segunda-feira, 30 de junho de 2014

Marxismo e Ciência. II – Materialismo Dialéctico

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    Uma exposição detalhada sobre o materialismo dialéctico está fora dos propósitos deste blog. Limitamo-nos a indicar alguns aspectos relevantes do tema, como etapa prévia à compreensão do «materialismo histórico», a apresentar mais tarde e que constitui o cerne da metodologia científica do marxismo, com consequências na análise da economia e da política.
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I - Idealismo e Materialismo
    O aparecimento da espécie humana sobre a Terra teve consequências notáveis, pelo menos ao nível local. Uma delas é que, pela primeira vez num (neste nosso) insignificante planeta – e talvez só nele em todo o Universo –, um agregado altamente estruturado de matéria se tornava pensante e consciente. Interagia com outra matéria, colocava-a ao seu serviço, e replicava-se enormemente modificando o próprio planeta.
    Desde os primórdios da civilização que os seres humanos, conscientes da sua posição única entre os seres materiais, se colocaram a questão essencial da filosofia: a questão da primazia na relação do pensar com o ser, do espírito com a natureza. A questão assim formulada: que é o originário, o espírito ou a matéria?
    Conforme respondiam a esta pergunta, os filósofos, estudiosos das questões mais gerais da existência e do conhecimento, e seus seguidores (políticos, clero, cientistas, inclusive os homens comuns) dividiram-se em dois grandes grupos: os idealistas, defendem a primazia do espírito face à matéria; os materialistas, defendem a primazia da matéria face ao espírito.
  
Os idealistas agrupam-se fundamentalmente em duas grandes correntes:
   
    1) Os idealistas absolutos ou objectivos, como Platão, defendem que o mundo exterior que percebemos pelos sentidos não existe; só têm existência real as ideias, que se formam num mundo à parte, um mundo místico, onde permanece a alma humana mesmo antes de o homem nascer. O filósofo alemão do século XIX Georg Hegel também era um idealista absoluto, defendendo a existência daquilo que denominava por «a Ideia» (Ideia Absoluta) que supostamente ditaria ao homem iluminado por tal Ideia o que era correcto ou não nas leis da natureza e nas leis sociais. Georg Hegel era, naturalmente, um dos iluminados. É óbvio que quer o «mundo das ideias» ou a Ideia Absoluta de Hegel são sinónimos filosóficos de Deus.
    2) Os idealistas relativos ou subjectivos, de que um dos expoentes foi o bispo irlandês George Berkeley (séc. XVIII), defendem que não existem as coisas-em-si – isto é, os seres materiais fora do conhecimento humano. Para Berkeley e outros idealistas subjectivos -- como o filósofo e físico Ernst Mach (1838-1916), «pai» do chamado positivismo lógico ou pragmatismo americano -- só existem «complexos de sensações». Fora da mente humana os objectos não existem. O idealismo subjectivo sofre de duas graves consequências decorrentes do postulado de que «fora da mente humana [fora dos complexos ou combinações de sensações] os objectos não existem»: o solipsismo (se fora da mente os objectos não existem então o idealista subjectivo terá, para ser consequente, de admitir que está sozinho no mundo) e a não existência do Universo antes de surgirem os seres humanos. A resposta dos idealistas subjectivos para saírem destes embaraços é sumamente cómica: propuseram que desde a origem do tempo cada um dos idealistas subjectivos já existia «em potência» (ninguém sabe o que isto concretamente significa -- limbo divino? -- nem sequer os próprios idealistas subjectivos) e, ao existir em potência, determinou o Universo antes da existência real dos idealistas subjectivos, bem como a existência de quem não é idealista subjectivo!
   
Os materialistas dividem-se em três correntes:
   
    1) Os materialistas primitivos ou ingénuos correspondem à atitude do homem comum perante o mundo exterior. Tomam as sensações imediatas e/ou aquilo que é imediatamente percebido na natureza, pela essência dos objectos. Por exemplo, Aristóteles, ao postular que tudo no Universo era constituído por quatro elementos principais – ar, terra, fogo e água –, comportava-se como um materialista ingénuo. Um outro exemplo de materialismo ingénuo é a teoria do flogisto, aceite pelos físicos do século XVII e princípios do século XVIII para explicar a transmissão do calor. Postulava a existência de um fluido calorífico dentro dos corpos, como se fosse uma espécie de água quente a correr dentro dos corpos! Em certa medida, a hipótese do éter, postulado como meio de transmissão de ondas electromagnéticas por analogia com a propagação do som, era também materialista ingénua. Foi descartada no início do século XX uma vez confirmadas as teorias de Einstein.
    2) Os materialistas mecanicistas. Em consequência das grandes descobertas científicas dos séculos XII e XVIII (Copérnico, Newton, Galileu, Kepler, etc.) e a ascensão da burguesia como classe social progressista que procurava colocar as leis da natureza ao seu serviço, as teorias idealistas entraram em recuo. As descobertas científicas seguiam metodologias experimentais e de observação da natureza (já propostas por Roger Bacon no século XIII). Na medida em que se ia procurar à matéria a explicação das leis da natureza – abandonando postulações e pré-conceitos dos cérebros iluminados pela Ideia – a atitude dos cientistas passou a ser uma atitude materialista. Contudo, até finais do século XIX, os materialistas, cientistas ou não, permaneceram mecanicistas; isto é, consideravam o Universo como uma complexa construção mecânica perfeitamente determinística: planetas e estrelas tinham sido sempre os mesmos e com os mesmos movimentos; tinham sempre existido os mesmos seres vivos aparte umas poucas extinções (a explicação dos fósseis ainda não era clara); oceanos e continentes eram praticamente imutáveis, tendo-se estes formado como uma espécie de precipitado de um oceano primitivo (Werner, 1774); o corpo humano era um simples arranjo mecânico que funcionava como um relógio ou um autómato (Descartes, 1647; Descartes, aliás, não era propriamente materialista mas sim dualista [1]); Pierre Cabanis dizia em 1795 que «o cérebro segrega o pensamento como o fígado segrega a bílis»; etc.
    3) Os materialistas dialécticos. No final do século XIX e princípios do século XX várias descobertas científicas destronaram a concepção mecanicista, substituindo-a por uma concepção evolutiva, transformativa, do mundo material: a teoria da evolução das espécies de Charles Darwin (e de outros); a evolução gradualista da Terra de James Hutton; a termodinâmica e as transformações de fases (sólida, líquida, gasosa) dos compostos químicos; a teoria da hereditariedade de Mendel; as teorias celulares dos seres vivos, etc. Karl Marx e Friedrich Engels foram pioneiros no desenvolvimento da concepção materialista dialéctica; Engels, particularmente, dedicou grande atenção e estudo das descobertas científicas do seu tempo. A concepção dialéctica do mundo natural veio a reforçar-se com a imensidão das descobertas científicas subsequentes: a teoria da tectónica das placas continentais de Wegener; a descoberta dos quanta (Max Planck) e da natureza probabilística do mundo microscópico (Max Born); a descoberta do ADN e da constituição celular; a descoberta das partículas fundamentais da matéria e da transmutação de elementos; a descoberta de uma forma particular de matéria, designada por anti-matéria; a descoberta do surgimento aleatório de pares matéria-antimatéria a partir do «vácuo», a rejeição, com base em resultados experimentais e teóricos, do modelo estacionário do Universo e a aceitação do modelo cosmológico dito do big-bang, etc.

II - Alguns esclarecimentos

    Circulam muitas falsas ideias sobre idealismo e materialismo. A definição precisa da questão primeira da filosofia está dada acima. Resume-se, no fundo, ao reconhecimento (materialismo) ou não (idealismo) de uma realidade objectiva, material, independente e fora do espírito humano que se reflecte no pensamento. Também são diferentes as posições idealistas e materialistas relativamente à segunda questão principal da filosofia, ligada à teoria do conhecimento: será possível conhecer as coisas-em-si, isto é a essência dos objectos do Universo, as leis que regem a natureza, incluindo o próprio espírito humano? Os idealistas respondem negativamente; só a «Ideia» (Deus) os pode conhecer (idealistas absolutos) ou só podemos conhecer «complexos de sensações» (idealistas subjectivos). Pelo contrário, para os materialistas o mundo é cognoscível. Os materialistas encaram as sensações, incluindo as que resultam da aplicação de instrumentos de medição, como originando reflexos na mente de «objectos» (seres inorgânicos ou orgânicos, corpúsculos, energia, campos, etc.) realmente existentes. Para os materialistas dialécticos, as sensações, a observação e a actividade prática de interacção com a natureza (incluindo a interacção com outros seres humanos) permitem chegar a verdades relativas sobre as «coisas-em-si» que ao longo da história são cada vez mais próximas de uma verdade absoluta (possivelmente nem sempre alcançável). A aquisição de conhecimento é, assim, encarada como um sistema evolutivo e progressivo que cada vez melhor descreve a realidade exterior ao pensamento humano e a própria formação do pensamento e da consciência.
  
Apresentamos de seguida alguns esclarecimentos que julgamos pertinentes:
  
    -- Na linguagem comum entende-se muitas vezes por idealista aquele que possui ou luta por um ideal. Trata-se aqui de idealismo no sentido moral; não no sentido da teoria do conhecimento. No sentido moral quer idealistas quer materialistas podem possuir e lutar por ideais. Muitas vezes, inclusive, lutam lado a lado pelos mesmos ideais. Por exemplo, nas guerrilhas cubana e nicaraguense combateram lado a lado, pelo mesmo ideal de justiça social, quer comunistas (materialistas) quer padres e frades católicos (idealistas). Inúmeros exemplos deste tipo ocorreram e ocorrem ao longo da História.
    -- Poder-se-ia julgar que o materialismo e o idealismo são correntes filosóficas unicamente ocidentais. Na verdade, as mesmas correntes filosóficas, as mesmas discussões entre materialistas e idealistas surgiram (e surgem) na Índia, na China e em outros lugares do mundo. São idiossincráticas da posição única da espécie humana.
    -- Na vida quotidiana a maior parte dos cidadãos vive alheada destas questões: são, esmagadoramente, materialistas ingénuos nas suas tarefas e preocupações materiais do dia-a-dia, reservando uma parcela de idealismo primitivo e tradicional sobre a vida além da morte e a necessidade de promessas à divindade em troca de um qualquer favor.
    -- Os que trabalham em ciência, particularmente nas ciências da natureza, são materialistas no seu trabalho. São, como dissemos no artigo anterior, espontaneamente materialistas. Note-se que, por vezes, o materialismo é designado de outras formas. É usual os físicos chamarem realismo ao materialismo. Einstein diz claramente: «A crença na existência de um mundo exterior, independente do sujeito que o descobre, é a base de todas as ciências da natureza» ([2]). Einstein admitia, contudo, um tipo muito ligeiro e subtil de deísmo que ele caracterizava como «sentimento religioso cósmico» que «não possui noção definida nem de Deus nem de Teologia». Uma posição a que outros cientistas e intelectuais aderem.
Note-se que a designação «realismo» não é rigorosa. O pensamento e a consciência humana também têm existência reais. A questão não reside na sua realidade, na sua existência, mas sim, como já dissemos, na sua primazia ou não face à matéria. Muitos físicos (mas não todos!) fogem a usar «materialismo» substituindo-o pelo termo menos rigoroso de «realismo», possivelmente por «vergonha» de alguma conotação política do termo materialismo.
    -- Houve e há quem procure um «casamento» entre materialismo e idealismo. São os chamados positivistas, cujo «pai» foi o filósofo francês Auguste Comte (expôs as suas concepções na obra «Sistema de Filosofia Positiva»). Como tal casamento é manifestamente impossível, na prática os positivistas oscilam entre um e outro, de forma intrincada e em muitas vezes sumamente cómica ([3]). O físico Ernst Mach, que mencionámos acima, também tinha devaneios positivistas. Em geral era um idealista subjectivo como Berkeley, quando dizia por exemplo (itálicos nossos): «As sensações não são os “símbolos dos objectos” [os reflexos mentais dos objectos]; antes o “objecto” é que é um símbolo mental referente a um complexo de sensações relativamente estável. Não são os objectos (os corpos), mas as cores, os sons, as pressões, os espaços, os tempos, (o que chamamos comummente de sensações), que constituem os verdadeiros elementos do universo». Mas, por vezes, escorregava para posições materialistas como nestas afirmações: «Não devemos filosofar a partir de nós próprios mas devemos recorrer à experiência», «O que observamos na natureza é impresso [...] sobre as nossas ideias, as quais [...] imitam os processos da natureza» e «A ligação profunda entre pensamento e experiência cria a moderna ciência da natureza. A experiência é que origina um pensamento.». Mach afirma aqui, embora de forma algo confusa, o que qualquer materialista defende: a matéria existe fora de nós; é a matéria que «imprime» as ideias, através do que se chama «experiência»; é a experiência que origina um pensamento. Isto é, como defendem os materialistas, a matéria é a fonte última do conhecimento; a observação da matéria, a experiência, a interacção com a matéria é o meio pelo qual o homem adquire conhecimento da natureza.
    -- Muitos positivistas (nomeadamente cientistas) são materialistas nas ciências da natureza e idealistas nas ciências sociais. Agem como se as sociedades humanas não fizessem parte da natureza!
    -- Muitos livros académicos nas ciências da natureza, particularmente na Física, adoptam abordagens positivistas, também qualificadas como «operacionalistas» e «empiricistas» (ver [4]). Pelo contrário, na Biologia e na Geologia são comuns as abordagens materialistas dialécticas.
    -- Existem também aqueles que se eximem a tomar uma posição entre idealismo e materialismo. Dizem-se agnósticos, termo inventado pelo biólogo do século XIX Thomas Huxley que defendia as posições do filósofo inglês do século XVIII David Hume cujo pensamento se sintetiza nesta frase: «realismo e idealismo são hipóteses igualmente prováveis». O agnóstico defende que não há maneira de saber se os nossos sentidos (directa ou indirectamente através de instrumentos) nos fornecem uma representação correcta dos objectos, logo nada podemos saber de verdadeiro sobre eles. Vale a pena ver como o materialista Engels refuta esta argumentação ([5]):
«Ora, esta linha de raciocínio parece sem dúvida difícil de refutar usando mera argumentação. Mas antes da argumentação existia a acção. Im Anfang war die Tat [no princípio estava a acção - Goethe]. E a acção humana resolveu esta dificuldade muito antes do engenho humano a ter inventado. A prova do pudim está em comê-lo. Desde o momento em que submetemos ao nosso próprio uso esses objectos, de acordo com as qualidades que percebemos neles, nós submetemos a um teste infalível a correcção ou não das nossas percepções sensoriais. Se essas percepções estiverem erradas, então a nossa avaliação do uso a que submetemos o objecto deverá também estar errada, e a nossa tentativa [nesse sentido] deverá falhar. Mas se formos bem sucedidos no cumprimento dos nossos objectivos, se descobrimos que o objecto efectivamente concorda com a nossa ideia dele, e efectivamente satisfaz aos propósitos que intentávamos para ele, então isso é uma prova positiva de que as nossas percepções dele e das sus qualidades, de facto concordam com a realidade fora de nós próprios.»
Frequentemente e na prática os agnósticos comportam-se como materialistas envergonhados.
    -- Note-se que o termo «matéria» foi e é sempre empregue no sentido de tudo que tem existência objectiva, exterior ao pensamento humano, que afecta directa ou indirectamente os órgãos dos sentidos, reflectindo-se por essa via no pensamento. Assim, são não só matéria os corpos materiais construídos à custa de átomos, mas também a energia, as partículas elementares com ou sem massa e todas as formas de radiação que é sempre mediada por partículas elementares manifestando-se em «campos» de «acção à distância». É também «matéria» todo o conjunto de partículas ditas de anti-matéria. A noção de matéria tem vindo constantemente a conhecer novos desenvolvimentos, com os avanços espectaculares da Física moderna. Quando o físico inglês Paul Davies (que subscreve teses idealistas na Mecânica Quântica) argumenta sobre o «mito da matéria» (no livro The Matter Myth: Dramatic Discoveries That Challenge Our Understanding of Physical Reality, [6]) restringe o entendimento de «matéria» à natureza corpuscular da matéria. Para Davies, energia, ondas, etc., não são matéria. Note-se que, no próprio título, cai já em contradição: de facto a «realidade física» de que fala não é outra coisa senão a materialidade física (já vimos que muitos físicos gostam de usar «realismo» em vez de «materialismo»).
    -- Em geral os poderes estatais reaccionários defendem posições idealistas; praticam abertamente o acorrentamento ideológico dos cidadãos a uma visão idealista do mundo (encorajamento por diversas formas da influência religiosa, incluindo apoios materiais, alcandoramento e elogio sistemático de intelectuais idealistas, menosprezo quando não perseguição aberta de intelectuais materialistas, tempo de antena concedido a videntes, cartomantes, etc.). A lógica é esta: um povo acorrentado a uma visão idealista do mundo é um povo que depende passivamente da opinião dos «iluminados», dos «espiritistas», que se habitua a alhear-se do mundo real, a ser conformado, a não exercer espírito crítico, a consumir o fútil, a ter como única perspectiva de vida a procura animal de prazer. É um povo alienado, e a alienação popular mais facilmente permite que os 1% do topo possam controlar os restantes 99%.
Pelo contrário, os poderes estatais progressistas -- limitamo-nos aqui à época actual, logo aos sistemas socialistas ou que rumam em direcção ao socialismo -- só podem sobreviver na medida em que exista um engajamento popular interessado nessa sobrevivência, dado faltarem os instrumentos de coerção económica usados pelo capitalismo (de que o primeiro se enuncia assim: «só trabalhas se eu te der trabalho e te portares bem»). É necessário que as massas populares olhem para o real e o saibam interpretar. E é necessário que haja quem faça a análise científica de como evolui o «real» e quais as suas perspectivas difundindo esse conhecimento e estimulando a discussão crítica entre as massas, proporcionando assim um amplo conhecimento e domínio da realidade objectiva. Uma análise científica da sociedade pressupõe uma análise materialista dialéctica.
    -- Apesar do que acabámos de dizer não se deve cair na visão simplista de que todos os idealistas são reaccionários e todos os materialistas são progressistas. Isso é absolutamente falso. Já vimos acima que existem imensos exemplos de idealistas progressistas, incluindo membros do clero. Também é possível indicar imensos exemplos de materialistas reaccionários. Na Revolução Francesa, o monarquista reaccionário Talleyrand, apesar de bispo, era materialista e ateu; mesmo o antigo seminarista Joseph Fouché, materialista e inicialmente ultra-revolucionário, não teve pejo em trair os revolucionários, acabando como chefe de polícia dos Bourbons restaurados e promovido a Duque de Otranto. Exemplos deste tipo encontram-se em todas as épocas. Inclusive entre cientistas. O eminente biólogo e materialista inglês Richard Dawkins, apesar das campanhas ardorosas em prol do materialismo e ateísmo, é apoiante do reaccionário partido Liberal.
    -- O materialista consequente é obviamente ateu. Muitos cientistas e outros intelectuais materialistas tiveram a coragem de enfrentar preconceitos sociais e declararem-se abertamente como ateus.
    -- Uma das melhores obras em defesa do ateísmo e do materialismo é o «Testamento» do padre francês Jean Meslier (1644-1729). Trata-se de uma obra notável, densa de argumentação lógica em defesa do ateísmo. Como o título indica, a obra só foi conhecida depois da morte do padre. Nela pede desculpa aos seus paroquianos por se ter visto obrigado a mentir-lhes. A obra é também percursora do materialismo moderno suplantando mesmo em alguns aspectos os mais avançados materialistas das Luzes, como Diderot, o barão D’Holbach e Helvetius. Infelizmente pouco conhecido -- não encontrámos a sua obra traduzida em português -- os próprios pioneiros do materialismo dialéctico, Marx e Engels, bem como Plekhanov, Lenine e outros, desconheciam-no ([7]).
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    No próximo artigo propomo-nos abordar os seguintes temas: a dialéctica e dois desafios ao materialismo dialéctico: um, sério, a Mecânica Quântica; outro, ridículo, o pós-modernismo.
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Notas
[1] Os dualistas, como René Descartes, defendem a existência de duas «substâncias» distintas: a matéria e o espírito (a alma humana). São de facto metafísicos e não materialistas. Descartes teve, contudo, um papel progressista, justamente destacado por marxistas (ver, p. ex., Georges Politzer, The Tri-centennial of the Discourse on Method, 2012 in http://marxistupdate.blogspot.pt/2012/01/descartes.html). Sobre Descartes disse D’Alembert: «Descartes pelo menos ousou mostrar aos bons espíritos como abalar o jugo dos escolásticos [medievais], da opinião, da autoridade, numa palavra, dos preconceitos e da barbárie. E, por esta revolta, cujos frutos nós agora colhemos, prestou um serviço talvez mais essencial à filosofia do que esta deve aos seus ilustres sucessores»

[2] A. Einstein “Ideas and Opinions”, Broadway Books; Reprint edition (June 6, 1995).

[3] Para além de Ernst Mach é possível apresentar muitos outros exemplos de cientistas ou intelectuais positivistas (de uma ou outra variante; há inúmeras e ricas em invenções de termos arrevesados!) oscilando entre posições materialistas e idealistas. Um exemplo notável é o do físico Hermann von Helmholtz (1821-1894) conhecido pelas suas importantes contribuições para a teoria da conservação da energia, a termodinâmica e as percepções sensoriais.
Disse ele no seu discurso de 1878 «Os Factos da Percepção» (versão inglesa disponível no MIA - Marxists Internet Archive, http://www.marxists.org/ ): «As nossas sensações são simplesmente os efeitos nos nossos órgãos de causas objectivas; a forma exacta como os próprios efeitos se manifestam depende principal e essencialmente do tipo de dispositivo que reage às causas objectivas» e «E todas as leis naturais afirmam que a partir de condições iniciais que são as mesmas vistas de qualquer modo específico, resultam consequências que são as mesmas segundo outro qualquer modo específico. [...] Se, por exemplo, alguma qualidade de cereja ao amadurecer forma um pigmento vermelho e ao mesmo tempo também açúcar, nós encontraremos uma cor vermelha e um concomitante sabor doce nas nossas sensações de cerejas dessa qualidade». Estas são afirmações claramente materialistas. Mas, mais à frente, Helmotz diz coisas espantosas como estas «Se chamarmos ao grupo completo de agregados de sensações [«complexos de sensações» de Mach, que influenciou von Helmotz] que pode ser potencialmente trazido à consciência durante um certo período de tempo, através de um grupo específico e limitado de volições, de presentabilia temporários, em contraste com o presente, isto é o agregado de sensações que é objecto doe uma consciência imediata – então o nosso indivíduo hipotético está limitado em qualquer momento a um círculo específico de presentabilia [...]» e, invocando os presentabilia, «Enquanto sonhamos  acreditamos que estamos  a executar algum movimento e então sonhamos mais e os resultados desse movimento ocorrem [...] Nestes casos parece ao sonhador que está a ver as consequências das suas acções e que as percepções do seu sonho são realizadas por meio de puros processos psíquicos. [...] Se tudo nos sonhos viesse a ocorrer em concordância definitiva com as leis da natureza não existiria qualquer distinção entre estar a dormir ou acordado, excepto que a pessoa que está acordada pode quebrar a série de impressões que está a sentir». Isto é, a famosa cereja a que se referia materialisticamente von Helmotz, tanto pode existir objectivamente, fora do pensamento, ou corresponder a presentabilia de um sujeito a dormir. E como é que Helmotz sabe que o sujeito a dormir não quebra «a série de impressões que está a sentir»? E acorda convencido que provou o sabor doce de uma cereja que ingeriu? Só que infelizmente e estranhamente ela não se encontra no estômago? Assim, von Helmotz, que começou o discurso como materialista, acaba a dizer que «Não vejo como um sistema mesmo do mais extremo idealismo subjectivista, mesmo um que trata a vida como um sonho, possa ser refutado»! Bom, no caso da cereja temos uma solução a propor: abra-se o estômago do indivíduo e veja-se se está lá a cereja.

[4] Sobre este assunto, ver: Erwin Marquit, Philosophy of Physics in General Physics Courses, originalmente publicado em “Dialectics of Motion in Discrete and Continuous Spaces”,  Science & Society, 42 (Winter, 1978–79), pp. 410–25. (Received 25 April 1997; accepted 28 February 1979). Descarregável de http://www.tc.umn.edu/~marqu002/philphys.htm .
Erwin Marquit, é um físico marxista e comunista (membro do PCEUA) que, depois de vencer várias perseguições académicas (e não só) é, actualmente Professor Emérito de Física da Universidade de Minnesota. Foi cofundador da Marxist Education Press e editor da revista de estudos marxistas Nature, Society, and Thought.
Neste artigo Marquit começa por referir que um seu colega dizia numa aula de filosofia que ele, físico, não usava filosofia. Esta é uma ilusão muito comum entre cientistas. Mas não em todos. Einstein, por exemplo, nas suas polémicas com Niels Bohr, sabia bem que defendia uma posição «realista» contra as posições «idealistas» de Bohr. Pior ainda é quando os livros académicos são portadores de uma determinada visão filosófica sem que os leitores se apercebam disso.
Marquit refere que nos EUA a posição mais difundida nos textos académicos é a do positivismo  de Mach, sob a capa de «operacionalismo». Menciona, por exemplo, que na introdução de um livro muito conhecido, Introductory Nuclear Physics, o autor, Halliday, faz afirmações como estas: «Na física nuclear, como em todos os ramos da ciência, é desejável um ponto de vista unificado. Um, que é aceite por alguns cientistas hoje em dia, mas de forma nenhuma por todos, é o positivismo lógico cujo pai fundador foi o físico austríaco Ernst Mach.»; «Um positivista, comprometido como está com o operacionalismo, não descortina forma de decidir se uma dada teoria ou hipótese representa ou não a “verdade absoluta” [de facto, nem os materialistas nem ninguém afirma isso; aqui Halliday exagera propositadamente usando “verdade absoluta” em vez de “realidade objectiva" fora das sensações]. Em resultado disso ele tende a descartar tal conceito. O seu objectivo é descrever de forma tão compacta quanto possível as percepções sensoriais que provêm (ou se pode fazer com que provenham) da experiência» (itálicos nossos).
O artigo desmonta as argumentações positivistas-operacionalistas-empiricistas, citando a propósito a crítica de um físico (Mario Bunge) de que apresentamos aqui um extracto: «Quando aplicado ao caso da intensidade do campo eléctrico E este dogma [operacionalista] sustenta que E só adquire um significado físico quando é prescrito um procedimento de medição dos valores de E. Mas isto é impossível; as medições só nos permitem um número finito de valores de uma função [...] Para além disso, o valor numérico de uma grandeza ou quantidade física é apenas um dos constituintes dela. Por exemplo, o conceito de campo eléctrico, falando matematicamente, é uma função e portanto tem três ingredientes: dois conjuntos (o domínio e contradomínio da função) e a correspondência precisa entre eles. Um conjunto de valores medidos é apenas uma amostra do contradomínio da função. [...] Logo, longe de atribuir significados, a medição pressupõe-os». Isto é, as próprias medições já são feitas tendo por base o que lhes dá significação: a realidade objectiva. No caso do exemplo, a existência de um campo eléctrico. Mas Mario Bunge enterra definitivamente o operacionalismo-positivismo quando a seguir diz: «Para além disso, há muitas maneiras de medir os valores de E. Portanto, se [como pretendem os operacionalistas] cada uma dessas maneiras fosse usada para determinar o conceito de intensidade de campo eléctrico, teríamos um número arbitrário de diferentes conceitos de campo eléctrico em vez do conceito único que faz parte da teoria de Maxwell». 

[5] F. Engels, «Do Socialismo Utópico ao Socialismo Científico», 1892. O texto citado faz parte da Introdução a esta obra, Introdução essa que não encontrámos traduzida em português (embora a restante obra o esteja). A versão integral em outras línguas está disponível no MIA.

[6] Pauls Davies «The Matter Myth: Dramatic Discoveries That Challenge Our Understanding of Physical Reality (com John Gribbin); Simon & Schuster; 1992.

[7] O anti-clericalista e anti-religioso Voltaire, que era também deísta, idealista e ideólogo da ala mais à direita da burguesia francesa, sempre pronta a todos os arranjos com monarcas e aristocratas, é o grande culpado do desconhecimento de Jean Meslier. Tendo ouvido falar de Meslier em 1735 só passados 27 anos voltou a debruçar-se sobre o «Testamento», comunicando a D’Alembert: «Estremeci de horror ao lê-lo!» -- esta fase diz tudo de Voltaire. Voltaire compôs então um «Extracto» de Meslier que editou na Holanda e onde distorce e minimiza o pensamento profundo do socialista utópico Jean Meslier. Meslier, para além da argumentação materialista em defesa do ateísmo submeteu a uma crítica mordaz o dualismo cartesiano, em particular a visão cartesiana dos animais como simples máquinas («Esta opinião é absolutamente condenável porque é falsa e ridícula […] tende declaradamente a abafar no coração dos homens todos os sentimentos de doçura e bondade que poderiam ter para com os animais»); opunha-se violentamente à divisão da sociedade em «estados» (classes sociais); caracterizava correctamente os meios de opressão usados pela aristocracia e pelo clero para oprimir o campesinato e os trabalhadores; condenava a guerra que só aproveitava aos reis e nobreza; defendia a instauração da comunidade dos bens, assente na abolição da propriedade privada da terra; incitava os cidadãos à revolução sublinhando várias vezes que a libertação do povo é obra do próprio povo: «Nada deveis esperar de quem quer que seja. A vossa salvação está nas vossas próprias mãos»; propunha a criação de organizações de luta e a união das forças à escala internacional: «Povos, uni-vos! Se sois inteligentes, uni-vos todos se tiverdes coragem para vos libertardes das vossas misérias comuns. [...] Espalhai por toda a parte, o mais habilmente possível, textos deste tipo [...]».
Sobre o pensamento fascinante de Jean Meslier recomendamos: Abram Déborine, «Jean Meslier (1664-1729)» in «Utopia e Utopistas Franceses do Séc. XVIII», Livros Horizonte (Colecção Dialéctica), 1980. O «Testamento» é descarregável do MIA (em inglês e francês).

Referências de Leitura
Para além das obras clássicas de Karl Marx e Friedrich Engels, em particular o «Anti-Dühring» e a «Dialéctica da Natureza» de Engels (ao ler estes livros deve-se ter em conta o estado das ciências da natureza na altura em que foram escritos), parecem-nos importantes, e mais ou menos por ordem de prioridade, s seguintes obras:
  
Georges Politzer, Princípios Elementares da Filosofia, Ed. Prelo, 1974.
Uma excelente e didáctica introdução às questões essenciais da filosofia e ao materialismo dialéctico. O livro baseia-se nas notas das aulas de Politzer na Universidade Operária de Paris. O filósofo comunista Georges Politzer foi fuzilado pelos nazis em 1942 pelo crime de ser comunista e patriota, depois de meses de tortura. Foi entregue aos nazis pelo governo fascista e colaboracionista da França, dito de Vichy. O livro pode ser descarregado gratuitamente a partir de http://www.dorl.pcp.pt/index.php/outros-textos-de-divulgacao-do-marxismo-leninismo/3222-politzer-os-princpios-elementares-da-filosofia.
História das Ideologias (4 tomos). Direcção de V. S. Pokrovski. Editorial Estampa, 1973.
Importante obra que descreve a evolução do pensamento humano face às grandes questões filosóficas, desde as sociedades esclavagistas até às primeiras sociedades socialistas. A abordagem materialista dialéctica confere à obra valor acrescido. De facto, ao invés dos tratados convencionais que não passam de enumerações descritivas de como certas figuras proeminentes «pensavam», a obra supre uma deficiência essencial desses tratados que não vão além da esfera do «pensamento»: esclarece quais as razões, condições e interesses materiais que levaram a que os homens pensassem como «pensaram».
V. I. Ulianov (Lenine) Materialismo e Empirio-Criticismo, 1908. Publicado em várias línguas, embora não o encontrássemos em português. Descarregável gratuitamente a partir do MIA.
Em 1908, no intervalo entre duas revoluções russas, Lenine, para grande desespero dos seus colaboradores mais próximos que não entendiam a perda de tempo com filosofices, gastou nove meses percorrendo as bibliotecas de Genebra e de Londres (aqui com a finalidade de obter conhecimento detalhado da moderna filosofia e dos recentes resultados científicos) compondo esta obra magistral, com mais de 200 referências, onde argumenta de forma lógica e consistente contra o idealismo e o positivismo de Ernst Mach e seus seguidores. A obra desempenhou um papel importante no combate ao desvio positivista do marxismo. Consideramos esta obra de Lenine de leitura imprescindível, se se quiser seguir essa grande verdade que o próprio Lenine seguia: não é possível uma prática correcta sem uma teoria correcta. (Embora uma teoria correcta, só por si não assegure uma prática correcta. Dispor de uma teoria correcta é, portanto, uma condição necessária mas não suficiente.)
Phil Gasper, Bookwatch: Marxism and Science, Issue 79 of International Socialism, July 1998.
Um artigo que sintetiza de forma excelente os aspectos essenciais do marximo, enquanto materialismo dialéctico e materialismo histórico, bem a crescente sofisticação da «categoria» matéria à luz dos sucessivos progressos das ciências naturais. O autor é Professor Emérito de Filosofia da Ciência numa Universidade da Califórnia. Descarregável a partir d http://www.marxists.org/history/etol/newspape/isj2/1998/isj2-079/gasper.htm
Paul Langevin, Pensamento e Acção, Seara Nova, 1974.
Paul Langevin é um físico famoso (faleceu em 1946) pelos seus trabalhos em magnetismo, piezoelectricidade, sonar, movimento browniano (equação de Langevin). Organizador dos famosos congressos Solvay. Teve uma ligação amorosa com a sua colega Marie Curie. Marxista e comunista francês, a sua oposição militante contra o fascismo valeu-lhe a prisão em 1930 e mais tarde a prisão domiciliária até 1944, decretada pelo governo colaboracionista de Vichy. No livro expõe as suas posições materialistas dialécticas em relação com o seu trabalho científico e militante.
Fundamentos de Filosofia Marxista-Leninista, Parte I – Materialismo Dialéctico (em espanhol). Academia das Ciências da União Soviética, Editorial Progresso, Moscovo.
Manual didáctico, de excelente qualidade, para centros de ensino superior.
John Haldane, Why I am a Materialist, Rationalist Annual, 1940
O autor é um biólogo famoso (faleecu em 1964) pelos seus trabalhos neo-darwnianos e na genética das populações. Marxista, foi membro durante alguns anos do partido comunista da Grã-Bretanha. Descarregável a partir de http://www.marxists.org/
Georges Plekhanov, O Materialismo Militante: questões fundamentais do marxismo.  Moraes, Lisboa,1976.
Um excelente trabalho de desmontagem do positivismo de Ernst Mach e consortes russos. Plekhanov, revolucionário russo, trabalhador administrativo e num instituto de metalurgia, escritor e auto-didacta, foi o fundador do embrião do partido social-democrata russo (1883). Foi introdutor do marxismo na Rússia e mentor inicial de Lenine.
Richard C. Vitzthum, Philosophical Materialism, http://infidels.org/library/modern/richard_vitzthum/materialism.html
Este artigo parece ser uma súmula do livro do autor, Materialism: An Affirmative History and Definition (Buffalo, NY: Prometheus Books, 1995) que não lemos. O interese do artigo (e possivelmente do livro) reside na análise materialista da formação das ideias e da consciência, que o autor tece à luz das descobertas da neurociências.
António Damásio, O Sentimento de Si, Europa-América, 2000.
Neste livro o autor descreve essencialmente uma teoria fundamentada em recentes descobertas científicas da formação da consciência, assente em bases biológicas. Trata-se de uma teoria objectivamente e obviamente materialista e também (menos obviamente) dialéctica. Uma teoria que, a nosso ver, representa a machadada final no positivismo.
Roland Desné. Os Materialistas Franceses. De 1750 a 1800. Seara Nova, 1969.
Os pontos de vista dos principais materialistas franceses (em geral mecanicistas, mas alguns já com embrionárias ideias dialécticas) que tanta influência tiveram na Revolução Francesa, expostos de forma cuidada.
Georges Plekhanov, Ensaios sobre a história do materialismo : D'Holbach, Helvetius, Marx. Estampa (2.ª ed.), 1979.
Uma análise cuidada da evolução das posições dos materialistas franceses até ao materialismo dialéctico de Marx.
F. T. Arjipsev, A matéria como categoria filosófica, Editorial Estampa, 1973.
O desenvolvimento das concepções materialistas ao longo da História, não só no chamado mundo ocidental, bem como na Índia e na China. O título pode induzir em erro. O livro, infelizmente, não aborda a crescente sofisticação da «categoria» matéria à luz dos sucessivos progressos das ciências naturais.

domingo, 15 de junho de 2014

Nova receita neoliberal: drogas e prostituição

Os neoliberais que governam a União Europeia saíram-se agora com uma espantosa ideia: contabilizar nas contas nacionais dos países da UE, incluindo o PIB, as chorudas receitas da prostituição e da venda de drogas ([1])! Esta directiva da UE-Eurostat já está a ser posta em prática pela Inglaterra e a Itália. Segundo [2] o nosso INE – A Direita que tem governado Portugal nunca gosta de ficar atrás nestas coisas, antes cumpre-as obedientemente e à letra -- também já estará preparado para responder a este novo «desafio» da UE.
    Como se sabe o PIB (Produto Interno Bruto) é suposto medir a riqueza produzida num país e corresponde à soma de todos os bens e serviços produzidos durante um certo período de tempo (mês, trimestre, ano) ([3]). O PIB per capita é usado como um indicador do nível de vida de um país.
    É certo que no PIB (proposto por um economista americano em 1936 e adoptado pela administração Roosevelt a fim de melhor compreender a Grande Depressão Americana) são incluídas verbas anómalas como a produção de firmas estrangeiras e resultados de actividades especulativas financeiras, como os jogos com derivados (nos países socialistas usa(va)-se o PNB-Produto Nacional Bruto, que não inclui tais verbas). Mas é a primeira vez que se propõe esta coisa espantosa de incluir no PIB, na medida da riqueza produzida num país, as receitas de actividades ilegais que são exactamente o oposto do que se entende por nível de vida. Bom, pelos vistos os economistas neoliberais e seus representantes nos vários governos e «arcos de governação» da UE estão-se a marimbar para valores morais e de promoção da dignidade humana -- o aumento desenfreado da desigualdade social e os recentes amores por fascistas e neo-nazis claramente apontam nesse sentido -- pelo que já não nos espantaria muito vê-los a divulgar slogans como: «Vá às prostitutas! Contribua para a riqueza nacional!» ou «Venda drogas! O PIB agradece!».
    As receitas da prostituição e das drogas são estimadas com base em detenções e apreensões policiais, pelo menos nos países como Portugal em que estas actividades são ilegais; há países onde são parcialmente legais, logo as estimativas serão de melhor qualidade. Incidentalmente, isto criará uma fonte de erro na comparação de PIBs entre países. Por outro lado, para que a comparação temporal seja possível, será necessário que o Eurostat  disponibilize novas tabelas intituladas «prostituição e drogas» com as respectivas estimativas...
    Para Portugal a contabilização de tais receitas contribuirá, segundo os peritos ([2]), para um aumento de 2,5% do PIB. Eis, assim, realizado o milagre neoliberal do crescimento das economias europeias! Eis a salvação de Portugal da péssima imagem económica transmitida aos «mercados»; agora, sim, com um crescimento do PIB de 2,5%, ou mais, estamos no bom caminho. PSD, CDS e PS vão tocar as trombetas. Sucesso económico! A economia portuguesa salva pelas prostitutas e pelos traficantes de droga!
    Porquê esta novíssima invenção neoliberal? É que, de facto, nunca na história dos países da UE tinha demorado tantos anos a recuperar um crescimento económico depois de uma crise. A figura abaixo (construída com dados do Eurostat) mostra a taxa de variação do PIB da Alemanha, França, Holanda e da média (pesada) da UE. Em Dezembro de 2007 a explosão da bolha imobiliária americana propagou-se à Europa despoletando a explosão de bolhas de crédito fácil e de capital especulativo que tinham sido a resposta capitalista à descida da taxa de lucro nos sectores produtivos. O PIB decresce em 2008 e alcança o valor mais baixo em 2009, iniciando a recuperação em 2010. Contudo, em 2013, cinco anos depois do início da crise a taxa de crescimento do PIB da França situava-se em 0,2%, abaixo dos 2,3% no ano que precedeu a crise (2007). O decréscimo também se verificava na Holanda (respectivamente -0,8%, 3,9%), Alemanha (0,4%, 3,3%) e globalmente na UE (0,1%, 3,2%).


    A tabela abaixo mostra a situação geral, indicando a vermelho os valores abaixo da taxa de crescimento registada em 2007. Para Portugal a descida foi de 2,4% para -1,4%. Como se vê, depois de cinco anos do início da crise, nenhuma das economias da UE tinha recuperado o crescimento do PIB ao valor pré-crise. Os países da UE já passaram por várias crises («crise do petróleo» em 1975, «dot-com» em 2000, etc.). Nestas crises a recuperação do crescimento do PIB demorou um ano ou menos. A situação é agora bem diferente: nunca na história do pós-guerra dos países da UE se assistiu a uma crise económica tão prolongada, da qual ainda não se saiu.

País/Ano
2007
2008
2009
2010
2011
2012
2013
Áustria
3,7
1,4
-3,8
1,8
2,8
0,9
0,3
Bélgica
2,9
1,0
-2,8
2,3
1,8
-0,1
0,2
Bulgária
6,4
6,2
-5,5
0,4
1,8
0,6
0,9
Chipre
5,1
3,6
-1,9
1,3
0,4
-2,4
-5,4
Rep. Checa
5,7
3,1
-4,5
2,5
1,8
-1,0
-0,9
Dinamarca
1,6
-0,8
-5,7
1,4
1,1
-0,4
0,4
Estónia
7,5
-4,2
-14,1
2,6
9,6
3,9
0,8
Finlândia
5,3
0,3
-8,5
3,4
2,8
-1,0
-1,4
França
2,3
-0,1
-3,1
1,7
2,0
0,0
0,2
Alemanha
3,3
1,1
-5,1
4,0
3,3
0,7
0,4
Grécia
3,5
-0,2
-3,1
-4,9
-7,1
-7,0
-3,9
Irlanda
5,0
-2,2
-6,4
-1,1
2,2
0,2
-0,3
Itália
1,7
-1,2
-5,5
1,7
0,4
-2,4
-1,9
Letónia
10,0
-2,8
-17,7
-1,3
5,3
5,2
4,1
Lituânia
9,8
2,9
-14,8
1,6
6,0
3,7
3,3
Luxemburgo
6,6
-0,7
-5,6
3,1
1,9
-0,2
2,1
Malta
4,1
3,9
-2,8
4,2
1,5
0,8
2,6
Holanda
3,9
1,8
-3,7
1,5
0,9
-1,2
-0,8
Polónia
6,8
5,1
1,6
3,9
4,5
2,0
1,6
Portugal
2,4
0,0
-2,9
1,9
-1,3
-3,2
-1,4
Roménia
6,3
7,3
-6,6
-1,1
2,3
0,6
3,5
Eslováquia
10,5
5,8
-4,9
4,4
3,0
1,8
0,9
Eslovénia
7,0
3,4
-7,9
1,3
0,7
-2,5
-1,1
Espanha
3,5
0,9
-3,8
-0,2
0,1
-1,6
-1,2
Suécia
3,3
-0,6
-5,0
6,6
2,9
0,9
1,6
Reino Unido
3,4
-0,8
-5,2
1,7
1,1
0,3
1,7
UE (27)
3,2
0,4
-4,5
2,0
1,7
-0,4
0,1

    O decrescimento económico também se reflectiu, naturalmente, no PIB per capita (PIBpc). A tabela abaixo mostra os valores do PIBpc em 2012 e o ano anterior e mais próximo de 2012 em que o PIBpc de um país se situou mais perto do valor para 2012 ([4]). Os resultados são claros: em termos de «nível de vida» médio o recuo foi de vários anos, atingindo o impressionante recuo de 12 anos em Portugal e 14 anos na Itália. Só a Alemanha escapou: o seu PIBpc tem sempre aumentado. O que levanta de imediato a suspeita de quem tem lucrado com a crise e com os resgates da política de «austeridade». Além disso, o PIBpc, dado ser uma média, não conta a «história» toda; com a progressiva desigualdade social em todos estes países o recuo de nível de vida das camadas mais desfavorecidas da população é bem pior.


País
PIBpc (€) em 2012
Ano em que o PIBpc esteve mais próximo do de 2012
Respectivo valor (€)
Áustria
36.200
2008 (4 anos antes)
36.192
Bélgica
32.639
2006 (6 anos antes)
32.830
Chipre
23.452
2005 (7 anos antes)
24.408
Dinamarca
32.363
2004 (8 anos antes)
32.490
Finlândia
31.610
2006 (6 anos antes)
31.940
França
29.819
2006 (6 anos antes)
29.970
Alemanha
34.819
2012 (0 anos antes)
34.819
Grécia
20.922
2001 (11 anos antes)
21.107
Itália
26.310
1998 (14 anos antes)
26.374
Luxemburgo
65.736
2004 (8 anos antes)
65.882
Malta
23.204
2011 (1 ano antes)
23.192
Holanda
36.438
2006 (6 anos antes)
36.238
Portugal
21.032
2000 (12 anos antes)
21.155
Espanha
26.395
2003 (9 anos antes)
26.459
Suécia
34.945
2007 (5 anos antes)
34.782
Reino Unido
32.671
2004 (8 anos antes)
32.259
 



    Perante este cenário de descalabro económico do capitalismo europeu, e sem perspectivas credíveis à vista, os abencerragens da Comissão Europeia e de outras instituições de Bruxelas sentiram-se pressionados a mostrar aos povos da UE imagens mais optimistas, que mascarassem a realidade profunda. Usar com essa finalidade as receitas da prostituição e das drogas era o que estava mais à mão.
    Hoje em dia não é na produção de valor real que assenta o PIB da UE. É, sim, na produção de valor fictício (capital especulativo) e na distribuição de valor (comércio, movimentos de capitais). A prostituição e o tráfico de drogas são exemplos de distribuição de valor, a troco de serviços. Ilegais, é certo. Mas não deveriam ser também ilegais os jogos de casino dos bancos e firmas de investimento, em que se apostam biliões sacados aos trabalhadores? A ideia de «ilegalidade» é cada vez pior definida no capitalismo moderno. Tudo é legal, desde que dê lucro.
    Agora foram, de facto, legalizadas a prostituição e as drogas. Amanhã, a manter-se o declínio económico do capitalismo europeu, talvez passem a ser contabilizadas no PIB as receitas dos carteiristas. Ao fim e ao cabo, a actividade dos carteiristas é também uma distribuição de valor. E os maiores especialistas em carteirismo até já estão instalados nos órgãos de poder da UE e nos partidos dos «arcos de governação». Carteiristas e aspirantes a carteiristas.

[1] A notícia sobre a contabilização no PIB das receitas da prostituição e droga aparece em vários portais na Internet. Em Portugal foi noticiada no JN de 10/6 e no CM de 11/6 em notícia de primeira página sob o título «Prostituição rende 1,1 mil milhões de euros. Vai contar para o PIB mas não paga imposto».
[2] JN 12/6: «PIB vai crescer 2,5% com novas regras europeias».
[3] Na contabilização do PIB, considera-se apenas bens e serviços finais, excluindo todos os bens de consumo intermédio. Isso é feito com o intuito de evitar o problema da dupla contagem, quando valores gerados na cadeia de produção poderiam aparecer contados duas vezes na soma do PIB.
[4] Os dados são do Banco Mundial. Excluíram-se os antigos países socialistas da Europa de Leste, com estruturas económicas específicas e que só entraram recentemente na UE.