domingo, 30 de março de 2014

Belmiro e o mito dos trabalhadores mandriões

I - No mundo do capital, por definição, o capital nunca tem culpa de nada
   
    Regularmente lá vem um representante do grande capital (um Van Zeller, um Ferraz da Costa, um Belmiro, ou quejandos), ou um «intelectual» ao seu serviço, repetir nos media uma das mentiras do costume: que a culpa da crise é dos consumidores (andaram a consumir de mais), que os trabalhadores portugueses são uns mandriões, que a legislação laboral não é suficientemente flexível (leia-se, ainda não foram liquidados todos os direitos laborais) o que afecta a competitividade das empresas (leia-se, os lucros do capital), que o Estado é gastador, que há demasiada função pública e ainda por cima com espantosas benesses, que o Estado não sabe gerir empresas devendo, por isso, ser tudo (que possa dar lucro) privatizado, etc., etc.
    É uma campanha persistente, uma contínua lavagem ao cérebro, conduzida pelos mesmos senhores do costume, pelos mesmos economistas e opiniosos. Uma campanha globalizada, 24 horas por dia, a cargo dos grandes meios de comunicação, nacionais e estrangeiros, controlados pelo grande capital.
    O objectivo ideológico da campanha é fácil de ver: no mundo do capital, por definição, o capital nunca tem culpa de nada. Têm-na, sim, os que impedem a «economia de mercado» de funcionar como deve ser, sem quaisquer entraves de qualquer espécie: os trabalhadores que insistem em defender os seus direitos, e um ou outro elemento do Poder que, quanto mais não seja por razões eleitoralistas, revela veleidades regulamentadoras e preocupação com serviços públicos.
  
II - Belmiro dixit
   
    No passado 7 de Março, o patrão da SONAE Belmiro de Azevedo, um dos homens mais ricos de Portugal, debitava mais uma das suas tiradas sapientes. Dessas tiradas que muitos elementos da pequena burguesia e «intelectuais» bebem e repetem com fervor, já que vêem Belmiro como uma espécie de «cientista» e oráculo da economia. Disse, nomeadamente, que antes de aumentar salários é preciso aumentar a produtividade, já que «os alemães, por hora, fazem três ou quatro vezes mais do que os portugueses».
    Já desmontámos em grande parte este mito dos trabalhadores mandriões (tal como outros mitos) em artigos anteriores. Mas vale a pena complementar e actualizar essa desmontagem. É o que faremos a seguir.
  
III - Trabalhador português: baixo salário por muitas horas
   
    Vamos circunscrever a nossa discussão aos 12 países que pertenciam em 2001 à Zona Euro (ZE): Áustria, Bélgica, Finlândia, França, Alemanha, Grécia, Irlanda, Itália, Luxemburgo, Holanda, Portugal, Espanha.
    Como pano de fundo, comecemos por notar que:
   
   1) Os trabalhadores portugueses são os mais mal pagos da ZE. Principalmente os do sector produtivo.
    Segundo dados da OCDE, a compensação média anual do trabalho na indústria era, em  2008, em dólares e em paridade de poder de compra (PPC), tal como mostra a figura abaixo. A compensação do trabalho em Portugal tinha o valor mais baixo, correspondendo a cerca de metade (57,4%) do da Espanha!
 Compensação média anual do trabalho na indústria em  2008 (valores em US$ e PPC). Os dados da OCDE não incluem a Grécia.
   
    Estes dados da OCDE não incluem os valores para Portugal a partir de 2008, mas podemos estar certos de que a compensação do trabalho em Portugal não só não melhorou mas inclusive se agravou em termos comparativos, olhando para as taxas de crescimento dos salários horários de 2012 face a 2008 constantes da tabela abaixo (dados da OCDE). Portugal está no fundo da tabela. Foi o único país onde se registou um decrescimento! (Sabemos que um decréscimo também aconteceu na Grécia, país que não consta destes dados da OCDE).
   
Crescimento (%) de salários por hora na indústria em 2012 face a 2008. Ordenação decrescente.
Espanha
11,3%
Itália
11,2%
Finlândia
10,2%
Alemanha
9,6%
Áustria
9,3%
França
9,2%
Holanda
7,6%
Irlanda
6,1%
Luxemburgo
0,7%
Portugal
-8,3%
  
    Portugal também se situa no fundo da tabela dos salários mínimos mensais, tendo inclusive um salário mínimo menor que o da Grécia:
  
Salário mínimo (€) em PPC em 2012 (OCDE, índices PPC do Eurostat)

Valor nominal
Valor em PPC relativo a Portugal
Luxemburgo
1813
2706
Holanda
1568
2139
Bélgica
1529
2105
Irlanda
1499
2021
França
1412
1963
Áustria
1167
1592
Espanha
748
847
Grécia
588
652
Portugal
566
566
   
    2) Os trabalhadores portugueses são dos que mais horas trabalham na ZE.
    No período de 1995 a 2011 (pelo menos), Grécia, Portugal e Espanha foram (por esta ordem) os países com maior número de horas semanais de trabalho por trabalhador (dados da OCDE). Holanda e Alemanha foram os  países com menos horas semanais de trabalho por trabalhador. A figura abaixo mostra os valores para 2011. Dados parciais do Eurostat para 2012 e 2013 confirmam esta constatação.
   
 
Horas de trabalho semanal por trabalhador em 2011 (OCDE; sem dados de 2012 e 2013 na altura da consulta).
  
IV - Produtividade, em que condições?
   
    Em http://revolucaoedemocracia.blogspot.pt/2012/09/a-crise-do-euro-uma-apreciacao-parte-ii_21.html apresentámos um exemplo de medição da produtividade e do custo unitário do trabalho ao nível de uma empresa. Dissemos, então, que se uma empresa emprega N = 100 trabalhadores que fabricam V = 1000 unidades por dia e o salário médio diário é de s = 40 €, temos que a produtividade do trabalho é de p = V/N = 10  unidades/trabalhador e o custo unitário do trabalho é de s/p = 40/10 = 4 €/unidade.
    Dissemos ainda que, para toda a economia, o cálculo era realizado de forma semelhante usando valores globais (agregados para toda a economia). Vejamos, em termos gerais, como isso é feito para um dado ano:
   
    a) Obtém-se o valor de tudo que é, de facto, produzido nesse ano por todo o sector produtivo da economia. Designemos esse valor por VA. Quando dizemos «valor de facto produzido» o significado é «valor acrescentado». Se uma fábrica adquire 10.000 € de tomates para fabricar pasta de tomate no valor de 50.000 € ela não produz, de facto, um valor monetário de 50.000 €, mas sim 40.000 € que acrescenta aos 10.000 € pré-existentes.
    O VA pode ser determinado em termos dos preços correntes -- valor acrescentado bruto (VAB) também dito nominal (VAn) -- ou dividindo este por um factor que tem em conta a inflação -- valor acrescentado real (VAr). (Note-se, de passagem, que o PIB é simplesmente o VAB uma vez descontados impostos e adicionados subsídios.)
    b) Se o total de trabalhadores de todo o sector produtivo é N, então, como no exemplo acima de uma única empresa, a produtividade (global) do trabalho é P = VA/N; é, portanto, um valor acrescentado por trabalhador.
    c) Finalmente, uma vez conhecido o valor total da compensação do trabalho -- salários mais benefícios sociais --, que designamos por S, o custo unitário do trabalho, CUT, é dado pelo quociente S/VA. Podemos escrever CUT = S/VA = sN/VA = s/P, sendo s = S/N a compensação média do trabalho.
   
    Um aspecto importante: ao contrário do que acontecia ao nível de uma empresa, em que o custo unitário era um valor dimensional expresso num dada unidade monetária (p. ex., euros por unidade produzida), o custo unitário é agora uma simples fracção do agregado VA; é um valor sem dimensão.
   
*    *    *
   
    Há várias dificuldades que surgem quando se pretende comparar entre países a produtividade e o custo unitário do trabalho que as estatísticas oficiais apresentam, calculados como vimos acima.
   
    A primeira dificuldade é que o número de horas de trabalho varia de país para país. Pode-se minorar (mas não eliminar) esta dificuldade entrando em linha de conta com o número médio de horas de trabalho. A figura abaixo, construída com dados do Eurostat, mostra a produtividade real do trabalho -- isto é, calculada a partir do VAr --, em euros por hora de trabalho.
   
 
Produtividade real do trabalho em euros/hora (dados do Eurostat).
  
    O valor da produtividade real de Portugal é a menor dos países da ZE. Sempre o foi, desde que há regsitos Em 2012 foi cerca de 2,5 vezes menor que a da Alemanha; não 3 ou 4 vezes menor como disse Belmiro. De facto, quando o povo português levou a cabo a Revolução de Abril, o país encontrava-se num baixíssimo nível de desenvolvimento económico e envolvido numa guerra colonial em três frentes. Toda a evolução económica posterior teria que fatalmente reflectir isso. Note-se, entretanto, que Portugal tem sido entre os países europeus ocidentais um dos que regista maiores taxas de crescimento da produtividade (ver tabela abaixo).
  
Taxa de crescimento (%) da produtividade real do trabalho (fonte: OCDE).
Ordenação decrescente dos valores de 2009 a 2012.
País
De 1995 a 2012
De 2009 a 2012
Irlanda
3,6
2,9
Portugal
2
2,7
Espanha
0,9
2,3
Alemanha
1,3
1,4
Áustria
1,5
1,1
Finlândia
1,6
1,1
França
1,2
0,9
Itália
0,3
0,5
Holanda
1,1
0,4
Bélgica
0,8
0,3
Luxemburgo
0,7
-0,6
Grécia
1,9
-1,2
  
    A segunda dificuldade tem a ver com o facto de que a produtividade é calculada com base no agregado VA, pelo que diferenças entre países dos cabazes de bens e serviços produzidos não são tidas em conta. A esta dificuldade já nos tínhamos referido em http://revolucaoedemocracia.blogspot.pt/2012/09/a-crise-do-euro-uma-apreciacao-parte-ii_21.html. Um país que produza primordialmente bens de elevado grau tecnológico, logo de elevado VA (caso da Alemanha), exibirá sempre, só por essa razão, valores mais elevados da produtividade do trabalho do que outro que produza primordialmente matérias-primas e bens de baixo VA, como produtos alimentares, pasta de papel, calçado, têxteis e vestuário (em certa medida, o caso de Portugal; ver http://www.portugalglobal.pt/PT/InvestirPortugal/guiadoinvestidor/PerfildePortugal/Paginas/ComercioInternacional.aspx ).
   
    A terceira dificuldade tem a ver com o nível dos meios de produção. Um lenhador com um machado, mesmo que trabalhe esforçadamente 12 horas por dia, é incapaz de produzir tanto (abater tantas árvores) quanto um lenhador que, calmamente, trabalha 6 horas por dia com uma moderna moto-serra. O problema não reside na produtividade do trabalho; reside, sim, na produtividade do capital. Ora, a definição acima de P e de CUT é «cega» quanto ao capital investido em meios de produção (designado por capital fixo).
   
   Existem muitas outras dificuldades que também contribuem para tornar sem sentido qualquer comparação do CUT e da produtividade do trabalho entre países: diferenças de formação técnica entre países, diferenças nas condições de trabalho, diferenças na qualidade dos serviços públicos (p. ex., assistência em caso de doença ou acidente de trabalho), diferenças nas dimensões das empresas e economias de escala que proporcionam, etc.
  
V - E a produtividade do capital?
   
    Há uma comparação entre países, que essa sim, tem sentido. É a comparação entre a evolução relativa do custo unitário do trabalho face ao custo unitário do capital; entre a produtividade do trabalho face à produtividade do capital. Ora, é essa comparação que destrói pela base a retórica do Belmiro e quejandos.
    Vamos abordar esta questão de uma forma muito simples. Consideremos o VAn. Ele pode decompor-se em duas parcelas, como se segue:
   
VAn = Sn + Ln,
   
onde Sn representa a compensação total do trabalho (salários e benefícios sociais) e Ln os lucros totais do capital. Ambas as parcelas, tal como VAn, avaliadas em termos nominais (aos preços correntes do  mercado). A decomposição simplesmente exprime que todo o valor produzido ou vai para o trabalho ou vai para o capital.
    Cada uma das duas parcelas pode, por sua vez, exprimir-se da seguinte forma:
   
Sn = sn (compensação média, nominal, do trabalho) x N (n.º total de trabalhadores)
Ln = rn (taxa média de lucro, nominal, do capital) x C (valor total do capital investido)
  
    Vamos dividir ambos os termos de VAn = Sn + Ln por VAn. Obtém-se:
    A primeira parcela já vimos que correspondia ao CUT = Sn/VAn. A segunda parcela é aquilo que se denomina custo unitário do capital: CUC = Ln/VAn. O CUC pode escrever-se assim: CUC = Ln/VAn = rn C/VAn = rn /(VAn/C) = rn / Pc. Pc = VAn/C é a produtividade do capital: quanto do valor acrescentado provém de C.
    Temos, portanto:
1 = CUT + CUC
   
    Para que o custo unitário do trabalho diminua -- logo, a produtividade do trabalhe aumente mantendo-se o salário médio -- é preciso que o custo unitário do capital aumente -- logo, a produtividade do capital diminua se a taxa de lucro não se alterar.
    Os dados de Sn e VAn estão disponíveis no Eurostat pelo que é fácil calcular o CUT e o CUC.
    As tabelas abaixo mostram taxas de crescimento do CUT e CUC nominais de 2009 (início da crise) face a 2012. Portugal está entre os quatro países da ZE em que o CUT mais decresceu, logo a produtividade nominal do trabalho mais aumentou. De facto, como vimos acima na secção IV, em termos da produtividade real Portugal é o segundo país da ZE em que a produtividade mais aumentou. Quanto ao CUC, Portugal é o quarto país da ZE em que o custo unitário do capital mais aumentou. Em igualdade de taxas de lucro tal corresponde a ser o quarto país de menor produtividade do capital. Observando, contudo, os valores da produtividade real versus nominal do trabalho, o desempenho do capital é ainda pior do que a quarta posição da tabela abaixo. A Alemanha situa-se a meio da tabela, com cerca de seis vezes melhor desempenho do capital do que Portugal. Estes resultados concordam e complementam outros que divulgámos (http://revolucaoedemocracia.blogspot.pt/2012/09/a-crise-do-euro-uma-apreciacao-parte-ii_21.html).

Taxa de crescimento do CUT nominal (%) de 2009 a 2012
Bélgica
0,5
Itália
0,4
França
0,4
Finlândia
-0,1
Áustria
-0,7
Alemanha
-1,0
Holanda
-1,6
Luxemburgo
-4,5
Portugal
-4,9
Espanha
-5,3
Grécia
-8,5
Irlanda
-9,0
Taxa de crescimento do CUC nominal (%) de 2009 a 2012
Áustria
-0,8
Finlândia
-0,5
Bélgica
-0,4
França
0,2
Alemanha
0,9
Grécia
1,3
Irlanda
2,3
Itália
5,8
Portugal
6,0
Holanda
6,2
Luxemburgo
6,7
Espanha
9,5

    O mau desempenho do capital deve-se fundamentalmente à política de liquidação continuada do nosso sector produtivo, levada a cabo por todos os governos PS-PSD-CDS que se sucederam a seguir ao 25 de Novembro de 1975, ao perfil de actividads económicas do país, e às condições obsoletas de produção (equipamentos e instalações antiquadas) que são o corolário da falta de investimento que já se vinha a verificar mesmo antes da crise (ver figura abaixo de http://resistir.info/e_rosa/quebra_investimento_01jul13.html) e se tem vindo a agravar. O próprio Belmiro, que em tempos tinha reconhecido a situação «atamancada» do sector produtivo mudou agora de opinião. Como vimos acima (Ln = rn x C), investir mais em meios de produção, mantendo os lucros totais, faria diminuir a taxa de lucro. Razão suficiente para Belmiro mudar de música olhando para o outro lado da equação; por outras palavras, insistindo na manutenção do castigo dos que sempre são castigados: os trabalhadores.
   
 Evolução do investimento (formação bruta de capital fixo) em Portugal no período de 2005 a 2013 (milhões de euros a preços de 2006). Dados do INE e OER-2013. Gráfico de Eugénio Rosa, «A Quebra do Investimento em Portugal», 1/7/2013, http://resistir.info/e_rosa/quebra_investimento_01jul13.html.
  
VI – Conclusão
   
    Apesar dos baixos salários e muitas horas de trabalho dos trabalhadores portugueses, o indicador oficial da produtividade laboral portuguesa, embora exibindo as maiores taxas de crescimento da Zona Euro, continua baixo. Há duas causas fundamentais para isso: uma, é a causa histórica do fraco e tardio desenvolvimento capitalista de Portugal, baseado essencialmente em elevados níveis de exploração do trabalho nos sectores primários (e na pilhagem colonial enquanto esta durou) que amarrou o país a um perfil ainda não superado de actividades económicas de baixo valor acrescentado; outra, a causa próxima, é a queda da taxa de lucro no sector produtivo subsistente, queda exacerbada na última crise, que incita o grande capital não financeiro a eliminar, diminuir ou atrasar investimentos em meios de produção, mantendo obsoleto o tecido produtivo.
    Belmiros e quejandos estão entre os chefes da orquestra económica portuguesa; actualmente, com poder quase total sobre o mercado de trabalho. Se o indicador da produtividade laboral é o que é, se o valor acrescentado per capita é o que é, isso apenas demonstra a total falência do capitalismo em Portugal. Quando os chefes da orquestra assacam culpas aos trabalhadores superexplorados estão simplesmente a deturpar a realidade, estão simplesmente a tentar convencer-nos que o capitalismo ainda tem algo a oferecer; na óptica deles, assim os trabalhadores os ouvissem e aceitassem continuar a ser superexplorados. Para que os lucros dos chefes da orquestra se pudessem manter «A Bem da Nação».
quod erat demonstrandum

Post Scriptum: Tínhamos acabado de escrever este artigo quando lemos no JN que um eurodeputado austríaco, do partido neonazi (FPO), tinha afirmado na campanha para as eleições ao parlamento europeu que os portugueses trabalham pouco e que na União Europeia «só os alemães e os austríacos» é que trabalham. Belmiro e quejandos estão bem acompanhados nas suas convicções.