sábado, 8 de fevereiro de 2014

O Sector Financeiro. VI: Jogos com derivados (4)

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Neste artigo:
Swaps
Swaps e o caso da Procter & Gamble
Os temíveis CDOs e CDSs

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Swaps
   Os swaps são contratos legalmente vinculativos, entre duas partes, que concordam em trocar entre si (swap, em inglês) fluxos de numerário por determinado período de tempo e segundo determinadas condições.
   São comuns os swaps que envolvem taxas de juro. A maior parte dos swaps são contratados no mercado não regulamentado, mercado de balcão (OTC; ver http://revolucaoedemocracia.blogspot.pt/2014/01/o-sector-financeiro-vi-jogos-com.html), como, por exemplo, departamentos financeiros de bancos. Estes servem de intermediários das duas partes contratantes dos swaps.
   
Exemplo ([35]):
   Suponhamos que a firma AB tem de efectuar, nos próximos dois anos, pagamentos trimestrais à taxa de juro Libor a 3 meses a fim de liquidar uma dívida (empréstimo) de 10 milhões de euros (M€). Receosa da evolução da taxa flutuante Libor, AB preferiria efectuar pagamentos a uma taxa de juro fixa. Felizmente AB (sendo o «felizmente» na opinião de AB) encontra uma contraparte UV que se posiciona em situação inversa: para liquidar um empréstimo do mesmo valor (ou por qualquer outra razão, inclusive especulativa!), preferiria efectuar pagamentos trimestrais à taxa Libor em vez de a uma taxa de juro fixa.
   Posto isto, a firma AB contrata com UV um swap a dois anos sobre taxas de juro, com início em 1 de Fevereiro de 2000. Os termos do contrato são os seguintes: todos os trimestres são trocados entre AB e UV pagamentos referidos a um valor global ([36]) de 10 M€, num total de 8 pagamentos (os 8 trimestres dos dois anos); AB paga a UV na base de uma taxa de juro fixa de 7,75%; UV paga a AB na base de uma taxa de juro flutuante: a taxa Libor a 3 meses.  
   Vejamos quais os pagamentos a efectuar quando se esgota o primeiro trimestre, a 1 de Maio de 2000, tomando, para simplificar, um trimestre como ¼ de um ano. A firma AB terá de pagar a UV, à taxa de juro fixa de 7,75% ao ano; logo, paga 10x0,0775/4 M€ ou seja 193.750 €. Por outro lado, como a taxa Libor a 3 meses é 7,35% a 1 de Maio de 2000, UV terá de pagar a AB o montante de 10x0,0735/4 M€ = 183.750 €. Isto é, na troca (swap) de pagamentos entre AB e UV, AB ficou a perder 10.000 € (diferença dos dois pagamentos ou, se quisermos, 10x(0,0735 – 0,0775)/4 M€). A evolução da troca de pagamentos é como se mostra na tabela seguinte.
 

Data inicial de cada trimestre
Data de pagamento
Taxa LIBOR a 3m (%)
Pagamento de UV (taxa flutuante)
Pagamento de AB (taxa fixa)
Saldo da troca para AB
1 Fev 2000
1 Mai 2000
7,35
183.750 €
193.750 €
-10.000 €
1 Mai 2000
1 Ago 2000
7,42
185.500 €
193.750 €
-8.250 €
1 Ago 2000
1 Nov 2000
7,45
186.250 €
193.750 €
-7.500 €
1 Nov 2000
1 Fev 2001
7,67
191.750 €
193.750 €
-2.000 €
1 Fev 2001
1 Mai 2001
8,05
201.250 €
193.750 €
7.500 €
1 Mai 2001
1 Ago 2001
7,75
193.750 €
193.750 €
0 €
1 Ago 2001
1 Nov 2001
7,80
195.000 €
193.750 €
1.250 €
1 Nov 2001
1 Fev 2002
8,00
200.000 €
193.750 €
6.250 €


   Neste exemplo AB ficaria no final a perder um total de 12.750 € e UV ganharia a mesma quantidade. Na prática, a troca corresponderia apenas a transferências de saldos (e não aos pagamentos por inteiro).
  Note-se que, em geral, o contrato de swap seria estabelecido por intermédio de um banco ou firma financeira, a qual, pelo serviço, cobraria às duas partes uma comissão: um spread. Por cada parte contratante "AB" desejando um swap o intermediário (banco, etc.) trata de arranjar uma contraparte "UV". A cobrança de spreads e outras comissões é um bom incentivo para que o intermediário (banco, etc.) incite muitos potenciais "AB" e "UV" a contratarem swaps.
   Atente-se que – mais uma vez! – o derivado swap é um jogo de aposta sobre o futuro. Neste caso, sobre a futura evolução de uma taxa de juro, a taxa Libor, que já vimos em http://revolucaoedemocracia.blogspot.pt/2014/01/o-sector-financeiro-vi-jogos-com_12.html  ser uma série temporal não estacionária e altamente variável.

Swaps e o caso da Procter & Gamble
   Em 1994 a Procter & Gamble (P&G), multinacional americana de produtos de consumo, anunciou um prejuízo de 152 milhões de dólares (mais de 237 milhões de dólares de 2013) em swaps de taxas de juro ([9]). O que aconteceu com a Procter & Gamble é ilustrativo do que viria a acontecer em anos recentes com empresas públicas portuguesas.
   A Procter & Gamble contratou a 2 de Dezembro de 1993 um swap a 5 anos com o Bankers Trust (BT, o mediador bancário), cujos termos, depois de largamente discutidos (a P&G recusou certas propostas iniciais) eram os seguintes: no primeiro semestre a P&G efectuaria pagamentos ao BT a uma taxa de juro flutuante (correspondente à do papel comercial do BT) menos 0,75%, e receberia do BT pagamentos a uma taxa de juro fixa de 5,3%; nos restantes 4,5 anos a taxa a pagar pela P&G seria fixada a 2 de Maio de 1994 de acordo com uma fórmula de spread expressamente «cozinhada» pelo BT.
   Acontece que os grandes bancos e firmas financeiras dispõem de equipas de matemáticos prontos a inventar fórmulas que, no jogo de fortuna e azar dos swaps (e de outros derivados), tratam de dar uma vantagem ao patrão – obviamente! Fórmulas incompreensíveis e/ou aparentemente ingénuas para o leigo.
   No caso da P&G a fórmula de spread «cozinhada» pelo BT correspondia a uma diferença de duas quantidades variando em sentidos opostos (para mais detalhe, ver [37]), digamos xy, com y a diminuir se x aumenta e vice-versa; mas nunca podendo ser negativa (se xy fosse negativo o spread era fixado em zero; isto é, o banco nunca sofria com a sua fórmula!). Mas mais do que isso: tratava-se de uma diferença extremamente sensível a pequenas variações da taxa de juro corrente («fórmula infernal», segundo [9]). Ora, aconteceu precisamente que, com a subida nessa época da taxa de juro do banco central dos EUA, o valor de xy subiu, e de que maneira! De repente a P&G que pensava reduzir os seus gastos em taxa de juro na ordem de 0,4%, viu-se a pagar mais 14%!
   Portanto, para além do jogo intrínseco dos derivados, há ainda que ter em conta o jogo predador dos bancos, sempre prontos a acrescentar condições complexas, «exóticas».
   A P&G ainda embarcou num novo swap (!) com o BT, mas veio a desistir dado o aumento crescente dos prejuízos e levantou um processo judicial contra o BT que fez reduzir os prejuízos para 35 milhões de dólares.

Os temíveis CDOs e CDSs
   Os swaps podem também incidir em taxas de câmbio ou em títulos de dívida ou crédito. Ficaram tristemente famosos os swaps de títulos de crédito à habitação -- os CDS: Credit Default Swaps -- que serviram aos especuladores financeiros para construir a bolha imobiliária cuja explosão despoletou a Grande Recessão iniciada em 2008.
   CDSs (Credit default swaps) -- «swaps de risco de incumprimento de crédito» -- são um tipo específico de swaps cujo propósito declarado é proteger contra o risco de incumprimento associado a um empréstimo, sob a forma, por exemplo,  de uma obrigação ou outro título de rendimento fixo. A troca de fluxo de numerários é a seguinte: o comprador do CDS -- detentor do título de crédito, interessado em proteger-se contra o risco de incumprimento do emitente do título -- efectua uma série de pagamentos (spread do CDS) ao vendedor do CDS; este, em troca, efectua um pagamento ao comprador no caso de incumprimento.
  
Exemplo:
   Suponhamos que a firma XY é possuidora de uma obrigação a 10 anos da empresa mineira NovasMinas, de valor nominal 1.000 dólares. A obrigação é um título de dívida possuído pela XY sobre a NovasMinas. Concretamente, a XY, ao comprar a obrigação, ofereceu um crédito de 1.000 dólares à NovasMinas, pelo qual espera receber cada ano um pagamento de juros (cupão) – digamos, 100 dólares – e, no final dos 10 anos, o reembolso total dos 1.000 dólares da dívida.
   Receando o incumprimento da NovasMinas a XY contrata um CDS com o banco UV. Nos termos do CDS a XY (comprador do CDS) paga ao banco (vendedor do CDS) 20 dólares por ano. No caso de num dado ano se verificar incumprimento da NovasMinas o banco UV paga a XY o valor nominal da obrigação (1.000 dólares) acrescido de quaisquer juros remanescentes (100 dólares por cada ano em falta até completar 10 anos). O banco toma posse da obrigação não cumprida, podendo despoletar medidas adequadas para se ressarcir do incumprimento da NovasMinas.
   Vemos que o CDS tem semelhanças com um seguro, em que o prémio anual de seguro (estabelecido de acordo com os juros dos pagamentos anuais da obrigação) é de 20 dólares. Na realidade, quanto maior for a percepção de risco de incumprimento maior será o montante anual exigido pelo banco. Deve-se ter em conta que, em geral, os CDSs não são tão simples como este exemplo (nem tão «ingénuos»; geralmente envolvem montantes da ordem dos milhões de dólares), podendo incluir disposições bastante complexas, nomeadamente impostas pelos vendedores, como os bancos.
   
*   *    *
   Para além de obrigações de empresas ou conglomerados, os CDSs podem também incidir em títulos de dívida soberana e em títulos de dívida hipotecária. Estes últimos surgiram em bancos, seguradoras e fundos de investimento dos EUA sob a forma de CDOs -- collateralised debt-obligations («obrigações com garantia real»): obrigações que supostamente pagavam aos investidores a partir dos fluxos de numerário dos valores imobiliários; isto é, a partir das amortizações pagas pelos detentores de hipotecas. A designação «garantia real» era (e é) um eufemismo destinado a enganar «patinhos». Nenhuma garantia «realmente» existe.
   A partir de meados dos anos 70 os bancos dos EUA começaram a criar um enorme volume de CDOs. Esse volume explodiu a partir de 2000, quando a baixa da taxa de lucro no sector produtivo era já evidente. Num esforço desesperado de obter lucros chorudos e a curto prazo os bancos começaram a conceder «auto-garantidos» créditos hipotecários NINJA («No Income, No Job, no Assets»; isto é, créditos a cidadãos sem rendimento, sem trabalho e sem activos) e a misturar em CDOs estes créditos subprime -- outro eufemismo para tóxico, ou melhor dizendo, para fraude pura e simples -- de incumprimento praticamente garantido, com outros de menor risco. Venderam estes CDOs a investidores pelo mundo fora (em particular na Europa, cujos bancos importaram a prática) de tal forma que o volume de CDOs aumentou sete vezes de 2000 a 2006 ao passo que os lucros do sector financeiro só aumentaram duas vezes! Quanto ao volume de CDS, na maior parte ligado a CDOs, aumentou 92 vezes (!) de metade de 2001 até final de 2007, atingindo então a cifra astronómica de 58.244.000.000.000 dólares. Tal como para os CDOs os bancos correram atrás de lucros fáceis tanto mais que os CDSs permitiam libertá-los de reservas de capital (mais detalhes em [38]).
  Sabemos qual foi o resultado da explosão da bolha de CDSs assentes em CDOs: a Grande Recessão/Depressão iniciada em 2008 que ainda hoje continua (EUA, Japão e vários países europeus, com muitos indicadores macroeconómicos tais como níveis de investimento, níveis salariais, volumes de produção, etc., ainda abaixo dos valores pré-2008).
   Os CDSs são actualmente um dos mais importantes veículos de especulação financeira, quer por parte de vendedores que por parte de compradores. Existem inúmeras práticas especulativas com CDSs (a wikipedia menciona algumas delas).
   Ao contrário do que alguns divulgam e pretendem fazer crer, os CDSs, para além de incidirem em apostas de risco imprevisível, distinguem-se em muitos outros aspectos dos seguros: a) qualquer um pode comprar um CDS, mesmo que não seja possuidor ou tenha qualquer interesse num título de dívida; compradores/especuladores nesta qualidade dizem-se possuir CDS «nus», jogando com a confiança de crédito dos emitentes de títulos (como as agências de rating no caso de títulos de dívida soberana); b) o vendedor pode ser qualquer entidade não regulamentada (OTC), embora entidades reguladoras como o BCE «finjam» regulamentar bancos e outras instituições nestas actividades; c) a falta de transparência do mercado de CDSs é monumental; d) o vendedor não é obrigado a manter reservas para pagar aos compradores; d) os vendedores gerem o risco com CDSs fundamentalmente procurando alijar para outros parte do risco.
   Dois exemplos eloquentes de especulação com CDSs envolvendo a infame multinacional financeira Goldman Sachs:
   
   1) Em 2010 a entidade reguladora dos EUA (SEC-Securities and Exchange Committee) multou a Goldman Sachs em 550 milhões de dólares por ter permitido a uma firma de investimentos, seu cliente, escolher em 2007 quais as (más) hipotecas que deviam entrar num CDO vendido a outros clientes. A firma em causa ganhou 1 bilião de dólares por ter apostado sem risco (através de CDS e outros derivados) que o rating do tal CDO iria baixar ([39]).
   2) Antes de entrar na Zona Euro em 2001 o governo grego precisava de esconder da Comissão Europeia o péssimo estado financeiro do país. Fê-lo com a ajuda da Goldman Sachs que escondeu as misérias financeiras da Grécia à custa de CDSs. A Goldman Sachs é agora uma grande detentora da dívida pública grega; grande beneficiária da política de austeridade imposta neste país.
   
   O actual presidente do BCE, Mario Draghi, foi vice-presidente e director executivo da Goldman Sachs no período 2002-2005. Com Draghi tendo o «regulador» Vítor Constâncio como vice-presidente, o BCE está bem entregue: podemos prever com confiança que a «regulamentação» dos mercados europeus de derivados por parte do BCE será sempre no sentido de deixar correr o business as usual.
   Esgotada, por enquanto, a mama dos títulos de crédito hipotecário (dada a baixa de rendimento das famílias nos EUA, Japão e Europa) os grandes tubarões financeiros rapidamente encontraram uma alternativa decorrente e conluiante das políticas de austeridade: os CDSs sobre títulos de dívida soberana. Como se vê pela tabela abaixo ([40]), Portugal ocupava em 2011 um lugar destacado no mercado de CDSs: esse mercado representava 3,9% da dívida pública, um valor superior ao da Itália, Irlanda, Grécia, Espanha, Alemanha e França. Por outras palavras, os trabalhadores portugueses ocupavam um lugar destacado na alimentação dos especuladores financeiros.

Size of the Sovereign CDS market (February 2011)

Portugal
Italy
Ireland
Greece
Spain
Germany
France
CDS net notional ($bn)
7.49
26.4
3.98
5.6
17.24
16.55
18.79
Central Govt Debt ($bn)
192
2126
135
444
844
1657
1690
CDS Net notional as % of central gov't debt
3.90%
1.24%
2.95%
1.26%
2.04%
1.00%
1.11%
Source: Bloomberg, DTCC16







$bn significa biliões (mil milhões) de dólares.
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Próximo artigo:
O que são e não são os derivados
Derivados: a resposta capitalista ao declínio da taxa de lucro
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Notas
[35] Exemplo adaptado de http://www.derivativepricing.com/resolution-swaps/interest-rate-swap-example/
[36] O valor global de referência para os pagamentos é conhecido por montante nocional.
[37] A fórmula do BT, segundo descrito em [9], era: spread = Max(0; xy) com x = 98,5x"tjCMT5a"/5,58 e y = "pOT30a", onde "tjCMT5a" é a taxa de juro de referência para obrigações do Tesouro dos EUA a 5 anos, e "pOT30a" é o preço de uma obrigação do Tesouro a 30 anos.
Acontece que quando a taxa de juro aumenta o preço das obrigações diminui (algo que é desconhecido do leigo). No caso de obrigações a longo prazo, como 30 anos, a sensibilidade a variações da taxa de juro é muito grande; basta uma pequena variação da primeira para redundar em grandes variações da segunda. Usando os valores de [9] eis o que acontecia com o spread para algumas pequenas variações de "tjCMT5a":
   
tjCMT5a (%)
x (%)
y = pOT30a (%)
Spread (%)
4,95
84,06
103,02
0
5,55
97,97
95,07
2,90
5,65
99,74
93,85
5,89
5,95
105,03
90,30
14,73
6,45
113,86
84,86
29,00
   
No momento de assinatura do swap a taxa de juro a 5 anos era de 4,95% e o spread era nulo. Bastava uma subida de 1% na taxa de juro (passando a ser 5,95%) para o spread subir para 14,73%!
[38] Tony Norfield "Derivatives and Capitalist Markets: The Speculative Heart of the Capital", Historical Materialism 20.1 (2012) 103-132.