sábado, 23 de novembro de 2013

Austeridade em Portugal: Ponto da Situação (2013)

A situação económica e social de Portugal agravou-se em 2013. As medidas programadas pelo governo para 2014 implicam um agravamento mais brutal. O governo tem oscilado entre o embuste («o desemprego diminuiu», «a recessão acabou», «já estamos a obter resultados»),  o cinismo despudorado e a demagogia. Passamos a documentar com factos estes aspectos, estruturando a nossa exposição nas seguintes três secções:
A) Indicadores Económicos
B) O Orçamento e Outras Medidas para 2014
C) A Opinião de um Economista Convencional
*    *    *
A) Indicadores Económicos
  
No nosso artigo de Fevereiro p.p. (http://revolucaoedemocracia.blogspot.pt/2013/02/austeridade-em-portugal-ponto-da.html ) apresentámos o ponto da situação económica em Portugal, após 19 meses de política de austeridade. Neste momento, muitas das estimativas já disponíveis para 2013 deverão estar próximas dos valores finais. Vejamos o que nos dizem.
   
1  - Taxa de Crescimento do PIB
A estimativa do BdP para a taxa de variação anual do PIB era, em Outubro, de -1,6%; a ministra das Finanças, bem como a Comissão Europeia e o FMI (isto é, da troika), estimaram em -1,8% ([1]). Para 2014 a troika prevê que um crescimento do PIB de 0,8%. ([2]). A tabela abaixo mostra a evolução oficial da variação anual do PIB e as previsões da UE (da Comissão Europeia, publicadas pelo Eurostat).
A evolução da taxa de variação homóloga trimestral do PIB real (isto é, vendo quanto variou o PIB real ([4]) num dado trimestre, face a idêntico trimestre do ano anterior), é mostrada na figura abaixo (gráfico do INE).

Verifica-se que o PIB tem caído sistematicamente (taxa de variação negativa face a igual período do ano anterior) há 11 trimestres, embora a um nível mais lento nos últimos dois trimestres. Em 2013 os valores trimestrais (T) foram: -4,2% (1.ºT), -2,1% (2.ºT) e -1.º (3.ºT). A figura também mostra a taxa de variação anual ([5]).
O governo mostrou-se recentemente eufórico, dizendo que a recessão técnica tinha terminado (+0,2% no 3.º trimestre, [6]). A razão de ser desta afirmação tem a ver com o facto de que o governo tem em conta não a variação homóloga (ano-a ano; "year-on-year") mas sim a variação entre trimestres consecutivos (variação encadeada ou "trimestre-a-trimestre; "quarter-on-quarter"). Ora os respectivos valores desta variação em 2013 foram: -0,5% (1.ºT), 1,1% (2.ºT), 0,2% (3.ºT). Uma evolução muito diferente da variação homóloga, como mostra o gráfico abaixo.
   
   
Tecnicamente Portugal saiu da recessão, mas só tecnicamente: usando a regra dos dois trimestres consecutivos com variação negativa trimestre-a-trimestre.
Existem, contudo, razões poderosas contra a euforia do governo:
1) A regra da recessão técnica é uma "má" regra, conforme reconhecem muitos economistas; pode transmitir falsas impressões sobre a evolução da economia. Basta que haja, num mau ano, um bom Verão económico para sair da recessão técnica, transmitindo uma falsa visão optimista (ver mais detalhes em [7]). A evolução da variação homóloga é bem mais esclarecedora e ela mostra sistematicamente um decréscimo homólogo do PIB em 2013.
2) O orçamento proposto pelo governo para 2014 irá causar mais recessão, conforme reconhecem economistas e fontes da UE. É provável que deparemos em 2014 com um cenário de recessão dito de «duplo mínimo» (uma evolução das barras azuis acima em forma de W).
   
Um aspecto importante a apontar quanto à variação anual do PIB é que todas as previsões -- do ministério das Finanças, da troika, da OCDE -- têm sido optimistas. A figura abaixo compara as previsões da UE (Comissão Europeia) com os valores oficiais, incluindo a estimativa para 2013 calculada a partir das estimativas trimestrais homólogas do INE para o 3ºT (-1%) e 4.ºT (-0,8%); estimativa essa que é de -2% ([8]) e não de +1% como diz o governo ([9]). Pelas previsões da UE (e de outros) iremos ter sempre um futuro radioso…
   
2 – Dívida Pública (DP)
   
A tabela abaixo mostra as previsões da UE para a dívida pública em percentagem do PIB bem como os valores oficiais no final de cada ano (dados do Eurostat, excepto para 2013 em que se mostra a estimativa do INE e governo).
   
Se a estimativa do INE se confirmar, corresponde a um agravamento da DP em 3,4% e a uma ultrapassagem do valor de 119,4% projectado no 7.º exame da troika ([10]). É muito possível que o valor final venha a ser significativamente maior, dado que o Banco de Portugal (BdP) dizia que no final de Junho a DP tinha atingido 131,4% ([11]). O valor de 131,4% para o final do primeiro semestre foi o adoptado pelo Conselho das Finanças Públicas.
A DP deverá agravar-se em 2014, por uma multiplicidade de razões, de que as principais são: contracção da Economia; pagamento de resgates a bancos; e, last but not least, pagamento das tranches recebidas do resgate da troika (vale a pena ver a figura dos prazos de reembolso aos diversos fundos europeus que publicámos em http://revolucaoedemocracia.blogspot.pt/2013/02/austeridade-em-portugal-ponto-da.html). As previsões da DP, como outras, são sempre optimistas (figura abaixo).


3 – Défice Orçamental (DO)


Apesar de todos os cortes, apesar da continuada destruição dos serviços públicos, o défice orçamental, se baixar, pouco o fará face ao valor de 2012, situando-se bem acima dos 4,5% (em valor absoluto) que a troika previa e desejava ([12]).
A ministra das Finanças, BdP e FMI estimaram em 5,5% o défice de 2013 [13]). Veremos. O valor do INE para o final do 1.º semestre era de 7,1% ([14]). Em Setembro, tendo em conta o “buraco” de 700 milhões de euros do Banif (que o Estado, isto é, os contribuintes iriam tapar) e a derrapagem no IRS, o Conselho das Finanças Públicas apontava para 6,4% ([15]). Como sempre as estimativas da UE são optimistas.

4 – Taxa de Desemprego

   
O desemprego não pára de aumentar, com o governo a admitir em Outubro que o emprego iria diminuir em 2014, apontando para um aumento de 0,5% da taxa de desemprego. Procurou também fazer crer que a taxa de desemprego tinha inflectido a sua tendência em Julho e Agosto (baixou em Agosto face a Julho de 16,6% para 16,5%). Para além de uma diminuição sazonal há que ter em conta, conforme já fizemos notar em Outubro (http://revolucaoedemocracia.blogspot.pt/2013/10/a-sociedade-participativa-e-portugal.html ), que alguma redução se deveu à emigração. Ora foi isso mesmo que disse uma fonte da UE um mês depois: essa diminuição de desemprego era temporária e devia-se à redução da população activa devido à emigração. De facto, o número de postos de trabalho destruídos em 2013 é três vezes mais que o número de pessoas que saiu das estatísticas de desemprego por terem emigrado ou desistirem de procurar emprego ([16]). Além disso, em Agosto, quase metade dos desempregados estava sem subsídio de emprego ([17]). O problema é particularmente grave entre os jovens, com taxas de desemprego da ordem de 40% (50% no Sul da Europa, com 57% na Grécia, 56% em Espanha e 40% na Itália). Fala-se em «geração perdida». As previsões económicas e os aumentos da idade de reforma não são de molde a melhorar este cenário.

5 - Balança Comercial
Apesar de uma subida importante das exportações (da ordem dos 3-4%) a balança comercial continua negativa, com um défice da ordem dos 900 milhões de euros. As importações têm crescido mais que as exportações; p. ex., no 2.º trimestre as importações subiram 3,1% e as exportações só subiram 2,3%.
Segundo o Boletim da AICEP, «Portugal Global», do 1.º semestre de 2013, os seis maiores artigos de importação foram os da tabela abaixo (usamos bilião = mil milhões):
   



% do total de importações
Biliões de €
1
Combustíveis
19,5
7,1
2
Maquinaria
14,1
5,1
3
Produtos agrícolas
11,2
4,1
4
Produtos químicos
10,9
4,0
5
Veículos
8,7
3,2
6
Metais comuns
8,0
2,9
 

Para além da tradicional dependência em combustíveis e maquinaria, é de notar a grande dependência em produtos agrícolas, consequência de sistemáticas políticas agrícolas erradas que «complementaram» a liquidação da Reforma Agrária iniciada e encabeçada pelo PS desde 1976. A nossa entrada para a CEE-UE não trouxe melhorias neste aspecto; muito pelo contrário, só agravou os problemas. Notar também o peso dos veículos importados: a importação de veículos de passageiros de gama média e baixa desceu com a crise, mas o mesmo não aconteceu com as vendas de carros de luxo (Ferrari, Porsche, Jaguar, Lamborghini, etc.) que aumentaram. (Também aumentou em 154% a importação da Suíça de peças e ferramentas de ourivesaria, [18].) Quanto à importação de «metais comuns» interessaria apurar em que medida a liquidação da nossa siderurgia não desempenha aqui um papel.

6 - Desigualdade Social
Os cortes nos subsídios sociais, a baixa de salários (ver p. ex. [19]) e o desemprego têm contribuído para que cada vez mais famílias sobrevivam graças às refeições que também dão aos sem-abrigo (1113 sem-abrigo detectados no Porto, [20]; ver nosso artigo acima citado). O índice de Gini tem aumentado de 2010 a 2012 (respectivamente, 33,7, 34,2 e 34,5; sobre este índice ver http://revolucaoedemocracia.blogspot.pt/2013/07/desigualdade-social-portugal-e-os.html )
Entretanto, o número de milionários portugueses cresceu 3,4% em 2012: são mais 10.750 com mais de 1 M€. Segundo um analista da Capgemini, porque investiram em valores mobiliários dos EUA e da Alemanha (onde as acções subiram 29%). O número de multimilionários também aumentou e estão cada vez mais ricos: mais 870 (+10,8%) com fortunas acima de 25 milhões de euros e um total de 56.065 (aumento de 8,7% face a 2012) com fortuna total de 6,5 biliões de euros ([21]).

7 - Outros
- O consumo privado decresceu 2,5%, mas (claro!) o governo prevê que irá crescer 0,1% em 2014…
- O investimento na indústria continuou a cair: -8,5% em 2013. O governo prevê que irá subir 1,2% em 2014 e Passos «reconhece» situação aflitiva das PMEs…
- A banca poderá sofrer perdas de 8 B€ durante os próximos 2 anos por crédito mal parado ([22]). O patrão do BES, Ricardo Salgado, queixa-se da carga fiscal contra a banca.
- As insolvências cresceram 15,8% em 2012 e 2013, ao ritmo médio de 737 empresas por mês ([23]).
- O número de docentes em exercício recuou para valores de há 16 anos atrás ([26]).
- A emigração tem aumentado. Eis os números dos emigrantes permanentes ([25]):
   
2008
2009
2010
2011
2012
20.357
16.899
23.760
43.988
51.958
   
Em 2012, 6.300 dos que emigraram eram altamente qualificados. O total de emigrantes permanentes e temporários foi de 121,4 mil em 2012; maior que na década de 60, onde o máximo foi de 120 mil em 1966 (dados do INE).
- A «Idade da reforma vai aumentar todos os anos e passa a variar de acordo com a esperança média de vida», afirmou no final de Outubro o Ministro da Solidariedade(!), Emprego(!) e Segurança Social(!), Pedro Mota Soares ([27]). Note-se a confirmação do cenário que já tínhamos denunciado em detalhe um mês antes em http://revolucaoedemocracia.blogspot.pt/2013/09/desenvolvimento-sustentavel-vi-valor.html .
- Portugal está muito próximo da deflação, ou seja, uma inflação negativa (a taxa de inflação foi de 0,9% em Setembro e de 0,59% em Outubro, [28]). A inflação negativa, com baixa de preços por período não muito curto, levará a que as famílias adiem os seus consumos e as empresas recuem nos investimentos, tornando a saída da recessão ainda mais difícil.

B) O Orçamento e Outras Medidas para 2014
   
O que o governo prevê fazer em 2014 é uma brutal destruição das condições de vida de quem trabalha e de quem é pobre. Não iremos proceder aqui à análise detalhada do orçamento proposto pelo governo. O leitor encontra-a no trabalho do economista Eugénio Rosa ([29])
Enumeremos rapidamente as principais medidas ([30]): cortes nas pensões de sobrevivência [roubar às viúvas e viúvos para dar aos banqueiros]; contribuição extraordinária de solidariedade sobe 3,5% para pensões entre 1300-1800 euros, podendo chegar a 40% [idem, para pensionistas]; sobretaxa de 3,5% no IRS; novos cortes, agora de 10%, nas reformas da função pública; cortes nos salários da função pública, de 5% para todos, acrescido de corte adicional de 10% a partir de 600€ [roubo aos pobres] até 15% para outros escalões, com 260 mil funcionários públicos a sofrer pela primeira vez um corte salarial, e este a mais que duplicar, face aos cortes de 2013, para 165 mil funcionários; taxa sobre empresas de energia [dizem que não afecta tarifário!]; aumento dos descontos para a CGA; enormes cortes nas despesas públicas [os maiores desde 1977!] que irão afectar serviços essenciais à população (-7,6%, logo menos 500 milhões € para ensino básico e secundário; -4% para ensino superior e Ciência; -9,4% para Saúde; -6,8% para Justiça; -23,7% para Finanças e Administração Pública).
   
Outras medidas anunciadas:
- Novas privatizações: CTT, recolha de lixo.
- Aumento da idade da reforma para 66 anos (ver o que dissemos acima).
- Projecto para baixar IRC gradualmente até 19% em 5 anos. Bem analisado este projecto, verifica-se que irá só servir as grandes empresas ([31]). De facto, a Comissão para a Reforma do IRC preconiza a descida gradual das taxas de IRC de 25% para 17% a 19% em 2016, entre outras razões para atrair investimento estrangeiro. Preconiza também a isenção de dividendos e mais-valias, um sistema que será «único na Europa» (!) ([32]). Sim, único ao serviço do grande capital. A Comissão também avisou que «não haverá competitividade sem um compromisso nacional duradouro pela estabilidade do sistema fiscal». É claro que a «competitividade» (mais outra palavra mágica) aumentará desmedidamente se os trabalhadores portugueses se conformarem a um papel de escravos.
- Os meios bilhetes (50% de desconto para crianças e idosos) vão acabar na CP para quem tiver passe social. Mas estes custam 545€, pelo que a frase «para quem tiver passe social» é largamente cosmética.
   
Todas estas medidas anunciadas com um grande cinismo, com sorrisos e risinhos; com grande demagogia, procurando fazendo uso de belas palavras e, no caso p. ex. do Paulo Portas e Mota Soares (este anunciou os cortes nas pensões de sobrevivência para poupar 100 milhões de euros; amendoins para os banqueiros), com a mansuetude cristã, de que só estão a trabalhar a favor dos desfavorecidos e em prol da «sustentabilidade» essa palavra que usam de forma mágica e críptica, esquecendo-se de dizer que se trata da sustentabilidade dos muito ricos, do grande capital financeiro, nacional e internacional.
   
Por vezes o cinismo e a demagogia mascaram-se com roupagens «científicas» como Nuno Crato: «alguns sacrifícios que vão transformar Portugal num país competitivo»; «Teríamos de trabalhar mais de um ano sem comer nem utilizar transportes, sem gastar absolutamente nada só para pagar a dívida». Crato também considerou adequado um orçamento assente em 4 pilares: consolidação orçamental; equidade; solidariedade; crescimento ([34]). A matemática de Crato é de curto intervalo temporal: só vai um pouco além de «um ano»; e, mesmo neste curto intervalo, é de intervalo social «aberto à direita»: revela uma estranha distracção quanto, p. ex., aos 6,5 B€ dos multimilionários que vimos acima. Mas se a matemática de Crato é má, a atitude «científica» é pior: a «teoria» da consolidação orçamental já falhou no passado, é uma má «teoria»; a equidade não existe; a solidariedade? De quem e para quem?; e o crescimento é uma descarada mentira.
   
A atitude de servilismo do governo perante os ditames do grande capital da UE só tem servido de incentivo a ingerências na nossa soberania, de que são exemplos claros as frases do relatório enviado a Bruxelas pelos representantes da UE em Lisboa, acerca dos chumbos do Tribunal Constitucional: «As dúvidas sobre a imparcialidade política do Tribunal Constitucional existem desde a sua criação», «Será que o Tribunal Constitucional português é um legislador negativo?» ([35]). A atitude da troika é semelhante, e nem o governo escapa quando tem de ser esporeado a avançar na destruição do país a favor do grande capital. No 7.º exame a troika culpou o governo por falhanço das políticas, entre outras coisas porque os ministros não conseguiram cortar 4 biliões de euros, só ajustaram a receita e não a despesa, e por esta razão espantosa: «não explicaram as medidas à população»! Aliás a Comissão Europeia considera que a possibilidade de chumbo por parte do TC é elevada ([36]) e desde já avisou (e muito cuidadinho com os «avisos» da troika) que se por qualquer razão o TC impedir os cortes de  4,3 biliões de euros em 2014 (ano em que Portugal pagará 7,3 biliões de euros só em juros), a ordem é para impôr os cortes tal como a troika tinha indicado. (Isto chama-se um «diktat», não chama?)
*    *    *
A famosa «reforma do Estado», conforme já analisámos em artigos anteriores, tem precisamente como objectivo impor nova Constituição (é a 7.ª ou 8.ª que PS-PSD-CDS já cozinharam desde o 25 de Abril?) que dê base jurídica ao recuo ao passado, impedindo, por exemplo, os chumbos do TC; que dê base jurídica à liquidação das relíquias que subsistem do «Estado Social», substituindo-o pelo «Estado do Grande Capital Financeiro», o Estado da actual classe dominante. Nisso se empenha o governo. Portas apresentou o guião para a reforma do Estado: a revisão da Constituição para um «Estado moderno» ([37]). Quanto ao espantoso ministro da Defesa, Aguiar-Branco, não teve papas na língua ao dizer que o «Estado Social» é um «Estado totalitário» ([38]). Disse que existia em Portugal a «tentação de um Estado totalitário» provocado por um «Estado Social absorvente» que cria «promiscuidades», «clientelas» e «dependências». Disse ainda que «A revisão da Constituição é uma questão de afirmação da liberdade da sociedade civil» (é claro, que se viesse a ser alterada por vontade do povo no sentido de uma Constituição socialista ele já não acharia que se tratava «de afirmação da liberdade da sociedade civil»). Citou o não menos espantoso Sá Carneiro (fundamentaremos a nossa qualificação oportunamente) para defender que «um Estado social que absorve a sociedade por completo é um Estado totalitário». Estes «sociais-democratas» (esta designação não queria dizer, em tempos, que defendiam o «Estado Social»?) ao menos esclareceram o que entendem por Estado totalitário: um Estado que não deixa o grande capital fazer o que quer, que impede a destruição dos serviços públicos, que impede o roubo dos trabalhadores e das camadas pobres para encher os bolsos do grande capital; enfim, um Estado cheio de atropelos à «liberdade».
   
O PS prepara-se, como sempre fez no passado, para no essencial defender as posições do grande capital. Quando Seguro diz ([39]): «No realismo desta via de sustentabilidade é preciso que haja consciência que Portugal não pode regressar ao passado de há 10 anos, 20 ou 30 anos. Todas as opções políticas devem passar pelo crivo da sustentabilidade, seja na saúde, na educação, na segurança social, ou nos investimentos» usa as expressões contraditórias caras à pequena burguesia que Seguro representa -- por um lado, « Portugal não pode regressar ao passado de há 10 anos, 20 ou 30 anos»; mas, por outro lado, «Todas as opções políticas devem passar pelo crivo da sustentabilidade [do grande capital]» --, contradições que no final se resolvem no apoio ao grande capital. O «intelectual» António Barreto, que devia usar uma medalha de «liquidador do 25 de Abril» também apresentou as suas razões teóricas, afirmando que a reforma do Estado obriga a uma «revisão profunda da Constituição»; nada de revisões superficiais; toca a liquidar profundamente tudo que cheire a «Estado Social». Quanto à patética exclamação de Mário Soares «querem acabar com o Estado Social» ([40]), é patética porque inconsequente: nunca o PS teve rebates de consciência quando se tratou de diminuir o «Estado Social»; pelo contrário, sempre trabalhou por o diminuir e criar as condições futuras da sua total destruição. E Mário Soares tem uma famosa tradição de só ser/parecer de esquerda quando não está (ou o PS não está) no governo.
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Estávamos a esquecer-nos de outra grande medida proposta pelo governo para 2014: a liberalização do jogo online, sujeito ao pagamento de 20% de taxa! Assim, os trabalhadores, viúvos, pensionistas e reformados podem, em desespero de causa, recorrer a uma ocupação útil e agradável, capaz, quem sabe!, de afastá-los dessa coisa de lutas e manifestações. E isto tudo -- maravilha das maravilhas -- contribuindo para as receitas  de casinos e do Estado. Ao fim e ao cabo, o actual Estado é, bem vistas as coisas, um grande casino.

C) A Opinião de um Economista Convencional  
Qualquer economista convencional cujas amarras ideológicas não impeçam de reconhecer a realidade, não tem dificuldade em diagnosticar o «sem saída» da política de austeridade (embora sem ultrapassar certas barreiras da análise, sem a acuidade da análise marxista). O economista Paul de Grauwe mostrou-se dessa estirpe quando recentemente comentou a situação económica portuguesa ([41]).  De Grauwe é professor na London School of Economics e uma espécie de neoliberal com dúvidas, ou neoliberal arrependido, que se aproximou em certos pontos do keynesianismo. Eis algumas das suas afirmações recentes:
- «O Governo português fez o grande erro de tentar ser o melhor da turma no concurso de beleza da austeridade. Não havia razão para Portugal fazer isso, podia não ser o melhor da turma, podia ser mesmo o pior e isso seria melhor para economia». Defendeu que Portugal tinha de levar a cabo medidas para reduzir a despesa, mas podia fazê-lo ao longo de mais anos, de modo a suavizar o impacto económico. Afirmou que até economistas do FMI, já perceberam que não é possível «fazer a austeridade toda ao mesmo tempo» [mas isso só foi reconhecido muito recentemente], enquanto na Europa os líderes continuam imutáveis.
- «Portugal e outros países do Sul da Europa deviam unir-se e dizer que a maneira como os tratam não é aceitável [...] Vocês [países do Sul da Europa] têm influência na Comissão Europeia, mas não a usam».
- «A Zona Euro tornou-se um sistema em que a nações creditícias mandam [não são as nações, é o grande capital creditício; e creditício até certo ponto]. Mas a responsabilidade da crise não é só dos devedores, mas também dos credores. Por isso, a Comissão Europeia devia intervir no interesse dos credores e também dos devedores» (42).
- Sobre se deve ser colocado um limite ao défice e endividamento na Constituição portuguesa, Paul de Grauwe rejeitou de imediato, considerando que «não faz qualquer sentido», já que haverá sempre períodos em que os países têm de aumentar o seu endividamento para acomodar as crises cíclicas e proteger os cidadãos [quais?].
- «O capitalismo é um sistema fantástico, mas muito instável, que produz altos e baixos, períodos de optimismo e pessimismo, e nos baixos o Governo tem de juntar as peças e os défices necessariamente aumentam. Precisamos de Governos que protejam os cidadãos, que os ajudem [quando estão mal]. Se não o fizerem, a legitimidade dos Governos fica em causa». A costela ideológica de De Grauwe revela-se plenamente aqui: um sistema «muito instável» classificado como «sistema fantástico», é coisa difícil de entender; os «períodos de optimismo e pessimismo» seriam meras apreciações subjectivas se não tivessem consequências materiais nas condições de vida de milhões; quanto ao «Precisamos de Governos que protejam os cidadãos» é mera jeremiada como as da igreja -- há séculos que se apregoam bonitas intenções sem quaisquer consequências. Aliás, De Grauwe também disse: «é difícil entender como pode o Governo magoar a população e sentir-se orgulhoso disso». Aí tem. E isso de um governo cheio de virtudes cristãs (podiam também ser islâmicas, budistas, etc.). Mas não é de um qualquer governo ou de uma qualquer população que se trata Sr. De Grauwe! Falta-lhe a perspectiva de classe.
- «Portugal tem tanta austeridade que a dívida se tornou insustentável, algo tem de ser feito. Não acho que consiga sair do problema hoje sem uma reestruturação da dívida», defendeu, considerando que o presidente da República, Cavaco Silva, está a «fechar os olhos à realidade» quando considerou que é «masoquismo» dizer que a dívida portuguesa não é sustentável.
- «Dizem aos portugueses que têm de fazer mais sacrifícios. Para quê? Para pagar a dívida aos países ricos do Norte [da Europa]. Isto será explosivo, os portugueses não vão aceitar isso indefinidamente».
- «Um novo programa de austeridade vai empurrar Portugal para a insolvência». Já há quem na UE fale em perdão parcial da dívida.
- «A necessidade de reformas estruturais em Portugal é um "mito"», disse o economista, para quem -- à maneira dos keynesianos -- é a falta de procura que provoca a recessão da economia. Para os marxistas a culpa – como já dissemos várias vezes em artigos anteriores -- é a baixa taxa de lucro, que condiciona o nível de investimento e, a partir daí, o emprego e a procura.
   
As análises de De Grauwe têm algum interesse, em particular por revelarem o «incómodo» que já sentem os que sempre defenderam a «economia de mercado». Contém diagnósticos acertados mas sempre na óptica keynesiana de que o capitalismo é um «sistema fantástico» (principalmente para os capitalistas, claro) que tem de ser salvo. E a salvação, à boa maneira keynesiana, virá aumentando a procura. Nos EUA e no Japão tem-se tentado incentivar a procura através de políticas de «quantitative easing» sem grande sucesso: a economia dos EUA regista um crescimento anémico (1,7%) e o do Japão ainda mais (1,1%). O problema essencial é precisamente o de que o capitalismo do «mundo ocidental» deixou há muito de ser um «sistema fantástico» encontrando-se em crise profunda que nem os purgantes da austeridade nem as mezinhas keynesianas conseguem sarar.

Referências
[1] JN 6/11/2013
[2] JN 8/10/2013
[3] Valores mais recentes do INE, que substituem os valores que apresentámos em artigos anteriores. O INE procede à actualização de valores conforme vai obtendo dados mais actualizados e/ou validados. Na data de publicação do presente artigo o valor de 2011 tinha a classificação de provisório (Po) e o de 2012 de preliminar (Pe).
[4] O PIB real tem em conta o índice de preços correntes, enquanto o PIB nominal é calculado usando os preços correntes de mercado, praticados em cada trimestre. Para fins comparativos, entre vários anos, o PIB nominal não é adequado porque não toma em conta o poder de compra da moeda (a inflação ou deflação que tenha ocorrido). No PIB real esse efeito é tido em conta através do índice de preços referido a um certo ano e trimestre. Nos dados do INE o ano de referência é 2006. P. ex., o PIB nominal do 1.º trimestre de 2013 é de 40.683,5 milhões de euros (M€). Contudo, o índice de preços de um cabaz padrão de bens e serviços, revela uma desvalorização de 7,2% face a 2006. Logo, a preços constantes, os 40.683,5 M€ nominais só correspondem, na realidade (se o poder de compra do euro tivesse permanecido inalterável) a 40.683,5/1,072 = 37.940,9 M€.
[5] A taxa de variação anual do PIB real obtém-se vendo quanto varia o PIB real anual. P. ex., o PIB real de 2012 (soma dos valores para os quatro trimestres) foi de 155.725,8 M€; o de 2011 foi de 160.915,5 M€. De 2011 para 2012 houve, portanto, um decréscimo de 5.189,7 M€. Face a 2011 a variação é de -5.189,7/160.915,5 = -0,032. A variação percentual é de -3,2%, o valor que consta da tabela.
[6] JN 15/11/2013
[7] Mapari, "Porque é que o conceito da recessão técnica é estúpido?", Economia e Finanças, 13/8/2013: http://economiafinancas.com/2013/porque-e-que-o-conceito-da-recessao-tecnica-e-estupido/
[8] Para estimar a variação anual para 2013 começamos por calcular o PIB real no 3.º e 4.º trimestres, usando os valores oficiais para os mesmos trimestres em 2012 e as estimativas de variações homólogas (respectivamente, -1.0% e -0.8%). Temos então: PIB real em 2013-T3 = PIB real em 2012-T3x(1 – 0,01) = 38859,3x0.99 = 38470,7 M€; PIB real em 2013-T4 = PIB real em 2012-T4x(1 – 0,008) = 38111,1x0,992 = 37806,2 M€. Usando os valores oficiais do PIB real dos dois primeiros trimestres de 2013 a estimativa do PIB real anual para 2013 é: 37940,9 + 38347,4 + 38470,7 + 37806,2 = 152565,2 M€. Face ao valor de 2012 (155,725,8) o valor de 2013 corresponde a uma variação de -2%.
[9] JN 14/8/2013: "O Governo calcula que se a economia continuar a crescer ao ritmo trimestral acima do esperado, de 1,1%, registado neste segundo trimestre, a economia chegará ao final do ano com uma recessão de 1%."
[10] JN 4/10/2013.
[11] Portugal cometeu o erro de ser o melhor aluno da 'troika', diz economista belga, JN 10/11/2013.
[12] JN 25/9/2013: "Aumento de impostos foi insuficiente para fazer face ao aumento de desemprego e de pensionistas."
[13] JN 8/10/2013.
[14] JN 1/10/2013, Público 1/10/2013.
[15] JN 3/10/2013.
[16] JN 8/11/2013.
[17] O JN 1/10/2013 publicava de fontes oficiais: desemprego em Agosto: 695 mil; com subsídio: 387 mil.
[18] OJE, 25/10/2013.
[20] JN 26/6/2013.
[21] JN 8/11/2013.
[22] JN 10/10/2013.
[23] Dados da Ignios, JN 15/11/2013.
[24] JN 5/10/2013.
[25] JN 1/8/2013.
[26] JN 31/8/2013.
[27] JN 26/10/2013.
[28] Público 6/11/2013.
[29] “Um orçamento imoral que vai prolongar a recessão económica e agravar ainda mais as desigualdades de rendimento e as dificuldades das famílias” Eugénio Rosa, 3/11/2013. http://www.eugeniorosa.com/Sites/eugeniorosa.com/Documentos/2013/53-2013-orcamento-imoral.pdf
[30] JN 10/10/2013, JN 11/10/2013, JN 15/10/2013, JN 16/10/2013, Público 16/10/2013.
[31] "A reforma do IRC é feita à medida dos desejos das grandes empresas", 24/10/2013
[32] JN 4/11/2013: "Foco na descida da taxa de tributação".
[33] JN 7/10/2013.
[34] Em sessão de esclarecimento sobre o OE. JN 6/11/2013.
[35] JN 19/10.
[36] JN 3/10/2013, JN 16/11/2013: "Chumbo do TC obrigará a medidas adicionais".
[37] JN 31/10/2013.
[38] JN 7/11/2013.
[39] JN 23/10/2013: "Seguro aceita compromisso de políticas públicas".
[40] JN 26/10/2013.
[41] JN 10/11/2013: "Portugal cometeu o erro de ser o melhor aluno da 'troika', diz economista belga na conferência que assinala os 25 anos do INDEG, a escola de negócios do ISCTE -- Instituto Universitário de Lisboa".
[42] Para De Grauwe, se os países com contas públicas mais fortes fomentassem a expansão, isso contrariaria a contracção orçamental dos países da periferia. No início do mês, o Departamento do Tesouro dos Estados Unidos criticou a Alemanha por usar a crise para fomentar excessivamente as exportações, o que obriga os países da periferia a um ajustamento excessivo. Também o FMI veio, entretanto, dizer que a Alemanha podia contribuir para a estabilização da economia da Zona Euro se aumentasse o consumo interno. Mas todas estas afirmações reflectem apenas lutas de interesses entre os representantes do grande capital americano e alemão.