sábado, 18 de novembro de 2017

A Medicina e Marx

O artigo A Medicina e Marx (Medicine and Marx) apareceu na revista The Lancet (ver aqui) uma das mais prestigiadas revistas médicas do mundo. Soubemos dele através do portal Marxism-Leninism Today (mltoday) que já recomendámos noutros artigos deste blog. Conforme diz o editor de mltoday, o artigo, «embora não sendo marxista, é digno de nota na medida em que mostra o impacto crescente das ideias marxistas, mesmo nos círculos não marxistas». Contém, além disso, várias observações que nos parecem pertinentes, pelo que aqui apresentamos a tradução.

A Medicina e Marx
Richard Horton
4 de Novembro de 2017
The Lancet

Quando o presidente Xi Jinping discursou no 19.º Congresso Nacional do Partido Comunista da China, no mês passado, falou sobre «a verdade científica do marxismo-leninismo». O marxismo (com características chinesas), conforme o presidente Xi prosseguiu na explicação, deve ser a base para uma China Saudável.

Quem se atreveria hoje no Ocidente a elogiar Karl Marx como o salvador do nosso bem-estar? Marx morreu há muito. Morreu fisicamente em 14 de Março de 1883. Morreu metafisicamente em 1991, quando a União Soviética se finou num novo estado russo independente. A experiência comunista gaguejou, vacilou e finalmente falhou.


O seu legado? Conforme Michel Kazatchkine escreveu no The Lancet no mês passado, o sistema de saúde na era soviética «deteriorou-se rapidamente» nos seus últimos anos, conduzindo a uma «disponibilidade inadequada de medicamentos e tecnologias médicas, instalações mal mantidas, pioria da qualidade dos cuidados de saúde e decaimento da esperança de vida».


Mas será que é justo remeter Marx para as margens da história da saúde? O centenário do nascimento de Marx é a 5 de Maio de 2018. É um momento para reavaliar o contributo de Marx para a medicina e descobrir se a sua influência é tão prejudicial quanto a sabedoria contemporânea sugeriria.


A medicina e o marxismo têm histórias entretecidas, íntimas e respeitáveis. A saúde pública foi a parteira do marxismo. A obra de Friedrich Engels de 1845, A Condição da Classe Trabalhadora na Inglaterra, revelou os custos humanos do capitalismo. O ex-Editor-Chefe do NEJM [New England Journal of Medicine], Bud Relman, cunhou o termo «complexo médico-industrial», ecoando as ansiedades marxistas sobre a mercantilização de tudo o que mais prezamos nas nossas vidas.


Howard Waitzkin colocou isso desta forma num artigo de 1978 nos Annals of Internal Medicine intitulado A Visão Marxista do Cuidado Médico: «O ponto de vista marxista questiona se melhorias importantes no sistema de saúde podem ocorrer sem mudanças fundamentais em toda a ordem social». The Economist, que ninguém suspeitaria de ser um bastião do pensamento de esquerda, escreveu no início deste ano, «há uma enorme quantidade de coisas a aprender com Marx. Na verdade, muito do que Marx disse parece tornar-se mais relevante com cada dia que passa».


Wolfgang Streeck, no seu livro de 2016 provocantemente intitulado Como Terminará o Capitalismo? (How Will Capitalism End?), usa metáforas médicas para descrever as «multimorbilidades» que enfrenta o capitalismo desde a crise financeira global de 2007. O capitalismo acumulou uma massa de fragilidades e esgotou o seu arsenal de remédios, argumenta.

Foi um ex-economista do FMI, Ken Rogoff, que escreveu em 2005 que «a próxima grande batalha entre socialismo e capitalismo será travada sobre a saúde humana e a esperança de vida». A primeira-ministra da Grã-Bretanha, Theresa May, disse que o capitalismo é «o maior agente do progresso humano colectivo já criado». Mas cada vez mais pessoas, especialmente as gerações mais novas, acreditam que economias baseadas apenas em mercados livres não são necessariamente o melhor meio para ter sociedades mais justas ou saudáveis.


A nova primeira-ministra da Nova Zelândia, Jacinda Ardern, observou no mês passado que «quando se permite que os mercados decidam o destino do povo... isso não serve bem nem a um país nem ao povo». As ideias marxistas voltaram a entrar no debate político.


Conforme Terry Eagleton argumentou em Porque Razão Estava Marx Certo (Why Marx Was Right, 2011), o marxismo não é sobre revolução mundial violenta, ditaduras tirânicas ou fantasias utópicas inatingíveis.

Penso que Marx é importante para a medicina por três razões. Em primeiro lugar, Marx oferece uma crítica da sociedade, um método de análise, que permite a explicação de tendências inquietantes na medicina e saúde pública modernas: as economias de saúde privatizada, o poder das elites profissionais conservadoras, o crescimento do tecno-optimismo, o filantropo-capitalismo, a importância dos determinantes políticos da saúde, as tendências neo-imperialistas da saúde global, as definições de doenças orientadas por produtos, e a exclusão de comunidades estigmatizadas das nossas sociedades.


Estes aspectos dos cuidados de saúde do século XXI são todos melhor investigados e interpretados através de uma lente marxista. Em segundo lugar, o marxismo defende um conjunto de valores. A livre autodeterminação do indivíduo, uma sociedade equitativa, o fim da exploração, o aprofundamento das possibilidades de participação pública no delineamento de escolhas colectivas, a recusa em aceitar a fixidez da natureza humana acreditando na nossa capacidade de mudar, e a defesa do sentido de interdependência e indivisibilidade da nossa humanidade comum. Finalmente, o marxismo é um apelo ao envolvimento, um convite para nos juntarmos à luta para proteger valores que compartilhamos.


Não é preciso ser marxista para apreciar Marx. À medida que o centenário de seu nascimento se aproxima, podemos concordar que a medicina tem muito a aprender com Marx.