Regularmente lá vem um representante do grande capital (um
Van Zeller, um Ferraz da Costa, um Belmiro, ou quejandos), ou um «intelectual»
ao seu serviço, repetir nos media uma
das mentiras do costume: que a culpa da crise é dos consumidores (andaram a
consumir de mais), que os trabalhadores portugueses são uns mandriões, que a
legislação laboral não é suficientemente flexível (leia-se, ainda não foram
liquidados todos os direitos laborais) o que afecta a competitividade das
empresas (leia-se, os lucros do capital), que o Estado é gastador, que há
demasiada função pública e ainda por cima com espantosas benesses, que o Estado
não sabe gerir empresas devendo, por isso, ser tudo (que possa dar lucro) privatizado,
etc., etc.
É uma campanha persistente, uma contínua lavagem ao cérebro,
conduzida pelos mesmos senhores do costume, pelos mesmos economistas e
opiniosos. Uma campanha globalizada, 24 horas por dia, a cargo dos grandes
meios de comunicação, nacionais e estrangeiros, controlados pelo grande
capital.
O objectivo ideológico da campanha é fácil de ver: no mundo
do capital, por definição, o capital nunca tem culpa de nada. Têm-na, sim, os
que impedem a «economia de mercado» de funcionar como deve ser, sem quaisquer
entraves de qualquer espécie: os trabalhadores que insistem em defender os seus
direitos, e um ou outro elemento do Poder que, quanto mais não seja por razões eleitoralistas,
revela veleidades regulamentadoras e preocupação com serviços públicos.
II - Belmiro dixit
No passado 7 de Março, o patrão da SONAE Belmiro de Azevedo,
um dos homens mais ricos de Portugal, debitava mais uma das suas tiradas
sapientes. Dessas tiradas que muitos elementos da pequena burguesia e
«intelectuais» bebem e repetem com fervor, já que vêem Belmiro como uma espécie
de «cientista» e oráculo da economia. Disse, nomeadamente, que antes de aumentar salários é
preciso aumentar a produtividade, já que «os alemães, por hora, fazem três ou
quatro vezes mais do que os portugueses».
Já desmontámos em grande parte este mito dos trabalhadores
mandriões (tal como outros mitos) em artigos anteriores. Mas vale a pena complementar
e actualizar essa desmontagem. É o que faremos a seguir.
III - Trabalhador
português: baixo salário por muitas horas
Vamos circunscrever a nossa discussão aos 12 países que pertenciam em 2001 à Zona Euro (ZE): Áustria, Bélgica, Finlândia, França, Alemanha, Grécia, Irlanda, Itália, Luxemburgo, Holanda, Portugal, Espanha.
Como pano de fundo, comecemos por notar que:
1) Os trabalhadores
portugueses são os mais mal pagos da ZE. Principalmente os do sector produtivo.
Segundo dados da OCDE, a compensação média anual do trabalho
na indústria era, em 2008, em dólares e em paridade de poder de
compra (PPC), tal como mostra a figura abaixo. A compensação do trabalho em Portugal
tinha o valor mais baixo, correspondendo a cerca de metade (57,4%) do da
Espanha!
Compensação média anual do trabalho na indústria em 2008 (valores em US$ e PPC). Os dados da OCDE não incluem a Grécia.
Compensação média anual do trabalho na indústria em 2008 (valores em US$ e PPC). Os dados da OCDE não incluem a Grécia.
Estes dados da OCDE não incluem os valores para Portugal a
partir de 2008, mas podemos estar certos de que a compensação do trabalho em
Portugal não só não melhorou mas inclusive se agravou em termos comparativos,
olhando para as taxas de crescimento dos salários
horários de 2012 face a 2008 constantes da tabela abaixo (dados da OCDE).
Portugal está no fundo da tabela. Foi o único país onde se registou um
decrescimento! (Sabemos que um decréscimo também aconteceu na Grécia, país que
não consta destes dados da OCDE).
Crescimento (%) de salários por hora na indústria em
2012 face a 2008. Ordenação decrescente.
|
|
Espanha
|
11,3%
|
Itália
|
11,2%
|
Finlândia
|
10,2%
|
Alemanha
|
9,6%
|
Áustria
|
9,3%
|
França
|
9,2%
|
Holanda
|
7,6%
|
Irlanda
|
6,1%
|
Luxemburgo
|
0,7%
|
Portugal
|
-8,3%
|
Portugal também se situa no fundo da tabela dos salários mínimos mensais, tendo
inclusive um salário mínimo menor que o da Grécia:
Salário mínimo (€) em PPC em 2012 (OCDE, índices PPC
do Eurostat)
|
||
Valor
nominal
|
Valor
em PPC relativo a Portugal
|
|
Luxemburgo
|
1813
|
2706
|
Holanda
|
1568
|
2139
|
Bélgica
|
1529
|
2105
|
Irlanda
|
1499
|
2021
|
França
|
1412
|
1963
|
Áustria
|
1167
|
1592
|
Espanha
|
748
|
847
|
Grécia
|
588
|
652
|
Portugal
|
566
|
566
|
2) Os trabalhadores
portugueses são dos que mais horas trabalham na ZE.
No período de 1995 a 2011 (pelo menos), Grécia, Portugal e
Espanha foram (por esta ordem) os países com maior número de horas semanais de
trabalho por trabalhador (dados da OCDE). Holanda e Alemanha foram os países com menos horas semanais de trabalho
por trabalhador. A figura abaixo mostra os valores para 2011. Dados parciais do
Eurostat para 2012 e 2013 confirmam esta constatação.
Horas de trabalho semanal por trabalhador
em 2011 (OCDE; sem dados de 2012 e 2013 na altura da consulta).
IV - Produtividade,
em que condições?
Em http://revolucaoedemocracia.blogspot.pt/2012/09/a-crise-do-euro-uma-apreciacao-parte-ii_21.html
apresentámos um exemplo de medição da produtividade e do custo unitário do
trabalho ao nível de uma empresa. Dissemos, então, que se uma empresa emprega N = 100 trabalhadores que fabricam V = 1000 unidades por dia e o salário
médio diário é de s = 40 €, temos que
a produtividade do trabalho é de p = V/N
= 10 unidades/trabalhador e o custo
unitário do trabalho é de s/p = 40/10 = 4 €/unidade.
Dissemos ainda que, para toda a economia, o cálculo era realizado
de forma semelhante usando valores globais (agregados para toda a economia).
Vejamos, em termos gerais, como isso é feito para um dado ano:
a) Obtém-se o valor de tudo que é, de facto, produzido nesse ano por todo o sector produtivo da
economia. Designemos esse valor por VA.
Quando dizemos «valor de facto produzido» o significado é «valor acrescentado».
Se uma fábrica adquire 10.000 € de tomates para fabricar pasta de tomate no
valor de 50.000 € ela não produz, de
facto, um valor monetário de 50.000 €, mas sim 40.000 € que acrescenta aos 10.000 € pré-existentes.
O VA pode ser
determinado em termos dos preços correntes -- valor acrescentado bruto (VAB) também dito nominal (VAn) -- ou dividindo este por um factor
que tem em conta a inflação -- valor acrescentado real (VAr). (Note-se, de passagem, que o PIB é simplesmente o VAB
uma vez descontados impostos e adicionados subsídios.)
b) Se o total de trabalhadores de todo o sector produtivo é N, então, como no exemplo acima de uma
única empresa, a produtividade (global) do trabalho é P = VA/N; é, portanto, um valor acrescentado por
trabalhador.
c) Finalmente, uma vez conhecido o valor total da
compensação do trabalho -- salários mais benefícios sociais --, que designamos
por S, o custo unitário do trabalho, CUT, é dado pelo quociente S/VA.
Podemos escrever CUT = S/VA
= sN/VA = s/P, sendo s = S/N a compensação média do trabalho.
Um aspecto importante: ao contrário do que acontecia ao
nível de uma empresa, em que o custo unitário era um valor dimensional expresso
num dada unidade monetária (p. ex., euros por unidade produzida), o custo
unitário é agora uma simples fracção do agregado VA; é um valor sem dimensão.
* *
*
Há várias dificuldades que surgem quando se pretende
comparar entre países a produtividade e o custo unitário do trabalho que as
estatísticas oficiais apresentam, calculados como vimos acima.
A primeira dificuldade
é que o número de horas de trabalho varia de país para país. Pode-se
minorar (mas não eliminar) esta dificuldade entrando em linha de conta com o
número médio de horas de trabalho. A
figura abaixo, construída com dados do Eurostat, mostra a produtividade real do trabalho -- isto é, calculada a
partir do VAr --, em euros por hora
de trabalho.
Produtividade real do trabalho em
euros/hora (dados do Eurostat).
O valor da produtividade real de Portugal é a menor dos
países da ZE. Sempre o foi, desde que
há regsitos Em 2012 foi cerca de 2,5 vezes menor que a da Alemanha; não 3 ou 4
vezes menor como disse Belmiro. De facto, quando o povo português levou a cabo
a Revolução de Abril, o país encontrava-se num baixíssimo nível de
desenvolvimento económico e envolvido numa guerra colonial em três frentes.
Toda a evolução económica posterior teria que fatalmente reflectir isso.
Note-se, entretanto, que Portugal tem sido entre os países europeus ocidentais um
dos que regista maiores taxas de crescimento da produtividade (ver tabela
abaixo).
Taxa de
crescimento (%) da produtividade real do trabalho (fonte: OCDE).
Ordenação
decrescente dos valores de 2009 a 2012.
|
||
País
|
De 1995 a 2012
|
De 2009 a 2012
|
Irlanda
|
3,6
|
2,9
|
Portugal
|
2
|
2,7
|
Espanha
|
0,9
|
2,3
|
Alemanha
|
1,3
|
1,4
|
Áustria
|
1,5
|
1,1
|
Finlândia
|
1,6
|
1,1
|
França
|
1,2
|
0,9
|
Itália
|
0,3
|
0,5
|
Holanda
|
1,1
|
0,4
|
Bélgica
|
0,8
|
0,3
|
Luxemburgo
|
0,7
|
-0,6
|
Grécia
|
1,9
|
-1,2
|
A segunda dificuldade
tem a ver com o facto de que a produtividade é calculada com base no agregado
VA, pelo que diferenças entre países dos cabazes de bens e serviços produzidos
não são tidas em conta. A esta dificuldade já nos tínhamos referido em http://revolucaoedemocracia.blogspot.pt/2012/09/a-crise-do-euro-uma-apreciacao-parte-ii_21.html.
Um país que produza primordialmente bens de elevado grau tecnológico, logo de
elevado VA (caso da Alemanha),
exibirá sempre, só por essa razão, valores mais elevados da produtividade do
trabalho do que outro que produza primordialmente matérias-primas e bens de
baixo VA, como produtos alimentares, pasta
de papel, calçado, têxteis e vestuário (em certa medida, o caso de Portugal; ver http://www.portugalglobal.pt/PT/InvestirPortugal/guiadoinvestidor/PerfildePortugal/Paginas/ComercioInternacional.aspx
).
A terceira dificuldade
tem a ver com o nível dos meios de produção. Um lenhador com um machado,
mesmo que trabalhe esforçadamente 12 horas por dia, é incapaz de produzir tanto
(abater tantas árvores) quanto um lenhador que, calmamente, trabalha 6 horas
por dia com uma moderna moto-serra. O problema não reside na produtividade do
trabalho; reside, sim, na produtividade do capital. Ora, a definição acima de P e de CUT é «cega» quanto ao capital investido em meios de produção
(designado por capital fixo).
Existem muitas outras dificuldades que também contribuem
para tornar sem sentido qualquer
comparação do CUT e da produtividade do trabalho entre países: diferenças
de formação técnica entre países, diferenças nas condições de trabalho,
diferenças na qualidade dos serviços públicos (p. ex., assistência em caso de
doença ou acidente de trabalho), diferenças nas dimensões das empresas e
economias de escala que proporcionam, etc.
V - E a produtividade
do capital?
Há uma comparação
entre países, que essa sim, tem sentido. É a comparação entre a evolução relativa
do custo unitário do trabalho face ao custo unitário do capital; entre a
produtividade do trabalho face à produtividade do capital. Ora, é essa
comparação que destrói pela base a retórica do Belmiro e quejandos.
Vamos abordar esta questão de uma forma muito simples.
Consideremos o VAn. Ele pode
decompor-se em duas parcelas, como se segue:
VAn = Sn + Ln,
onde Sn representa
a compensação total do trabalho (salários e benefícios sociais) e Ln os lucros totais do capital. Ambas as
parcelas, tal como VAn, avaliadas em
termos nominais (aos preços correntes do
mercado). A decomposição simplesmente exprime que todo o valor produzido
ou vai para o trabalho ou vai para o capital.
Cada uma das duas parcelas pode, por sua vez, exprimir-se da
seguinte forma:
Sn = sn (compensação média, nominal, do trabalho) x N
(n.º total de trabalhadores)
Ln = rn (taxa média de lucro, nominal, do capital) x C (valor total do capital investido)
A primeira parcela já vimos que correspondia ao CUT = Sn/VAn. A segunda parcela
é aquilo que se denomina custo unitário
do capital: CUC = Ln/VAn.
O CUC pode escrever-se assim: CUC = Ln/VAn = rn C/VAn = rn /(VAn/C) = rn
/ Pc. Pc = VAn/C é a produtividade do capital: quanto
do valor acrescentado provém de C.
Temos, portanto:
1 = CUT +
CUC
Para que o custo unitário do trabalho diminua -- logo, a
produtividade do trabalhe aumente mantendo-se o salário médio -- é preciso que
o custo unitário do capital aumente -- logo, a produtividade do capital diminua
se a taxa de lucro não se alterar.
Os dados de Sn e VAn estão disponíveis no Eurostat pelo
que é fácil calcular o CUT e o CUC.
As tabelas abaixo mostram taxas de crescimento do CUT e CUC nominais de 2009 (início da crise) face a 2012. Portugal está
entre os quatro países da ZE em que o CUT
mais decresceu, logo a produtividade nominal do trabalho mais aumentou. De
facto, como vimos acima na secção IV, em termos da produtividade real Portugal
é o segundo país da ZE em que a produtividade mais aumentou. Quanto ao CUC, Portugal
é o quarto país da ZE em que o custo unitário do capital mais aumentou. Em
igualdade de taxas de lucro tal corresponde a ser o quarto país de menor produtividade do capital. Observando,
contudo, os valores da produtividade real versus
nominal do trabalho, o desempenho do capital é ainda pior do que a quarta
posição da tabela abaixo. A Alemanha situa-se a meio da tabela, com cerca de
seis vezes melhor desempenho do capital do que Portugal. Estes resultados
concordam e complementam outros que divulgámos (http://revolucaoedemocracia.blogspot.pt/2012/09/a-crise-do-euro-uma-apreciacao-parte-ii_21.html).
|
|
O mau desempenho do capital deve-se fundamentalmente à
política de liquidação continuada do nosso sector produtivo, levada a cabo por
todos os governos PS-PSD-CDS que se sucederam a seguir ao 25 de Novembro de
1975, ao perfil de actividads económicas do país, e às condições obsoletas de
produção (equipamentos e instalações antiquadas) que são o corolário da falta
de investimento que já se vinha a verificar mesmo antes da crise (ver figura
abaixo de http://resistir.info/e_rosa/quebra_investimento_01jul13.html)
e se tem vindo a agravar. O próprio Belmiro, que em tempos tinha reconhecido a
situação «atamancada» do sector produtivo mudou agora de opinião. Como vimos
acima (Ln = rn x C), investir mais em
meios de produção, mantendo os lucros totais, faria diminuir a taxa de lucro.
Razão suficiente para Belmiro mudar de música olhando para o outro lado da
equação; por outras palavras, insistindo na manutenção do castigo dos que
sempre são castigados: os trabalhadores.
Evolução do investimento (formação bruta de capital fixo) em Portugal no período de 2005 a 2013 (milhões de euros a preços de 2006). Dados do INE e OER-2013. Gráfico de Eugénio Rosa, «A Quebra do Investimento em Portugal», 1/7/2013, http://resistir.info/e_rosa/quebra_investimento_01jul13.html.
Evolução do investimento (formação bruta de capital fixo) em Portugal no período de 2005 a 2013 (milhões de euros a preços de 2006). Dados do INE e OER-2013. Gráfico de Eugénio Rosa, «A Quebra do Investimento em Portugal», 1/7/2013, http://resistir.info/e_rosa/quebra_investimento_01jul13.html.
VI – Conclusão
Apesar dos baixos salários e muitas horas de trabalho dos
trabalhadores portugueses, o indicador oficial da produtividade laboral portuguesa,
embora exibindo as maiores taxas de crescimento da Zona Euro, continua baixo.
Há duas causas fundamentais para isso: uma, é a causa histórica do fraco e
tardio desenvolvimento capitalista de Portugal, baseado essencialmente em
elevados níveis de exploração do trabalho nos sectores primários (e na pilhagem
colonial enquanto esta durou) que amarrou o país a um perfil ainda não superado
de actividades económicas de baixo valor acrescentado; outra, a causa próxima, é
a queda da taxa de lucro no sector produtivo subsistente, queda exacerbada na
última crise, que incita o grande capital não financeiro a eliminar, diminuir
ou atrasar investimentos em meios de produção, mantendo obsoleto o tecido
produtivo.
Belmiros e quejandos estão entre os chefes da orquestra
económica portuguesa; actualmente, com poder quase total sobre o mercado de
trabalho. Se o indicador da produtividade laboral é o que é, se o valor
acrescentado per capita é o que é,
isso apenas demonstra a total falência do capitalismo em Portugal. Quando os
chefes da orquestra assacam culpas aos trabalhadores superexplorados estão
simplesmente a deturpar a realidade, estão simplesmente a tentar convencer-nos
que o capitalismo ainda tem algo a oferecer; na óptica deles, assim os
trabalhadores os ouvissem e aceitassem continuar a ser superexplorados. Para que
os lucros dos chefes da orquestra se pudessem manter «A Bem da Nação».
quod erat demonstrandum
Post Scriptum:
Tínhamos acabado de escrever este artigo quando lemos no JN que um eurodeputado
austríaco, do partido neonazi (FPO), tinha afirmado na campanha para as
eleições ao parlamento europeu que os portugueses trabalham pouco e que na
União Europeia «só os alemães e os austríacos» é que trabalham. Belmiro e quejandos
estão bem acompanhados nas suas convicções.