo Contrato de Trabalho para Facilitar o Despedimento Individual, 16/5/2015, http://www.eugeniorosa.com/Sites/eugeniorosa.com/Documentos/2015/19-2015-tsuprecarios.pdf
[3] Agostinho Lopes et al., Proposta do PS: Mais uma Década de atraso para Portugal ou mais!, “Avante!”, 30/4/2015.
[4] INE, Revisão em baixa do investimento empresarial em 2014. Expetativas de redução do investimento em 2015, Destaque de 30/1/2015.
[5] INE, Quadro B.1.4 - Formação bruta de capital fixo (P.51G) por setor institucional.
[6] Existe uma lei empírica do actual sistema capitalista – lei de Okun -- que prevê que, para taxas de desemprego de 3% a 7,5%, o PIB deverá crescer da ordem de 3% para o desemprego cair 1%. Segundo um estudo citado em [1] os cálculos para Portugal mostram que só para uma taxa de crescimento do PIB acima de 2,7% é que não aumenta o desemprego.
[7] A situação e as soluções para o País - Basta de exploração, empobrecimento e declínio nacional, Conferência de Imprensa, 27/4/2015, http://www.pcp.pt/situacao-solucoes-para-pais-basta-de-exploracao-empobrecimento-declinio-nacional
[8] Resultados das eleições para a AR. A verde, o partido vencedor (no caso PSD/CDS, um deles ou a AD).
   

1976
1979
1980
1983
1985
1987
1991
1995
1999
2002
2005
2009
2011
PS (*)
34.89%
27.33%
26.65%
36.11%
20.77%
22.24%
29.13%
43.76%
44.06%
37.79%
45.03%
36.56%
28.05%
PSD/CDS(**)
40.33%
42.52%
44.91%
39.80%
29.87%
50.22%
55.03%
43.17%
40.66%
46.51%
36.01%
39.54%
50.37%
PRD




17.92%
4.91%







(*)                     FRS-Frente Republicana e Socialista, em 1980
(**)                   AD em 1979 e 1980
    

[9] A polémica em torno da cobertura das eleições surgiu nas autárquicas de 2013, quando a CNE impôs aos órgãos de comunicação social a garantia de «um tratamento igual e não discriminatório a todas as candidaturas», levando a um boicote das televisões à cobertura tradicional da campanha por infracção à «liberdade editorial». Dos «editores» do PSD/CDS e PS, naturalmente.