Uma das
características marcantes do actual Capitalismo Monopolista de Estado (CME) é a
evasão legal de impostos (chamada elisão fiscal) por parte das grandes
corporações. Conseguem, assim, compensar o declínio do lucro à custa dos trabalhadores
com a cumplicidade dos governos capitalistas. A recente revelação dos
«Documentos do Panamá» (Panama Papers)
veio dar maior visibilidade ao fenómeno, mas, ainda assim, só o pico do iceberg
foi aflorado nos meios de comunicação. Apresentamos abaixo a tradução de um
artigo [1] do economista Michael Roberts cuja leitura consideramos de interesse
para, de forma sintética mas correcta e abrangente, entender o fenómeno. O
original encontra-se em https://thenextrecession.wordpress.com/2016/04/12/opening-the-panama-canal/
Note-se como o
autor chama a atenção para o aspecto da legalidade da evasão. Algo que já
tínhamos aflorado a propósito dos «Luxemburgo
Leaks». Trata-se, portanto, não
de um fenómeno ilícito e marginal ao CME, mas sim, pelo contrário, uma
característica intrínseca do actual CME. Podemos dizer que uma das respostas do
CME à baixa rendibilidade do capital produtivo foi legalizar um ilícito -- a
evasão fiscal – das corporações e dos ricos. Foi legalizar um roubo aos
trabalhadores.
* * *
Abrindo
o Canal do Panamá
Michael Roberts, 12 de Abril de 2016
A revelação dos
chamados «Documentos do Panamá» lançou o gato do desagrado popular aos pombos
da elite mundial super-rica. Mas, claro, os pombos podem voar para longe.
Os Panama Papers contêm 11,5 milhões
de documentos confidenciais com informação detalhada sobre mais de
214.000 companhias offshore listadas
pelo prestador panamiano de serviços a corporações Mossack Fonseca,
incluindo identidades de accionistas e de directores de companhias.
Uma fonte anónima
sob o pseudónimo «Fulano» disponibilizou os documentos por lotes sucessivos ao
jornal alemão Süddeutsche Zeitung desde o início de 2015. A
informação fornecida veio a totalizar 2,6 terabytes de dados, documentando
transacções que remontam à década de 1970. Dada a escala da fuga de informação
o jornal socorreu-se do International
Consortium of Investigative Journalists, que distribuiu os documentos por
400 jornalistas de 107 organizações dos media
de 76 países, para investigação e análise.
As firmas de
advogados têm usualmente um papel central nas operações financeiras offshore. A firma panamiana de
advogados Mossack Fonseca, cuja actividade ficou às claras no caso dos
documentos do Panamá, é uma das maiores na sua área de negócio. Os
serviços aos clientes incluem constituir e operar, em seu benefício,
companhias-fantasma em jurisdições amigas. Podem incluir também a criação de
estruturas complexas de companhias-fantasma, as quais, ainda que legais,
permitem aos clientes actuar por detrás daquilo que é muitas vezes uma parede
impenetrável de secretismo. Os documentos expostos detalham algumas das
intrincadas estruturas corporativas, multi-nível e multi-nacional. A Mossack Fonseca actuou em nome de mais
de 300.000 companhias, a maioria registadas em centros financeiros nos Territórios
Britânicos Ultramarinos. A firma trabalha com as maiores instituições
financeiras mundiais, nomeadamente: Deutsche
Bank, HSBC, Société Générale, Credit Suisse, UBS, Commerzbank e Nordea.
Os documentos mostram
como indivíduos ricos ocultam o seu dinheiro ao escrutínio público, incluindo autoridades
civis, como líderes estatais e chefes de governo da Argentina, Islândia, Arábia
Saudita, Ucrânia e Emiratos Árabes Unidos. Também membros de governos, seus familiares
mais chegados, e figuras próximas de chefes de governo de mais de quarenta
países, para além dos já nomeados. As Ilhas Virgem Britânicas albergam metade
das companhias.
Os jornalistas
descobriram que algumas das companhias-fantasma podem ter sido usadas para fins
ilegais, tais como fraude, tráfico de drogas, evasão fiscal. Igor
Angelini, chefe do Grupo de Investigação Financeira da Europol, disse
recentemente que as companhias-fantasma usadas para tal fim «têm papel importante em actividades de lavagem
de dinheiro em grande escala» e também em corrupção: elas servem muitas
vezes de veículo para «transferir dinheiro de subornos». A Tax
Justice Network referenciou o Panamá como um dos mais antigos e melhor
conhecidos paraísos ficais nas Américas e «o
recipiente do dinheiro de drogas da América Latina, bem como de muitas mais
fontes de dinheiro sujo dos EUA e de outros horizontes»
O aspecto mais
chocante dos documentos do Panamá não é a possível criminalidade e lavagem de
dinheiro, mas o facto de que é feita legalmente. Na maioria dos países é
legal abrir uma conta offshore para
uma companhia ou um conglomerado desde que os directores sejam não «residentes»
no país em que os impostos deveriam ser pagos. A companhia poderá ser sujeita a
impostos locais mas estes são mínimos ou não existem. Assim, se alguém tiver
um fundo que é registado [numa companhia] no Panamá ou Luxemburgo, e se todos
os seus rendimentos vão para essa companhia mesmo que tenham sido ganhos no
país de origem, nenhum imposto é pago na origem. Claro que se esse alguém
retirar o dinheiro e o puser na conta bancária do seu país, então é suposto
estar sujeito a imposto. Mas [o fundo] pode manter-se offshore até que esse alguém se retire
para o estrangeiro, etc., ou pode ser usado para comprar propriedades ou
diamantes no estrangeiro.
Segundo o The
Guardian «Mais
de 170 mil milhões de libras de propriedades da Grã-Bretanha estão no ultramar…
Cerca de uma em cada 10 de 31.000 companhias em paraísos fiscais, que possuem
activos britânicos, está ligada à Mossack Fonseca». Em 2015 foram
investigadas aquisições de propriedades britânicas, num valor superior a £180
milhões, quanto a serem pagamentos de corrupção. Segundo dados obtidos pela Private
Eye do Land Registry [Registo de
Propriedades], quase todas as propriedades tinham sido adquiridas através de
companhias offshore.
Os Territórios
Britânicos Ultramarinos, tais como as ilhas Virgem e Jersey, operam nesse
negócio que é a principal fonte de rendimento dessas ilhas. Nos EUA os
americanos podem criar uma «companhia offshore» no Delaware ou em outros
estados como o Nevada; não precisam de ir para o Panamá. Dois terços das
aquisições [americanas] foram feitas por companhias registadas nos Territórios
Britânicos Ultramarinos e dependências do Reino que operam como paraísos
fiscais: Jersey, Guernsey, a ilha de Man e as ilhas Virgem britânicas.
Os Territórios
Britânicos Ultramarinos são parte importante do papel que o imperialismo
britânico desempenha como centro financeiro global e veículo de fluxos de
capital (ver meu artigo). Estas velhas colónias nas
Caraíbas são «encorajadas» a desenvolver a indústria dos serviços financeiros, sendo-lhes
concedido o benefício de tratados sobre impostos com o Reino Unido (e através
do Reino Unido acedem ao sistema financeiro global), conjuntamente com
disposições próprias quanto à tributação local das companhias-fantasmas offshore.
Conforme já assinalámos
neste blog, as grandes corporações
globais com múltiplas operações têm a possibilidade de mudar de local de
sujeição a tributação ao longo do globo, de forma a conseguir o menor peso
tributário por via de companhias específicas em paraísos fiscais. O Barclays tem
mais de 30 destas companhias-fantasma para fugir a impostos. No seu livro
devastador, Treasure Islands, tax havens and the men who stole the world
[Ilhas do Tesouro, paraísos fiscais e os homens que roubaram o mundo] Nicholas
Shaxson denuncia os mecanismos de todos estes esquemas globais de elisão fiscal
usados pelas grandes corporações e de como os governos são coniventes ou
permissivos com isso.
Existem três
maneiras pelas quais qualquer pessoa ou corporação pode baixar os impostos ou não
pagar nenhum. Pode mentir sobre os seus rendimentos: evasão fiscal; pode
usar baterias de contabilistas para construir esquemas cuja finalidade é evitar
pagar imposto: elisão fiscal; ou pode simplesmente recusar pagar: sonegação
fiscal.
Um dos casos mais
notórios de sonegação do imposto legal foi o da corporação de comunicações
móveis globais Vodafone. Devia 16 mil milhões de libras de imposto ao
governo britânico, segundo a lei fiscal existente, por ter escamoteado lucros
para uma subsidiária num paraíso fiscal (Luxemburgo) apenas para evitar imposto
no Reino Unido. A lei era clara. O governo britânico exerceu pressão sobre a corporação
para obter o imposto, mas no último momento o então dirigente britânico dos
impostos estabeleceu um acordo secreto com a Vodafone para esta pagar apenas
1,2 mil milhões de libras em prestações durante cinco anos. A razão dada para o
acordo, quando este foi denunciado, era de que se tratava de «uma boa
liquidação financeira». Mas isso aconteceu apenas porque a Vodafone lutou
persistentemente nos tribunais para evitar uma liquidação (embora estivesse a
ponto de perder [nos tribunais]).
Quantos de nós
obteríamos um tal acordo se recusássemos pagar os impostos? Todavia, existem
agora 109 disputas semelhantes com companhias britânicas que colocaram os seus
lucros em paraísos fiscais para evitar pagar. E estas companhias estão a usar o
precedente da Vodafone como justificação para recusar o pagamento por inteiro.
Segundo a Tax Justice Network, o Reino Unido perdeu
cerca de £25 mil milhões por via de esquemas de elisão fiscal, e outros £70 mil
milhões foram perdidos por evasão fiscal de grandes companhias e de indivíduos
ricos. Ao mesmo tempo, por falta de pessoal de impostos, cerca de £26 mil
milhões não são colectados. Estes £120 mil milhões seriam mais que
suficientes para evitar os cortes nas despesas públicas e os impostos extra
sobre as famílias que o governo britânico impôs dizendo ser por «estarmos todos
juntos».
A amarga ironia é
que esta gente das firmas de contabilidade, que organiza as manigâncias da
elisão fiscal, é precisamente a que obtém empego nos departamentos
governamentais de tributação para caçar os que fogem aos impostos! Edward
Troup, o patrão da UK Revenue &
Customs [Autoridade Tributária e Aduaneira do Reino Unido] -- departamento
do governo que supervisiona o inquérito sobre os 10 mil milhões de libras dos Panama Papers --, foi sócio da firma de
advogados Simmons & Simmons, uma
das firmas de topo da City que trabalhou para a Blairmore Holdings e para outras companhias offshore identificadas nos Papers,
quando a Simmons & Simmons tinha
contactos com a Mossack Fonseca.
Troup, que
definiu a tributação como «extorsão
legalizada»» num artigo de jornal em 1999, tem uma carreira de aconselhamento
das corporações em como reduzir as suas contas de impostos, antes de deixar a Simmons & Simmons para ingressar no
serviço público em 2004. Enquanto trabalhou na City, Troup liderou a
oposição às reformas de 1999 para travar a elisão fiscal, do então primeiro-ministro
do Reino Unido Gordon Brown, com uma publicação na imprensa intitulada: «Os
advogados da City apelam ao governo para retirar as propostas de enfrentar a
elisão fiscal».
Troup criticou as propostas de lei por darem poderes «demasiado abrangentes» à Autoridade de
Tributação Doméstica.
É claro que
quebras de imposto para corporações e para os ricos conjuntamente com subidas
de imposto para o agregado familiar médio, não exstem apenas no Reino Unido.
Investigadores do Fundo Monetário Internacional (FMI) estimaram, em Julho de
2015, que a transferência de lucros por parte de companhias multinacionais
custa aos países em desenvolvimento cerca de 213 mil milhões de dólares por
ano, quase 2% do respectivo PNB. A Tax
Justice Network estima que a elite mundial assenta em 21 a 32 triliões
[milhões de milhões] de dólares de activos não tributados.
Thomas Piketty assinalou
em 2014 que a investigação do LuxLeaks
[Luxemburgo Leaks] tinha revelado que
as multinacionais quase não tinham pago impostos na Europa graças às suas subsidiárias
no Luxemburgo. Piketty esclareceu que, em
muitas áreas do globo, as maiores fortunas continuaram a crescer desde 2008 muito
mais rapidamente que a economia global, em parte porque pagaram menos impostos
do que os outros. Em França em 2013, um ministro júnior do orçamento afirmou
impávido qu não tinha uma conta na Suíça, sem qualquer medo que o seu
ministério pudesse descobrir isso. Foram os jornalistas que revelaram a
verdade.
Gabriel Zucman,
um economista colega de Piketty, publicou recentemente um livro mostrando que
7,6 triliões de dólares em activos se encontram em paraísos fiscais offshore, o equivalente a 8% de todos os
activos financeiros do mundo. O montante de riqueza em paraísos fiscais
aumentou 25% nos últimos cinco anos. Nunca houve tanto dinheiro em offshores como há actualmente.
Nos EUA são
poucas as grandes companhias que de facto pagam os 35% de imposto oficial. Os
lucros aumentaram 21% desde 2007, mas o total de imposto das corporações
americanas baixou 5%.
O melhor truque é
a chamada «inversão fiscal»: As companhias dos EUA movem as suas sedes para o
estrangeiro [ver figura abaixo] evitando o homem dos impostos, mas mantendo os
executivos nos EUA, beneficiando de contratos do governo e aproveitando-se de
todos os benefícios públicos para os seus funcionários. A Walgreens, que obtém um quarto do seu
dinheiro a partir da Medicaid e da Medicare, teve a intenção de se
transferir para a Suíça no ano passado e apenas mudou de planos na sequência de
um protesto público.
Adivinhem agora,
onde nasceram as «inversões»? No Panamá! A inversão fiscal foi
inventada em 1983 quando a companhia de construção McDermott International mudou de endereço para o Panamá para evitar
pagar mais de $200 millões em impostos. O advogado de impostos que inventou a «Fuga
para o Panamá» foi mais tarde imortalizado numa opereta apresentada aos seus
colegas. A opereta de 13 minutos, Charlie’s Lament, contava
como o patrão da festa, John Carroll Jr., inventara a nova categoria de elisão
fiscal e a defendera com sucesso em luta contra o IRS dos EUA. Os advogados
cantavam:
Os Feds
[funcionários dos impostos] bem podem gritar,
Mas nós todos
estamos a exultar,
Porque nunca
mais pagaremos imposto
Nunca mais
pagaremos imposto,
Nunca pagaremos
imposto de novo!
As inversões não
são a única forma de aldrabar o homem dos impostos. Os lucros das corporações
dos EUA no estrangeiro só são tributáveis quando são «repatriados»; desta
forma, as companhias podem acumular lucros em subsidiárias ou agências no
estrangeiro. (A Irlanda acaba de fechar o truque do «duplo irlandês»
[parqueamento de lucros na Irlanda do Norte] usado pela Apple, Google, Twitter,
e Facebook.) Entre 2008 e 2013, as firmas americanas tinham mais de $2,1 triliões
de lucros no ultramar, correspondendo a mais de $500 mil milhões de impostos
não pagos.
Há corporações
americanas a fazer milhares de milhões de lucros recorde, mas um inquérito do Wall Street Journal revela que 60 das
maiores companhias parqueiam 40% dos lucros em offshores procurando escapar aos impostos dos EUA. O último
orçamento do presidente Obama para 2016 propunha impor uma «taxa aduaneira
de transferência» de 14% sobre os mais de $2 triliões em lucros de corporações
parqueados no ultramar, aplicável uma só vez e independentemente de serem
trazidos de volta aos EUA. Os $280 mil milhões de impostos estimados estavam
destinados a melhorar estradas e infraestruturas. A proposta da taxa
aplicada uma só vez visa apenas lidar com um dos vários truques que os negócios
domésticos usam para escapar ao IRS. O Congresso pode bloqueá-la.
Para além da
ganância, existe uma boa razão económica para um sistema tributário que
beneficia as corporações e os ricos e sacrifica as famílias médias e os pobres.
A baixa do peso dos impostos das corporações tem desempenhado papel
relevante na contraposição à rendibilidade declinante do capital nas maiores
economias. Olhemos [figura abaixo] para a tendência da taxa efectiva de imposto
das corporações dos EUA face à taxa efectiva de imposto dos seus empregados. A
taxa efectiva de imposto mede o que é de facto pago face ao rendimento, ao
contrário da taxa de imposto nominal. Enquanto nos anos de 1950 as corporações
americanas pagavam uma taxa efectiva de imposto de cerca de 40-45% dos lucros,
nos anos de 1990 essa taxa tinha baixado para 30-35%. Na última década
decresceu ainda mais, abaixo de 25%, e alcançou o mínimo em 2009 em plena
Grande Recessão. O chanceler do Reino Unido [Ministro das Finanças] George
Osborne anunciou, no actual período parlamentar, mais uma descida na taxa de
imposto das corporações, para 17%, um mínimo recorde dos países G7.
A tendência é
clara: as corporações são tributadas cada vez menos para preservar a sua
rendibilidade. Em contraste com isso, a
taxa efectiva de imposto sobre o rendimento individual dos assalariados [dos
EUA] permaneceu bastante estável, em torno de 35%. Menos impostos para os
capitalistas, mais imposto para os trabalhadores.
Enquanto as
corporações e os indivíduos ricos pagam menos imposto no seu país e escamoteiam
muito dos seus ganhos para os paraísos fiscais, todos nós outros temos de pagar
pela perda desses rendimentos fiscais. […].
O que é
necessário fazer? […] Os governos deveriam celebrar um acordo internacional
para acabar com paraísos fiscais como o Panamá e impor sanções económicas
contra eles se não acabarem. Mais importante ainda, os operadores de
elisão fiscal têm de ser fechados. Precisamos de tornar pública a
propriedade e controlo dos bancos e das instituições financeiras que dominam o
globo, que encorajam e fornecem serviços para os ricos e a elite corrupta (como
se revela em escândalo atrás de escândalo). Isto não só proporcionaria
rendimento extra de impostos para as necessidades do povo em serviços públicos
e em investimento, mas permitiria ainda converter a banca e serviços finaceiros
num serviço público proporcionando crédito para investimento.
Claro que tais
medidas terão uma oposição vigorosa da maioria dos actuais governos e dos seus
ricos apoiantes, e serão ignoradas pela maioria de movimentos da oposição de
esquerda. Mas sem essas medidas a história do Panamá irá continuar.
[1] Omitimos na
tradução dois curtos trechos finais (assinalados com [...]) de interesse muito reduzido
para o leitor português.