sábado, 23 de novembro de 2013

Austeridade em Portugal: Ponto da Situação (2013)

A situação económica e social de Portugal agravou-se em 2013. As medidas programadas pelo governo para 2014 implicam um agravamento mais brutal. O governo tem oscilado entre o embuste («o desemprego diminuiu», «a recessão acabou», «já estamos a obter resultados»),  o cinismo despudorado e a demagogia. Passamos a documentar com factos estes aspectos, estruturando a nossa exposição nas seguintes três secções:
A) Indicadores Económicos
B) O Orçamento e Outras Medidas para 2014
C) A Opinião de um Economista Convencional
*    *    *
A) Indicadores Económicos
  
No nosso artigo de Fevereiro p.p. (http://revolucaoedemocracia.blogspot.pt/2013/02/austeridade-em-portugal-ponto-da.html ) apresentámos o ponto da situação económica em Portugal, após 19 meses de política de austeridade. Neste momento, muitas das estimativas já disponíveis para 2013 deverão estar próximas dos valores finais. Vejamos o que nos dizem.
   
1  - Taxa de Crescimento do PIB
A estimativa do BdP para a taxa de variação anual do PIB era, em Outubro, de -1,6%; a ministra das Finanças, bem como a Comissão Europeia e o FMI (isto é, da troika), estimaram em -1,8% ([1]). Para 2014 a troika prevê que um crescimento do PIB de 0,8%. ([2]). A tabela abaixo mostra a evolução oficial da variação anual do PIB e as previsões da UE (da Comissão Europeia, publicadas pelo Eurostat).
A evolução da taxa de variação homóloga trimestral do PIB real (isto é, vendo quanto variou o PIB real ([4]) num dado trimestre, face a idêntico trimestre do ano anterior), é mostrada na figura abaixo (gráfico do INE).

Verifica-se que o PIB tem caído sistematicamente (taxa de variação negativa face a igual período do ano anterior) há 11 trimestres, embora a um nível mais lento nos últimos dois trimestres. Em 2013 os valores trimestrais (T) foram: -4,2% (1.ºT), -2,1% (2.ºT) e -1.º (3.ºT). A figura também mostra a taxa de variação anual ([5]).
O governo mostrou-se recentemente eufórico, dizendo que a recessão técnica tinha terminado (+0,2% no 3.º trimestre, [6]). A razão de ser desta afirmação tem a ver com o facto de que o governo tem em conta não a variação homóloga (ano-a ano; "year-on-year") mas sim a variação entre trimestres consecutivos (variação encadeada ou "trimestre-a-trimestre; "quarter-on-quarter"). Ora os respectivos valores desta variação em 2013 foram: -0,5% (1.ºT), 1,1% (2.ºT), 0,2% (3.ºT). Uma evolução muito diferente da variação homóloga, como mostra o gráfico abaixo.
   
   
Tecnicamente Portugal saiu da recessão, mas só tecnicamente: usando a regra dos dois trimestres consecutivos com variação negativa trimestre-a-trimestre.
Existem, contudo, razões poderosas contra a euforia do governo:
1) A regra da recessão técnica é uma "má" regra, conforme reconhecem muitos economistas; pode transmitir falsas impressões sobre a evolução da economia. Basta que haja, num mau ano, um bom Verão económico para sair da recessão técnica, transmitindo uma falsa visão optimista (ver mais detalhes em [7]). A evolução da variação homóloga é bem mais esclarecedora e ela mostra sistematicamente um decréscimo homólogo do PIB em 2013.
2) O orçamento proposto pelo governo para 2014 irá causar mais recessão, conforme reconhecem economistas e fontes da UE. É provável que deparemos em 2014 com um cenário de recessão dito de «duplo mínimo» (uma evolução das barras azuis acima em forma de W).
   
Um aspecto importante a apontar quanto à variação anual do PIB é que todas as previsões -- do ministério das Finanças, da troika, da OCDE -- têm sido optimistas. A figura abaixo compara as previsões da UE (Comissão Europeia) com os valores oficiais, incluindo a estimativa para 2013 calculada a partir das estimativas trimestrais homólogas do INE para o 3ºT (-1%) e 4.ºT (-0,8%); estimativa essa que é de -2% ([8]) e não de +1% como diz o governo ([9]). Pelas previsões da UE (e de outros) iremos ter sempre um futuro radioso…
   
2 – Dívida Pública (DP)
   
A tabela abaixo mostra as previsões da UE para a dívida pública em percentagem do PIB bem como os valores oficiais no final de cada ano (dados do Eurostat, excepto para 2013 em que se mostra a estimativa do INE e governo).
   
Se a estimativa do INE se confirmar, corresponde a um agravamento da DP em 3,4% e a uma ultrapassagem do valor de 119,4% projectado no 7.º exame da troika ([10]). É muito possível que o valor final venha a ser significativamente maior, dado que o Banco de Portugal (BdP) dizia que no final de Junho a DP tinha atingido 131,4% ([11]). O valor de 131,4% para o final do primeiro semestre foi o adoptado pelo Conselho das Finanças Públicas.
A DP deverá agravar-se em 2014, por uma multiplicidade de razões, de que as principais são: contracção da Economia; pagamento de resgates a bancos; e, last but not least, pagamento das tranches recebidas do resgate da troika (vale a pena ver a figura dos prazos de reembolso aos diversos fundos europeus que publicámos em http://revolucaoedemocracia.blogspot.pt/2013/02/austeridade-em-portugal-ponto-da.html). As previsões da DP, como outras, são sempre optimistas (figura abaixo).


3 – Défice Orçamental (DO)


Apesar de todos os cortes, apesar da continuada destruição dos serviços públicos, o défice orçamental, se baixar, pouco o fará face ao valor de 2012, situando-se bem acima dos 4,5% (em valor absoluto) que a troika previa e desejava ([12]).
A ministra das Finanças, BdP e FMI estimaram em 5,5% o défice de 2013 [13]). Veremos. O valor do INE para o final do 1.º semestre era de 7,1% ([14]). Em Setembro, tendo em conta o “buraco” de 700 milhões de euros do Banif (que o Estado, isto é, os contribuintes iriam tapar) e a derrapagem no IRS, o Conselho das Finanças Públicas apontava para 6,4% ([15]). Como sempre as estimativas da UE são optimistas.

4 – Taxa de Desemprego

   
O desemprego não pára de aumentar, com o governo a admitir em Outubro que o emprego iria diminuir em 2014, apontando para um aumento de 0,5% da taxa de desemprego. Procurou também fazer crer que a taxa de desemprego tinha inflectido a sua tendência em Julho e Agosto (baixou em Agosto face a Julho de 16,6% para 16,5%). Para além de uma diminuição sazonal há que ter em conta, conforme já fizemos notar em Outubro (http://revolucaoedemocracia.blogspot.pt/2013/10/a-sociedade-participativa-e-portugal.html ), que alguma redução se deveu à emigração. Ora foi isso mesmo que disse uma fonte da UE um mês depois: essa diminuição de desemprego era temporária e devia-se à redução da população activa devido à emigração. De facto, o número de postos de trabalho destruídos em 2013 é três vezes mais que o número de pessoas que saiu das estatísticas de desemprego por terem emigrado ou desistirem de procurar emprego ([16]). Além disso, em Agosto, quase metade dos desempregados estava sem subsídio de emprego ([17]). O problema é particularmente grave entre os jovens, com taxas de desemprego da ordem de 40% (50% no Sul da Europa, com 57% na Grécia, 56% em Espanha e 40% na Itália). Fala-se em «geração perdida». As previsões económicas e os aumentos da idade de reforma não são de molde a melhorar este cenário.

5 - Balança Comercial
Apesar de uma subida importante das exportações (da ordem dos 3-4%) a balança comercial continua negativa, com um défice da ordem dos 900 milhões de euros. As importações têm crescido mais que as exportações; p. ex., no 2.º trimestre as importações subiram 3,1% e as exportações só subiram 2,3%.
Segundo o Boletim da AICEP, «Portugal Global», do 1.º semestre de 2013, os seis maiores artigos de importação foram os da tabela abaixo (usamos bilião = mil milhões):
   



% do total de importações
Biliões de €
1
Combustíveis
19,5
7,1
2
Maquinaria
14,1
5,1
3
Produtos agrícolas
11,2
4,1
4
Produtos químicos
10,9
4,0
5
Veículos
8,7
3,2
6
Metais comuns
8,0
2,9
 

Para além da tradicional dependência em combustíveis e maquinaria, é de notar a grande dependência em produtos agrícolas, consequência de sistemáticas políticas agrícolas erradas que «complementaram» a liquidação da Reforma Agrária iniciada e encabeçada pelo PS desde 1976. A nossa entrada para a CEE-UE não trouxe melhorias neste aspecto; muito pelo contrário, só agravou os problemas. Notar também o peso dos veículos importados: a importação de veículos de passageiros de gama média e baixa desceu com a crise, mas o mesmo não aconteceu com as vendas de carros de luxo (Ferrari, Porsche, Jaguar, Lamborghini, etc.) que aumentaram. (Também aumentou em 154% a importação da Suíça de peças e ferramentas de ourivesaria, [18].) Quanto à importação de «metais comuns» interessaria apurar em que medida a liquidação da nossa siderurgia não desempenha aqui um papel.

6 - Desigualdade Social
Os cortes nos subsídios sociais, a baixa de salários (ver p. ex. [19]) e o desemprego têm contribuído para que cada vez mais famílias sobrevivam graças às refeições que também dão aos sem-abrigo (1113 sem-abrigo detectados no Porto, [20]; ver nosso artigo acima citado). O índice de Gini tem aumentado de 2010 a 2012 (respectivamente, 33,7, 34,2 e 34,5; sobre este índice ver http://revolucaoedemocracia.blogspot.pt/2013/07/desigualdade-social-portugal-e-os.html )
Entretanto, o número de milionários portugueses cresceu 3,4% em 2012: são mais 10.750 com mais de 1 M€. Segundo um analista da Capgemini, porque investiram em valores mobiliários dos EUA e da Alemanha (onde as acções subiram 29%). O número de multimilionários também aumentou e estão cada vez mais ricos: mais 870 (+10,8%) com fortunas acima de 25 milhões de euros e um total de 56.065 (aumento de 8,7% face a 2012) com fortuna total de 6,5 biliões de euros ([21]).

7 - Outros
- O consumo privado decresceu 2,5%, mas (claro!) o governo prevê que irá crescer 0,1% em 2014…
- O investimento na indústria continuou a cair: -8,5% em 2013. O governo prevê que irá subir 1,2% em 2014 e Passos «reconhece» situação aflitiva das PMEs…
- A banca poderá sofrer perdas de 8 B€ durante os próximos 2 anos por crédito mal parado ([22]). O patrão do BES, Ricardo Salgado, queixa-se da carga fiscal contra a banca.
- As insolvências cresceram 15,8% em 2012 e 2013, ao ritmo médio de 737 empresas por mês ([23]).
- O número de docentes em exercício recuou para valores de há 16 anos atrás ([26]).
- A emigração tem aumentado. Eis os números dos emigrantes permanentes ([25]):
   
2008
2009
2010
2011
2012
20.357
16.899
23.760
43.988
51.958
   
Em 2012, 6.300 dos que emigraram eram altamente qualificados. O total de emigrantes permanentes e temporários foi de 121,4 mil em 2012; maior que na década de 60, onde o máximo foi de 120 mil em 1966 (dados do INE).
- A «Idade da reforma vai aumentar todos os anos e passa a variar de acordo com a esperança média de vida», afirmou no final de Outubro o Ministro da Solidariedade(!), Emprego(!) e Segurança Social(!), Pedro Mota Soares ([27]). Note-se a confirmação do cenário que já tínhamos denunciado em detalhe um mês antes em http://revolucaoedemocracia.blogspot.pt/2013/09/desenvolvimento-sustentavel-vi-valor.html .
- Portugal está muito próximo da deflação, ou seja, uma inflação negativa (a taxa de inflação foi de 0,9% em Setembro e de 0,59% em Outubro, [28]). A inflação negativa, com baixa de preços por período não muito curto, levará a que as famílias adiem os seus consumos e as empresas recuem nos investimentos, tornando a saída da recessão ainda mais difícil.

B) O Orçamento e Outras Medidas para 2014
   
O que o governo prevê fazer em 2014 é uma brutal destruição das condições de vida de quem trabalha e de quem é pobre. Não iremos proceder aqui à análise detalhada do orçamento proposto pelo governo. O leitor encontra-a no trabalho do economista Eugénio Rosa ([29])
Enumeremos rapidamente as principais medidas ([30]): cortes nas pensões de sobrevivência [roubar às viúvas e viúvos para dar aos banqueiros]; contribuição extraordinária de solidariedade sobe 3,5% para pensões entre 1300-1800 euros, podendo chegar a 40% [idem, para pensionistas]; sobretaxa de 3,5% no IRS; novos cortes, agora de 10%, nas reformas da função pública; cortes nos salários da função pública, de 5% para todos, acrescido de corte adicional de 10% a partir de 600€ [roubo aos pobres] até 15% para outros escalões, com 260 mil funcionários públicos a sofrer pela primeira vez um corte salarial, e este a mais que duplicar, face aos cortes de 2013, para 165 mil funcionários; taxa sobre empresas de energia [dizem que não afecta tarifário!]; aumento dos descontos para a CGA; enormes cortes nas despesas públicas [os maiores desde 1977!] que irão afectar serviços essenciais à população (-7,6%, logo menos 500 milhões € para ensino básico e secundário; -4% para ensino superior e Ciência; -9,4% para Saúde; -6,8% para Justiça; -23,7% para Finanças e Administração Pública).
   
Outras medidas anunciadas:
- Novas privatizações: CTT, recolha de lixo.
- Aumento da idade da reforma para 66 anos (ver o que dissemos acima).
- Projecto para baixar IRC gradualmente até 19% em 5 anos. Bem analisado este projecto, verifica-se que irá só servir as grandes empresas ([31]). De facto, a Comissão para a Reforma do IRC preconiza a descida gradual das taxas de IRC de 25% para 17% a 19% em 2016, entre outras razões para atrair investimento estrangeiro. Preconiza também a isenção de dividendos e mais-valias, um sistema que será «único na Europa» (!) ([32]). Sim, único ao serviço do grande capital. A Comissão também avisou que «não haverá competitividade sem um compromisso nacional duradouro pela estabilidade do sistema fiscal». É claro que a «competitividade» (mais outra palavra mágica) aumentará desmedidamente se os trabalhadores portugueses se conformarem a um papel de escravos.
- Os meios bilhetes (50% de desconto para crianças e idosos) vão acabar na CP para quem tiver passe social. Mas estes custam 545€, pelo que a frase «para quem tiver passe social» é largamente cosmética.
   
Todas estas medidas anunciadas com um grande cinismo, com sorrisos e risinhos; com grande demagogia, procurando fazendo uso de belas palavras e, no caso p. ex. do Paulo Portas e Mota Soares (este anunciou os cortes nas pensões de sobrevivência para poupar 100 milhões de euros; amendoins para os banqueiros), com a mansuetude cristã, de que só estão a trabalhar a favor dos desfavorecidos e em prol da «sustentabilidade» essa palavra que usam de forma mágica e críptica, esquecendo-se de dizer que se trata da sustentabilidade dos muito ricos, do grande capital financeiro, nacional e internacional.
   
Por vezes o cinismo e a demagogia mascaram-se com roupagens «científicas» como Nuno Crato: «alguns sacrifícios que vão transformar Portugal num país competitivo»; «Teríamos de trabalhar mais de um ano sem comer nem utilizar transportes, sem gastar absolutamente nada só para pagar a dívida». Crato também considerou adequado um orçamento assente em 4 pilares: consolidação orçamental; equidade; solidariedade; crescimento ([34]). A matemática de Crato é de curto intervalo temporal: só vai um pouco além de «um ano»; e, mesmo neste curto intervalo, é de intervalo social «aberto à direita»: revela uma estranha distracção quanto, p. ex., aos 6,5 B€ dos multimilionários que vimos acima. Mas se a matemática de Crato é má, a atitude «científica» é pior: a «teoria» da consolidação orçamental já falhou no passado, é uma má «teoria»; a equidade não existe; a solidariedade? De quem e para quem?; e o crescimento é uma descarada mentira.
   
A atitude de servilismo do governo perante os ditames do grande capital da UE só tem servido de incentivo a ingerências na nossa soberania, de que são exemplos claros as frases do relatório enviado a Bruxelas pelos representantes da UE em Lisboa, acerca dos chumbos do Tribunal Constitucional: «As dúvidas sobre a imparcialidade política do Tribunal Constitucional existem desde a sua criação», «Será que o Tribunal Constitucional português é um legislador negativo?» ([35]). A atitude da troika é semelhante, e nem o governo escapa quando tem de ser esporeado a avançar na destruição do país a favor do grande capital. No 7.º exame a troika culpou o governo por falhanço das políticas, entre outras coisas porque os ministros não conseguiram cortar 4 biliões de euros, só ajustaram a receita e não a despesa, e por esta razão espantosa: «não explicaram as medidas à população»! Aliás a Comissão Europeia considera que a possibilidade de chumbo por parte do TC é elevada ([36]) e desde já avisou (e muito cuidadinho com os «avisos» da troika) que se por qualquer razão o TC impedir os cortes de  4,3 biliões de euros em 2014 (ano em que Portugal pagará 7,3 biliões de euros só em juros), a ordem é para impôr os cortes tal como a troika tinha indicado. (Isto chama-se um «diktat», não chama?)
*    *    *
A famosa «reforma do Estado», conforme já analisámos em artigos anteriores, tem precisamente como objectivo impor nova Constituição (é a 7.ª ou 8.ª que PS-PSD-CDS já cozinharam desde o 25 de Abril?) que dê base jurídica ao recuo ao passado, impedindo, por exemplo, os chumbos do TC; que dê base jurídica à liquidação das relíquias que subsistem do «Estado Social», substituindo-o pelo «Estado do Grande Capital Financeiro», o Estado da actual classe dominante. Nisso se empenha o governo. Portas apresentou o guião para a reforma do Estado: a revisão da Constituição para um «Estado moderno» ([37]). Quanto ao espantoso ministro da Defesa, Aguiar-Branco, não teve papas na língua ao dizer que o «Estado Social» é um «Estado totalitário» ([38]). Disse que existia em Portugal a «tentação de um Estado totalitário» provocado por um «Estado Social absorvente» que cria «promiscuidades», «clientelas» e «dependências». Disse ainda que «A revisão da Constituição é uma questão de afirmação da liberdade da sociedade civil» (é claro, que se viesse a ser alterada por vontade do povo no sentido de uma Constituição socialista ele já não acharia que se tratava «de afirmação da liberdade da sociedade civil»). Citou o não menos espantoso Sá Carneiro (fundamentaremos a nossa qualificação oportunamente) para defender que «um Estado social que absorve a sociedade por completo é um Estado totalitário». Estes «sociais-democratas» (esta designação não queria dizer, em tempos, que defendiam o «Estado Social»?) ao menos esclareceram o que entendem por Estado totalitário: um Estado que não deixa o grande capital fazer o que quer, que impede a destruição dos serviços públicos, que impede o roubo dos trabalhadores e das camadas pobres para encher os bolsos do grande capital; enfim, um Estado cheio de atropelos à «liberdade».
   
O PS prepara-se, como sempre fez no passado, para no essencial defender as posições do grande capital. Quando Seguro diz ([39]): «No realismo desta via de sustentabilidade é preciso que haja consciência que Portugal não pode regressar ao passado de há 10 anos, 20 ou 30 anos. Todas as opções políticas devem passar pelo crivo da sustentabilidade, seja na saúde, na educação, na segurança social, ou nos investimentos» usa as expressões contraditórias caras à pequena burguesia que Seguro representa -- por um lado, « Portugal não pode regressar ao passado de há 10 anos, 20 ou 30 anos»; mas, por outro lado, «Todas as opções políticas devem passar pelo crivo da sustentabilidade [do grande capital]» --, contradições que no final se resolvem no apoio ao grande capital. O «intelectual» António Barreto, que devia usar uma medalha de «liquidador do 25 de Abril» também apresentou as suas razões teóricas, afirmando que a reforma do Estado obriga a uma «revisão profunda da Constituição»; nada de revisões superficiais; toca a liquidar profundamente tudo que cheire a «Estado Social». Quanto à patética exclamação de Mário Soares «querem acabar com o Estado Social» ([40]), é patética porque inconsequente: nunca o PS teve rebates de consciência quando se tratou de diminuir o «Estado Social»; pelo contrário, sempre trabalhou por o diminuir e criar as condições futuras da sua total destruição. E Mário Soares tem uma famosa tradição de só ser/parecer de esquerda quando não está (ou o PS não está) no governo.
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Estávamos a esquecer-nos de outra grande medida proposta pelo governo para 2014: a liberalização do jogo online, sujeito ao pagamento de 20% de taxa! Assim, os trabalhadores, viúvos, pensionistas e reformados podem, em desespero de causa, recorrer a uma ocupação útil e agradável, capaz, quem sabe!, de afastá-los dessa coisa de lutas e manifestações. E isto tudo -- maravilha das maravilhas -- contribuindo para as receitas  de casinos e do Estado. Ao fim e ao cabo, o actual Estado é, bem vistas as coisas, um grande casino.

C) A Opinião de um Economista Convencional  
Qualquer economista convencional cujas amarras ideológicas não impeçam de reconhecer a realidade, não tem dificuldade em diagnosticar o «sem saída» da política de austeridade (embora sem ultrapassar certas barreiras da análise, sem a acuidade da análise marxista). O economista Paul de Grauwe mostrou-se dessa estirpe quando recentemente comentou a situação económica portuguesa ([41]).  De Grauwe é professor na London School of Economics e uma espécie de neoliberal com dúvidas, ou neoliberal arrependido, que se aproximou em certos pontos do keynesianismo. Eis algumas das suas afirmações recentes:
- «O Governo português fez o grande erro de tentar ser o melhor da turma no concurso de beleza da austeridade. Não havia razão para Portugal fazer isso, podia não ser o melhor da turma, podia ser mesmo o pior e isso seria melhor para economia». Defendeu que Portugal tinha de levar a cabo medidas para reduzir a despesa, mas podia fazê-lo ao longo de mais anos, de modo a suavizar o impacto económico. Afirmou que até economistas do FMI, já perceberam que não é possível «fazer a austeridade toda ao mesmo tempo» [mas isso só foi reconhecido muito recentemente], enquanto na Europa os líderes continuam imutáveis.
- «Portugal e outros países do Sul da Europa deviam unir-se e dizer que a maneira como os tratam não é aceitável [...] Vocês [países do Sul da Europa] têm influência na Comissão Europeia, mas não a usam».
- «A Zona Euro tornou-se um sistema em que a nações creditícias mandam [não são as nações, é o grande capital creditício; e creditício até certo ponto]. Mas a responsabilidade da crise não é só dos devedores, mas também dos credores. Por isso, a Comissão Europeia devia intervir no interesse dos credores e também dos devedores» (42).
- Sobre se deve ser colocado um limite ao défice e endividamento na Constituição portuguesa, Paul de Grauwe rejeitou de imediato, considerando que «não faz qualquer sentido», já que haverá sempre períodos em que os países têm de aumentar o seu endividamento para acomodar as crises cíclicas e proteger os cidadãos [quais?].
- «O capitalismo é um sistema fantástico, mas muito instável, que produz altos e baixos, períodos de optimismo e pessimismo, e nos baixos o Governo tem de juntar as peças e os défices necessariamente aumentam. Precisamos de Governos que protejam os cidadãos, que os ajudem [quando estão mal]. Se não o fizerem, a legitimidade dos Governos fica em causa». A costela ideológica de De Grauwe revela-se plenamente aqui: um sistema «muito instável» classificado como «sistema fantástico», é coisa difícil de entender; os «períodos de optimismo e pessimismo» seriam meras apreciações subjectivas se não tivessem consequências materiais nas condições de vida de milhões; quanto ao «Precisamos de Governos que protejam os cidadãos» é mera jeremiada como as da igreja -- há séculos que se apregoam bonitas intenções sem quaisquer consequências. Aliás, De Grauwe também disse: «é difícil entender como pode o Governo magoar a população e sentir-se orgulhoso disso». Aí tem. E isso de um governo cheio de virtudes cristãs (podiam também ser islâmicas, budistas, etc.). Mas não é de um qualquer governo ou de uma qualquer população que se trata Sr. De Grauwe! Falta-lhe a perspectiva de classe.
- «Portugal tem tanta austeridade que a dívida se tornou insustentável, algo tem de ser feito. Não acho que consiga sair do problema hoje sem uma reestruturação da dívida», defendeu, considerando que o presidente da República, Cavaco Silva, está a «fechar os olhos à realidade» quando considerou que é «masoquismo» dizer que a dívida portuguesa não é sustentável.
- «Dizem aos portugueses que têm de fazer mais sacrifícios. Para quê? Para pagar a dívida aos países ricos do Norte [da Europa]. Isto será explosivo, os portugueses não vão aceitar isso indefinidamente».
- «Um novo programa de austeridade vai empurrar Portugal para a insolvência». Já há quem na UE fale em perdão parcial da dívida.
- «A necessidade de reformas estruturais em Portugal é um "mito"», disse o economista, para quem -- à maneira dos keynesianos -- é a falta de procura que provoca a recessão da economia. Para os marxistas a culpa – como já dissemos várias vezes em artigos anteriores -- é a baixa taxa de lucro, que condiciona o nível de investimento e, a partir daí, o emprego e a procura.
   
As análises de De Grauwe têm algum interesse, em particular por revelarem o «incómodo» que já sentem os que sempre defenderam a «economia de mercado». Contém diagnósticos acertados mas sempre na óptica keynesiana de que o capitalismo é um «sistema fantástico» (principalmente para os capitalistas, claro) que tem de ser salvo. E a salvação, à boa maneira keynesiana, virá aumentando a procura. Nos EUA e no Japão tem-se tentado incentivar a procura através de políticas de «quantitative easing» sem grande sucesso: a economia dos EUA regista um crescimento anémico (1,7%) e o do Japão ainda mais (1,1%). O problema essencial é precisamente o de que o capitalismo do «mundo ocidental» deixou há muito de ser um «sistema fantástico» encontrando-se em crise profunda que nem os purgantes da austeridade nem as mezinhas keynesianas conseguem sarar.

Referências
[1] JN 6/11/2013
[2] JN 8/10/2013
[3] Valores mais recentes do INE, que substituem os valores que apresentámos em artigos anteriores. O INE procede à actualização de valores conforme vai obtendo dados mais actualizados e/ou validados. Na data de publicação do presente artigo o valor de 2011 tinha a classificação de provisório (Po) e o de 2012 de preliminar (Pe).
[4] O PIB real tem em conta o índice de preços correntes, enquanto o PIB nominal é calculado usando os preços correntes de mercado, praticados em cada trimestre. Para fins comparativos, entre vários anos, o PIB nominal não é adequado porque não toma em conta o poder de compra da moeda (a inflação ou deflação que tenha ocorrido). No PIB real esse efeito é tido em conta através do índice de preços referido a um certo ano e trimestre. Nos dados do INE o ano de referência é 2006. P. ex., o PIB nominal do 1.º trimestre de 2013 é de 40.683,5 milhões de euros (M€). Contudo, o índice de preços de um cabaz padrão de bens e serviços, revela uma desvalorização de 7,2% face a 2006. Logo, a preços constantes, os 40.683,5 M€ nominais só correspondem, na realidade (se o poder de compra do euro tivesse permanecido inalterável) a 40.683,5/1,072 = 37.940,9 M€.
[5] A taxa de variação anual do PIB real obtém-se vendo quanto varia o PIB real anual. P. ex., o PIB real de 2012 (soma dos valores para os quatro trimestres) foi de 155.725,8 M€; o de 2011 foi de 160.915,5 M€. De 2011 para 2012 houve, portanto, um decréscimo de 5.189,7 M€. Face a 2011 a variação é de -5.189,7/160.915,5 = -0,032. A variação percentual é de -3,2%, o valor que consta da tabela.
[6] JN 15/11/2013
[7] Mapari, "Porque é que o conceito da recessão técnica é estúpido?", Economia e Finanças, 13/8/2013: http://economiafinancas.com/2013/porque-e-que-o-conceito-da-recessao-tecnica-e-estupido/
[8] Para estimar a variação anual para 2013 começamos por calcular o PIB real no 3.º e 4.º trimestres, usando os valores oficiais para os mesmos trimestres em 2012 e as estimativas de variações homólogas (respectivamente, -1.0% e -0.8%). Temos então: PIB real em 2013-T3 = PIB real em 2012-T3x(1 – 0,01) = 38859,3x0.99 = 38470,7 M€; PIB real em 2013-T4 = PIB real em 2012-T4x(1 – 0,008) = 38111,1x0,992 = 37806,2 M€. Usando os valores oficiais do PIB real dos dois primeiros trimestres de 2013 a estimativa do PIB real anual para 2013 é: 37940,9 + 38347,4 + 38470,7 + 37806,2 = 152565,2 M€. Face ao valor de 2012 (155,725,8) o valor de 2013 corresponde a uma variação de -2%.
[9] JN 14/8/2013: "O Governo calcula que se a economia continuar a crescer ao ritmo trimestral acima do esperado, de 1,1%, registado neste segundo trimestre, a economia chegará ao final do ano com uma recessão de 1%."
[10] JN 4/10/2013.
[11] Portugal cometeu o erro de ser o melhor aluno da 'troika', diz economista belga, JN 10/11/2013.
[12] JN 25/9/2013: "Aumento de impostos foi insuficiente para fazer face ao aumento de desemprego e de pensionistas."
[13] JN 8/10/2013.
[14] JN 1/10/2013, Público 1/10/2013.
[15] JN 3/10/2013.
[16] JN 8/11/2013.
[17] O JN 1/10/2013 publicava de fontes oficiais: desemprego em Agosto: 695 mil; com subsídio: 387 mil.
[18] OJE, 25/10/2013.
[20] JN 26/6/2013.
[21] JN 8/11/2013.
[22] JN 10/10/2013.
[23] Dados da Ignios, JN 15/11/2013.
[24] JN 5/10/2013.
[25] JN 1/8/2013.
[26] JN 31/8/2013.
[27] JN 26/10/2013.
[28] Público 6/11/2013.
[29] “Um orçamento imoral que vai prolongar a recessão económica e agravar ainda mais as desigualdades de rendimento e as dificuldades das famílias” Eugénio Rosa, 3/11/2013. http://www.eugeniorosa.com/Sites/eugeniorosa.com/Documentos/2013/53-2013-orcamento-imoral.pdf
[30] JN 10/10/2013, JN 11/10/2013, JN 15/10/2013, JN 16/10/2013, Público 16/10/2013.
[31] "A reforma do IRC é feita à medida dos desejos das grandes empresas", 24/10/2013
[32] JN 4/11/2013: "Foco na descida da taxa de tributação".
[33] JN 7/10/2013.
[34] Em sessão de esclarecimento sobre o OE. JN 6/11/2013.
[35] JN 19/10.
[36] JN 3/10/2013, JN 16/11/2013: "Chumbo do TC obrigará a medidas adicionais".
[37] JN 31/10/2013.
[38] JN 7/11/2013.
[39] JN 23/10/2013: "Seguro aceita compromisso de políticas públicas".
[40] JN 26/10/2013.
[41] JN 10/11/2013: "Portugal cometeu o erro de ser o melhor aluno da 'troika', diz economista belga na conferência que assinala os 25 anos do INDEG, a escola de negócios do ISCTE -- Instituto Universitário de Lisboa".
[42] Para De Grauwe, se os países com contas públicas mais fortes fomentassem a expansão, isso contrariaria a contracção orçamental dos países da periferia. No início do mês, o Departamento do Tesouro dos Estados Unidos criticou a Alemanha por usar a crise para fomentar excessivamente as exportações, o que obriga os países da periferia a um ajustamento excessivo. Também o FMI veio, entretanto, dizer que a Alemanha podia contribuir para a estabilização da economia da Zona Euro se aumentasse o consumo interno. Mas todas estas afirmações reflectem apenas lutas de interesses entre os representantes do grande capital americano e alemão.

domingo, 17 de novembro de 2013

O sector financeiro. V: O «caso» BPN

Em 2 de Novembro de 2008 o Governo PS de José Sócrates anunciava que ia propor à AR a nacionalização do Banco Português de Negócios (BPN), devido à descoberta de um «buraco» de 700 milhões de euros, que teria sido durante anos ocultado ao Banco de Portugal (BdP). Na realidade o «buraco» era cerca de 11,8 vezes maior (8,3 mil milhões de euros, pelo menos; está sempre a aumentar) e não esteve oculto do BdP, antes o BdP ocultou-o aos portugueses. 

O então ministro das Finanças, Teixeira dos Santos, justificou na AR a medida com a situação «excepcional», «delicada» e «anómala» do BPN -- muitos adjectivos, zero esclarecimentos --, alegando existir o perigo de um contágio ao restante sector bancário, o chamado «risco sistémico».

O BPN foi nacionalizado nesse mesmo mês de Novembro pelo Governo PS. Nacionalizado apressadamente, sem inquérito aos factos, sem apresentação de toda a documentação que se lhes referia, salvando os vilões de responsabilidades. A primeira nacionalização em Portugal desde o 25 de Abril, a primeira e única nacionalização de iniciativa PS, viria a revelar-se uma espantosa burla política, uma espantosa ocultação da maior fraude do século, envolvendo figuras gradas do regime: políticos do PSD (na fraude) e do PS (na falha da entidade supervisora e na nacionalização).

A verdade tem vindo a ser descoberta pouco a pouco, cada vez com a exposição de mais ilegalidades, de mais sujeiras. É uma verdade que retrata bem a extrema podridão a que chegou o regime político, ao serviço do grande capital, instalado em Portugal pela mão do PS em 25 de Novembro de 1975 e amadurecido, desde então, pelo PS, CDS e PPD/PSD.

Na realidade, a podridão que emana do «caso BPN» é tal, que Cândida Almeida, numa entrevista recente (8/8/2013) depois de ter deixado a chefia do Departamento Central de Investigação e Acção Penal (DCIAP), não se coibiu de se lhe referir desta forma: «Aquilo é um mundo, um mundo… Mexe-se na terra e sai minhoca por todo o sítio».
   
Oliveira e Costa e Dias Loureiro, dois dos principais arguidos do caso BPN, com Cavaco Silva também «contaminado» pelo caso, estiveram juntos no Governo e foram accionistas da SLN. Nesta foto (da Lusa), o Presidente visita mais um negócio ruinoso do grupo, desta vez no sector automóvel. Não eram, porém, os negócios oficiais do BPN que verdadeiramente interessavam os arguidos do BPN; eram, sim, as actividades fraudulentas.
   
A nossa apreciação do «caso» BPN está estruturada nas seguintes secções:
   
1 – Preliminares
2 – Fraudes
            2.1 O esquema básico
            2.2 Alguns casos concretos
            2.3 Um banco que dava milhões ao «bando»
            2.4 O engodo das taxas de juro elevadas
3 – Nojeiras para todos os gostos
4 – Os processos e os arguidos
5 – A «nacionalização» PS do BPN e seus custos
6 – A estranha negligência do BdP e o incrível Constâncio
7 – O inquérito parlamentar e seu esvaziamento pelo PS
8 – A reprivatização: entrega do BPN ao BIC
   
*    *    *
   
1 - Preliminares
   
O BPN foi criado em 1993, por fusão de duas sociedades financeiras de investimentos (ver, p. ex., wikipedia). Em 1998, Oliveira e Costa, economista, militante do PSD, antigo quadro do BdP e Secretário de Estado dos Assuntos Fiscais do governo de Cavaco Silva (Miguel Cadilhe era o ministro das Finanças) torna-se presidente do BPN, transformando-o num banco comercial e pondo em prática, alegadamente, uma estratégia de investimento em sectores de actividade como a indústria dos cimentos e dos polímeros. É criada a Sociedade Lusa de Negócios (SLN), «holding» destinada a agregar os investimentos não financeiros do grupo.
   
Para além do BPN, a SLN detinha empresas na área da tecnologia (Seac Banche, I2S, Datacomp e NlS), concessionários automóveis (Sorel e SLV), hotéis e turismo (Hotel do Caramulo, Hotel da Costa da Caparica e Turivisa), saúde (Grupo Português de Saúde, British Hospital XXI), Alimentos e agricultura (Murganheira, Tapada de Chaves) e indústria (C.N.E. - Cimentos, CANAM, Omni, Inapal Plásticos).
   
Em 2001-2002, Manuel Dias Loureiro trabalha durante nove meses como membro da comissão executiva da SLN. Em 2002, o BPN adquire o banco Efisa, a correctora Fincor e o Banco Insular, de Cabo Verde, este último sem comunicar a aquisição ao BdP (entidade supervisora da banca portuguesa). Em 2003, inicia a sua operação no Brasil com a compra ao Banco Itaú. O Brasil torna-se para o BPN o mercado de eleição para a internacionalização. Em 2005, 20% do BPN Brasil é adquirido pelo Banco Africano de Investimento, uma instituição privada angolana, de que a Sonangol é accionista
   
Em 2003 a Deloite, firma que auditava as contas do BPN, põe em causa essas contas, pelo que é despedida.
   
Em 2007, o BdP pede ao SLN/BPN que clarifique a sua estrutura accionista e proceda à separação das áreas financeiras (SLN Investimentos, Plêiade e Partinvest) das não financeiras (BPN e Real Seguros). Os esclarecimentos só foram prestados em 2008 pelo então presidente-interino Abdool Vakil, já após a saída de Oliveira e Costa.
   
Em Fevereiro de 2008, Oliveira e Costa abandona a presidência do grupo SLN/BPN, invocando problemas de saúde. O BPN é alvo de uma investigação no âmbito da «Operação Furacão», mega-processo que desde 2005 investiga crimes de fraude fiscal e branqueamento de capitais, envolvendo instituições financeiras.
   
Em Junho de 2008, Miguel Cadilhe, antigo ministro das Finanças e ex-administrador do BCP, é eleito presidente do grupo SLN/BPN (substituindo Abdool Vakil) lançando uma operação de recapitalização por subscrição de acções. Algo começa a emergir. Em Setembro, é anunciado um plano de venda de activos «não-estratégicos» e, em Outubro, o BPN recorre a um empréstimo de 200 milhões de euros junto da CGD para enfrentar dificuldades de liquidez, alegadamente causadas pela crise financeira internacional... De facto, este montante correspondia, grosso modo, aos resgates de depósitos feitos junto do BPN, com muitos clientes do BPN a acorrerem aos balcões do banco, perante rumores insistentes de que estaria a enfrentar dificuldades face ao agravar da crise financeira ([1]). Fonte oficial do BPN não comenta «operações de financiamento junto de outras instituições», referindo que estas decorrem «do normal relacionamento entre bancos, no âmbito do mercado interbancário». Depois de o semanário Expresso ter adiantado que o governador do BdP estava preocupado com «dois pequenos bancos», referindo-se a uma reunião no banco central entre Vítor Constâncio e os presidentes dos cinco maiores bancos portugueses, adensam-se os rumores em torno do BPN. Este desmente «categoricamente» a possibilidade de estar a enfrentar problemas decorrentes da crise de liquidez. O próprio Vítor Constâncio veio a público acalmar o mercado, referindo que os bancos portugueses são sólidos e que não se deve dar ouvido a rumores!
   
A situação começa a tornar-se insustentável. Para se proteger, Miguel Cadilhe denuncia a 28 de Outubro vários crimes financeiros que alegadamente teriam ocorrido ao nível da gestão do banco, envolvendo três quadros superiores, solicitando uma investigação profunda aos anteriores actos de gestão ([2]).

2 - Fraudes
   
Muito se tem escrito sobre o caso BPN (ver, principalmente, [3-6]). A SIC também apresentou alguns programas sobre o assunto de 5 a 8 de Fevereiro de 2013. O manancial de informação disponibilizado ao grande público surge, todavia, desestruturado, como uma colecção de notícias soltas, mais ou menos sensacionalistas, fora de um quadro estruturante e esclarecedoramente explicativo.
   
Vamos procurar suprir essa omissão, apoiando-nos, para tal, no melhor trabalho que encontrámos para esse fim: o excelente artigo do ex-deputado Honório Novo, militante do PCP, intitulado «O escandaloso caso do BPN» ([3]).
Conforme diz Honório Novo, o BPN foi «um banco concebido para servir um "um bando"»  (itálicos nossos, aqui e abaixo). De facto, «Ao contrário do que sucede com a generalidade dos grupos financeiros, que detêm participações -- maiores ou menores -- em grupos económicos ou em empresas, o BPN […] era totalmente dominado pela SLN. Esta estratégia de domínio total dum grupo empresarial sobre bancos foi, aliás, depois reforçada com a compra do Banco Efisa.»
«O Grupo SLN detinha 100% do BPN, o BPN era o banco do Grupo. E para garantir a "correcta articulação entre as duas entidades", Oliveira e Costa era o presidente de ambas. Esta estrutura "anómala" foi a razão pela qual, logo em 2000, o BPN foi "alvo de atenção mais cuidada", palavras do Banco de Portugal (BdP). De facto, a legislação impede que um banco possa conceder ao grupo a que pertence um crédito superior a 20% dos fundos próprios do banco. A razão é de prudência, tem a ver com a necessidade de impedir que a influência que um grupo (neste caso a SLN) tem sobre um banco (caso do BPN) permita que sejam concedidos créditos ao grupo em montantes que possam colocar em risco a solvabilidade do próprio banco.»
«O que sempre sucedeu no BPN foi a criação e desenvolvimento de um esquema ardiloso e fraudulento destinado a contrariar essa legislação de controlo, através da utilização de diversos instrumentos e expedientes. O objectivo central era financiar ilegalmente o SLN, as suas empresas e os seus accionistas e/ou gestores bem para além dos 20% dos fundos próprios do BPN. Um plano urdido por um grupo de elite capitaneado por Oliveira e Costa, constituído por administradores e gestores do Grupo SLN e do "seu" banco, muitos deles dirigindo as duas estruturas de cúpula e muitas das empresas do Grupo. Como alguém disse, existia "um bando dentro do banco BPN", ou, melhor ainda, existia "um bando dentro do Grupo que dominava o banco BPN"».
Quais os ardis de que se serviu o «bando» para embolsar milhões à custa de accionistas e de depositantes comuns? Foram os seguintes:
- A utilização de «empresas» offshore usadas para financiamentos ilegais de «empresas» do «bando»;
- A utilização do Banco Insular para financiamentos ilegais de membros do «bando» e «empresas» do «bando»;
- A concessão de créditos ao «bando» e amigos sem quaisquer garantias ou com falsificação de garantias;
- Burlas na compra e venda de activos;
- Oferta de taxas de juro elevadas para atrair depositantes e, inclusive, num caso, uso do esquema da «pirâmide»;
- Burlas de accionistas que subscreveram «papel comercial da SLN-Valor».
Todas estas «operações» com o cometimento de inúmeros ilícitos: abuso de confiança, fraudes fiscais, aquisição ilícita de acções, infidelidade (cometido por quem tendo o encargo de dispor de interesses patrimoniais alheios ou de os administrar ou fiscalizar, causar a esses interesses, intencionalmente e com grave violação dos deveres que lhe incumbem, prejuízo patrimonial importante), falsificação de documentos e branqueamento de capitais.
Diz ainda Honório Novo no seu artigo:
«Em 2008, afastado o grupo de Oliveira e Costa da gestão, o BPN entrou numa situação iminente de ruptura de pagamentos e de abaixamento de rating, que o impedia de recorrer a financiamentos interbancários. Para isto contribuíram, inevitavelmente, os megalómanos negócios do Grupo, a exposição excessiva a riscos de crédito imobiliário, a excessiva (e ilícita) concessão de crédito a empresas do grupo, a avaliação deficiente de activos, os empréstimos concedidos sem garantias e sem a formalização contratual necessária, o pagamento de remunerações em numerário a alguns gestores e administradores, tudo à margem da contabilidade oficial do BPN e do Grupo
   
2.1 O esquema básico
Contnuemos a acompanhar o artigo de Honório Novo ([3]):
«das "empresas" off-shore…»
«Criou-se primeiro um conjunto vasto de "empresas" off-shore -- chegaram a ser 100 --, ocultando-se os seus destinatários finais (isto é, os seus proprietários de facto, que depois se verificou serem empresas da SLN, alguns dos seus accionistas em nome individual, ou alguns dos titulares dos órgãos sociais do BPN e da SLN), que serviam como "ponte de passagem" para conceder financiamentos ilegais, ultrapassando o limite referido.
O BPN financiava essas "empresas" off-shore, as quais, escudadas no segredo garantido nos paraísos fiscais e na omissão dos seus proprietários, transferiam os créditos para empresas da SLN. Por vezes não era o BPN que concedia o crédito às offshore, ele era feito através de outras triangulações: o BPN financiava sucursais em paraísos fiscais, em especial o BPN-Cayman e o BPN-IFI (em Cabo Verde) e estas entidades depois financiavam as "empresas" off-shore, as quais, por sua vez, completavam o círculo, entregando os créditos aos destinatários finais, isto é, às empresas da SLN e não só…»
    
O esquema das offshores.
   
«Mas as off-shore tinham um outro objectivo: esconder custos do BPN. Muitas despesas, que deveriam ser registadas nas contas do BPN, eram pagas por essas "empresas" que, para tal, eram financiadas pelo próprio BPN. Havia, assim, um outro tipo de "empresas" off-shore sem qualquer valor activo, apenas com responsabilidades perante o BPN (impossíveis de liquidar), que as utilizou ou para esconder despesas, ou para efectuar pagamentos ilegais, incluindo pagamentos em "dinheiro vivo" a administradores
    
As offshores em causa não exerciam qualquer actividade produtiva ou comercial lucrativa, servindo apenas para pagamentos a terceiros, fora da contabilidade do BPN. Aliás, muitos dos empréstimos não estão titulados em qualquer documento, outros estavam em papéis em que não constam elementos de identificação dos clientes, como a morada. As sociedades eram totalmente fictícias, não dispondo de quaisquer activos ([7]).
«…às duas «versões» do Banco Insular (BI)»
«Pressionado por algumas perguntas feitas pelo BdP sobre a identidade dos destinatários finais de algumas das "empresas" off-shore -- algumas delas nunca respondidas sem que o BdP tivesse agido --, o BPN passa, no início da década de 2000, a utilizar paralelamente um outro instrumento, o famoso BI, com sede em Cabo Verde […] o BI -- que ficara na posse dos seus anteriores proprietários -- rapidamente passa para a mão de testas-de-ferro comandados pelos mentores do BPN/SLN. 
Assim, o BI começa a desempenhar o mesmo papel das "empresas" off-shore no esquema montado para financiar ilegalmente empresas do Grupo SLN: o BPN-Cayman e o BPN-IFI utilizam depósitos de clientes do BPN (muitas vezes sem o seu conhecimento) para financiar o BI que, por sua vez, financiava empresas da SLN. Relativamente ao esquema das "empresas" off-shore, o BI tinha até a vantagem de nem sequer precisar de ocultar os proprietários já que, formalmente, era um banco de Cabo Verde que nada tinha a ver com o BPN nem com a SLN…»
   

O esquema das offshores com o BI.
   
«O BI dedicava quase toda a sua actividade a triangular esquemas de financiamento do Grupo SLN. Só que o montante do crédito concedido pelo BI era tão elevado que, rapidamente, ultrapassou os limites adequados aos seus fundos próprios, de acordo com a supervisão de Cabo Verde. E é por isto que surge, a partir de 2003, um novo esquema montado pelo "bando" que tudo arquitectava na sede do Grupo SLN/BPN: um novo balcão, o BI virtual, sem qualquer existência física, totalmente operado por um grupo de "experts" na sede do BPN [!], com o qual se dá seguimento ao mesmo procedimento usado com o BI de Cabo Verde. Como seria de esperar, e não obstante existirem registos de todas estas operações (segundo o BdP, informaticamente ocultadas e, por isso, inacessíveis a operações de controlo), elas não eram contabilizadas, nem no BI nem no BPN.»
   
Já depois de nacionalizado o BPN moveu uma acção cível exigindo o pagamento de indemnizações a seis ex-dirigentes do grupo, incluindo Oliveira e Costa e Luís Caprichoso, dado que estes «enquanto membros do conselho de administração do BPN e/ou da SLN, decidiram fazer investimentos, aquisições de participações ou simplesmente despesas, através de operações de crédito cedidas pelo Banco Insular, por ordem de ambos». Só entre 2001 e 2007 o BI atribuiu, por indicação expressa de Oliveira e Costa e Luís Caprichoso, crédito a 15 sociedades offshore, com dados incompletos, no valor de 102 milhões de euros. Além disso, para uma alegada garantia de 65 empréstimos do BI a offshores, no valor total de 36,8 milhões, foram passadas cartas de opção que obrigavam o BPN a recomprar os créditos sem qualquer contragarantia prestada pelos contratantes ([7]).
Note-se que o próprio BPN chegou a gerir contas de investimento de 550 milhões de euros sem autorização da Comissão de Mercado de Valores Mobiliários (revelado na comissão de inquérito parlamentar, 29/4/2009).
*    *    *
As tabelas seguintes mostram algumas das offshores e dos negócios ruinosos usados apenas para locupletar «empresas» e indvíduos com financiamentos do BPN/SLN.
   
Algumas das offshores e empréstimos que contraíram para retirar fundos ao BPN, totalizando 229.725.181 €. (Dados de Outubro de 2011, [7]).
Offshore
Empréstimos (€)
Antorini Brasil Participações
241.581
Audel
667.428
Fika Holdings
5.296.952
Financial Advisory Service
1.457.318
Invesco
14.788.951
Jared Finance LLC
40.336.918
Jespersen
12.639.316
Kayes associates
2.550.996
Kerin Finance
844.364
Mardell Investments
25.476.112
Orienama Investments
427.887
Resia Finance
6.718.144
Seaford Holdings
15.017.799
Solrac
77.741.932
Webster Worldwide Assets
25.519.483
   
Dez casos de negócios ruinosos totalizando um prejuízo de 244.509.156€ (dados divulgados em Maio de 2018, [8])
«Empresa»/
«negócio»
Datas
Montante (€)
Intervenientes
Prejudicados
Historial
DEVECO
2000-2005
26.043.553
António Lopes Cruz, Rui Jorge da Costa, Rui da Silva, Miguel Francisco Sanches, José Monteverde
Sogipart, da SLN
A Deveco foi adquirida pelos intervenientes com crédito do BPN à própria Deveco, garantido com imóveis dela. Detectados levantamentos para pagar as participações adquiridas e outros fins desconhecidos.
POUSA FLORES
2005-2007
74.360.000
Grupo Ricardo Oliveira, Grupo Pousa Flores (José Neto, Arlindo Carvalho), BPN, Partinvest, R. Seguros
BPN/SLN
A Imobiliária Pousa Flores comprou activos ao Grupo Ricardo Oliveira com crédito do BPN. BPN assumiu compromisso de adquirir esses activos.
DOMURBANIS
20-07-2007
53.000.000
Francisco Sanches, Ana Teresa Neves, Miguel Faria, Márcia Pereira
BPN
Domurbanis tinha 3 terrenos em Rio Frio, hipotecados ao BPN. Foram vendidos à BPN-Imofundos, mas a hipoteca não foi paga. Depois foram vendidas à Paprefu, que tem os mesmos gestores da Domurbanis.
TOCATEL
Abril-Dez. 2007
17.450.000
BPN, Tocatel, Alet, Imonurba, Imóveis Centieira
SLN
BPN e Tocatel assinaram três contratos de cedência de créditos litigiosos, ficando o BPN com o registo no seu activo de crédito novo em vez de crédito vencido.
WEBSTER W. LTD
2003-2008
25.700.000
BPN, BPN Crédito, Tanisse Holdings LLC
BPN/SLN
Em 29/9/2008, a Webster tinha uma Conta Corrente Caucionada (limite de crédito autorizado pelo banco) no Banco Insular de 10,3 milhões de euros e um Depósito à Ordem de 15,36 milhões.
SIRIS ENTER. LLC
2003-2007
12.400.000
SIRIS, BPN (incluindo BPN Cayman e BPN Gestão de Activos)
SLN
Em Maio de 2003, foi feito um depósito de 84,5 milhões de euros na conta do BPN Cayman, da Siris. Feitas diversas operações de exposição a riscos cambiais, de que resultaram prejuízos elevados.
PORTO RICO
2001-2002
34.223.000
La Granjilla, El Assir, Gransolo, Miraflores, BPN Cayman, Biometrics, Barwell, Financial Advisory, Mardell
BPN/ SLN
Em 2001, a SLN-SGPS compra à Biometrics 25% do capital por 31,25 milhões de euros, pagos em Nov. 2001. Nesse dia, a SLN vendeu por igual valor a um Fundo. BPN Cayman assumiu prejuízo.
PLEXPART
31-12-2007
661.539
Luís Caprichoso, Francisco Sanches, António Franco
BPN
Conta da Plexpart Consultoria foi movimentada a débito pelo valor de 620 mil euros, gerando descoberto nesse valor. Valor foi para conta no Banco Privado Internacional e conta da Plexpart no Banco Insular.
BRAINWARE
2004
300.000
José Mascarenhas, Ricardo Passos e António Passos, Jared, SLN e BPN
BPN Cayman SLN
Empresa constituída em 2004, tendo o capital sido subscrito por José Mascarenhas, Ricardo Passos e António Paiva. BPN deu crédito para o capital da empresa, que foi debitado da offshore Jared.
SOPROMAT
Não é referida
371.064
Não são referidos
Sopromat BPN
"Verifica-se a existência de levantamentos em numerário das contas da Sopromat junto do BPN e outros bancos do Grupo, por funcionários do BPN, sem intervenção dos administradores da Sopromat", diz balanço.
   
Em 2013 mais negócios ruinosos estavam contabilizados, com um prejuízo total de quase 248 milhões de euros. No essencial, tratava-se de aquisição de empresas, terrenos e acções com preços sobrevalorizados, através de empréstimos do BPN, movimentações de contas bancárias a descoberto, compra de créditos litigiosos e perdas em investimentos especulativos ([8]).
   
A análise dos especialistas do DCIAP indica que «os relatórios que nos foram sendo facultados quanto a assuntos que se admitia pudessem ser qualificados de danosos para a SLN/BPN sempre assentaram muito fortemente em análises de movimentos bancários, muitos deles de contas de sociedades bancárias internacionais (BPN Cayman, Banco Insular, etc.), sendo beneficiários terceiros.».

2.2 Alguns casos concretos
   
O «negócio» de Porto Rico de Dias Loureiro
Um artigo do BE ([9]) descreve bem esta negociata de compra de empresas a Abdul Rahman El-Assir, traficante de armas libanês e amigo de Dias Loureiro, suportada por fundos da SLN:
«Segundo afirmou Oliveira e Costa, Dias Loureiro e El Assir pressionaram a SLN a investir milhões de euros em [na compra de] duas empresas de El Assir, a NewTechnologies e a Biometrics [duas sociedades tecnológicas com sede em Porto Rico, um paraíso fiscal], para que este os ajudasse num outro negócio em Marrocos.» Grande parte do vultuoso investimento -- cujo montante parece ser ainda mal conhecido -- foi feita através de offshores. «No mesmo dia, a empresa Biometrics foi vendida três vezes. Da primeira vez, foi vendida por 30 milhões de dólares. […] Na última operação, realizada no mesmo dia, o fundo e a empresa foram vendidos por apenas 20 milhões de dólares. Para onde foram os 10 milhões de dólares em falta?». Dia Loureiro, quando inquirido na Comissão de Inquérito sobre o negócio, mostrou uma estranha amnésia que tem perdurado até hoje, neste e noutros aspectos em que é arguido. «Quando perguntado pelo deputado João Semedo se conhecia sequer o "Excellence Assets Fund", fundo [do BPN] através do qual foram compradas estas empresas, declarou nunca ter ouvido falar nesse nome.». O negócio da venda ficou também mal esclarecido aquando do inquérito parlamentar. Os documentos entregues à comissão de inquérito dizem que a empresa foi vendida por António Rebelo, administrador do fundo Excellence Assets Fund, a 19/3/2003 por cerca de 35 milhões de euros. «No entanto, o deputado João Semedo exibiu documentos que indicam que as contas da SLN registam a venda da Biometrics por apenas "um dólar".» (!)
O negócio de Porto Rico foi feito através de 8 offshores: Barwell Holdings, Newtech Strategic Holdings, Financial Holdings LLC, Mardell Investments, Seaford Holdings LLC, etc. ([10])
   
Negócios com terrenos
Um destes negócios envolveu o «famoso» Duarte Lima e a Homeland, empresa constituída com a participação de 1,5 milhões de euros do BPN, de 4,2 milhões de euros de Vítor Raposo (então sócio de Duarte Lima) e igual capital de Pedro Lima (filho de Duarte Lima). Os terrenos estavam nas imediações da projectada sede do Instituto Português de Oncologia, que acabou por não avançar, pelo que o crédito pedido ao BPN, no valor de mais de 40 milhões de euros, ficou por liquidar. Suspeito de burlar o BPN em 44 milhões de euros, Duarte Lima foi detido a 17/11/2011, tendo ficado em prisão preventiva até Maio desse ano. Pedro Lima também foi detido, mas saiu em liberdade, após pagamento de caução de 500 mil euros. Foram constituídos arguidos Vítor Raposo, Francisco Canas, e os advogados João Almeida e Paiva e Miguel Almeida e Paiva ([11-12]).
    
Outro negócio envolveu três terrenos junto ao futuro aeroporto de Lisboa:
«Em causa está uma operação financeira rocambolesca: em 20 de Julho de 2007, a Domurbanis vendeu três terrenos em Rio Frio [Alcochete], que estavam hipotecados ao BPN para garantir um crédito de 53 milhões de euros, à BPN Imofundos por 53,078 milhões de euros. "O preço de venda foi entregue pela BPN Imofundos à Domurbanis, mas tal quantia não foi utilizada para pagamento do mútuo hipotecário", diz o documento [entregue ao DCIAP].» ([11].)
   
«As terras foram vendidas à Paprefu por 56,5 milhões de euros. "A Domurbanis é actualmente devedora de 53 milhões de euros, acrescidos de juros, sendo que os imóveis que garantiam o pagamento de tal montante são agora propriedade da Paprefu e encontram-se hipotecados a favor do BES" […]» ([11].)
   
Outros negócios
Um grande número de negócios propositadamente ruinosos se podem imputar ao BPN (ver [6]). Por exemplo, Dias Loureiro e Oliveira e Costa venderam uma rede de comunicações ao Ministério da Administração Interna pela qual o Estado está a pagar um total de 485,5 milhões de euros, cinco vezes mais do que poderia ter gasto se tivesse optado por outro modelo técnico e financeiro. Outro estranho negócio: Oliveira e Costa construiu um «bunker» com cerca de 100 metros quadrados e preparado para integrar um ultramoderno sistema de segurança e vigilância na herdade da Vidigueira (!) com empregados com chips nas fardas como nos filmes de James Bond; seria, alegadamente, um dos maiores investimentos turísticos do grupo BPN no Baixo Alentejo.
   
Num outro «negócio» (ver [6]) um «crédito, na ordem dos 1,6 mil milhões de euros, teria sido concedido pelo BPN à Amorim Energia em 2006», mantendo-se assim a dívida de 1,6 mil milhões de euros» durante o período em que o banco esteve na posse do Estado. A Amorim Energia é uma holding detida «não apenas por Américo Amorim» e que tem como accionistas a Santoro Holding Financial, de Isabel dos Santos, e a Sonagol. Ora, a Santoro, além de accionista da Amorim Energia, é também accionista maioritária do Banco Internacional de Crédito (BIC), a quem o Estado vendeu o BPN (veremos à frente em que condições). Na altura o deputado João Semedo fez notar que «Desta forma, a venda do BPN, com os seus créditos, ao BIC, poderá implicar que o crédito de 1,6 mil milhões de euros seja pago pela Amorim Energia a um banco que tem como principal accionista a própria devedora». Sim, de facto veio a verificar-se que na «venda» do BPN ao BIC o Estado (todos nós) «perdoou» a dívida da Amorim Energia.
   
(Continua no próximo artigo.)
   
Referências
[1] Paula Cordeiro e Renato Santos «CGD empresta 200 milhões de euros ao BPN» Diário de Notícias, 11/10/2008.
[2] Ver: Cronologia do caso BPN: Esquerda.net dossier, 9/7/2009; BPN - Investigação: cronologia, Diário de Notícias, 11/5/2012.
[3] Honório Novo, «O escandaloso caso do BPN», PCP "O Militante", Nº 311, Mar/Abr 2011, Economia http://omilitante.pcp.pt/pt/311/Economia/582/
[4] «BPN: o assalto laranja ao país» Esquerda.net dossier, 17 Março, 2013.
[5] «BPN - Investigação», colecção de artigos do Diário de Notícias com início em 11 de Maio de 2012.
[6] «BPN/SLN o buraco negro do dinheiro dos portugueses. O ninho dos corruptos» http://apodrecetuga.blogspot.com/2012/05/blog-post.html
[7] Miguel Alexandre Ganhão «Buraco de 234 milhões no BPN», Correio da Manhã, 18/10/2012.
[8] António Sérgio Azenha «Negócios ruinosos de 248 milhões» Correio da Manhã, 18/5/2013.
[9] «A ruinosa operação de Porto Rico», Esquerda.net dossier, 9/7/2009.
[10] Carlos Rodrigues Lima «Oito 'offshores' no negócio de Porto Rico», Correio da Manhã, 29/5/2009.
[11] «Terrenos, levantamentos em numerário e aumentos», Diário de Notícias, 30/4/2012
[12] «Duarte Lima começa a ser julgado no caso BPN» Diário de Notícias, 28/5/2013.