quinta-feira, 19 de janeiro de 2017

«Abrindo o Canal do Panamá»

Uma das características marcantes do actual Capitalismo Monopolista de Estado (CME) é a evasão legal de impostos (chamada elisão fiscal) por parte das grandes corporações. Conseguem, assim, compensar o declínio do lucro à custa dos trabalhadores com a cumplicidade dos governos capitalistas. A recente revelação dos «Documentos do Panamá» (Panama Papers) veio dar maior visibilidade ao fenómeno, mas, ainda assim, só o pico do iceberg foi aflorado nos meios de comunicação. Apresentamos abaixo a tradução de um artigo [1] do economista Michael Roberts cuja leitura consideramos de interesse para, de forma sintética mas correcta e abrangente, entender o fenómeno. O original encontra-se em https://thenextrecession.wordpress.com/2016/04/12/opening-the-panama-canal/
   
Note-se como o autor chama a atenção para o aspecto da legalidade da evasão. Algo que já tínhamos aflorado a propósito dos «Luxemburgo Leaks». Trata-se, portanto, não de um fenómeno ilícito e marginal ao CME, mas sim, pelo contrário, uma característica intrínseca do actual CME. Podemos dizer que uma das respostas do CME à baixa rendibilidade do capital produtivo foi legalizar um ilícito -- a evasão fiscal – das corporações e dos ricos. Foi legalizar um roubo aos trabalhadores.
   
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Abrindo o Canal do Panamá
Michael Roberts, 12 de Abril de 2016
   
A revelação dos chamados «Documentos do Panamá» lançou o gato do desagrado popular aos pombos da elite mundial super-rica. Mas, claro, os pombos podem voar para longe.
   
Os Panama Papers contêm 11,5 milhões de documentos confidenciais com informação detalhada sobre mais de 214.000 companhias offshore listadas pelo prestador panamiano de serviços a corporações Mossack Fonseca, incluindo identidades de accionistas e de directores de companhias.
Uma fonte anónima sob o pseudónimo «Fulano» disponibilizou os documentos por lotes sucessivos ao jornal alemão Süddeutsche Zeitung desde o início de 2015. A informação fornecida veio a totalizar 2,6 terabytes de dados, documentando transacções que remontam à década de 1970. Dada a escala da fuga de informação o jornal socorreu-se do International Consortium of Investigative Journalists, que distribuiu os documentos por 400 jornalistas de 107 organizações dos media de 76 países, para investigação e análise.
   
As firmas de advogados têm usualmente um papel central nas operações financeiras offshore. A firma panamiana de advogados Mossack Fonseca, cuja actividade ficou às claras no caso dos documentos do Panamá, é uma das maiores na sua área de negócio. Os serviços aos clientes incluem constituir e operar, em seu benefício, companhias-fantasma em jurisdições amigas. Podem incluir também a criação de estruturas complexas de companhias-fantasma, as quais, ainda que legais, permitem aos clientes actuar por detrás daquilo que é muitas vezes uma parede impenetrável de secretismo. Os documentos expostos detalham algumas das intrincadas estruturas corporativas, multi-nível e multi-nacional.  A Mossack Fonseca actuou em nome de mais de 300.000 companhias, a maioria registadas em centros financeiros nos Territórios Britânicos Ultramarinos.  A firma trabalha com as maiores instituições financeiras mundiais, nomeadamente: Deutsche BankHSBCSociété GénéraleCredit SuisseUBSCommerzbank e Nordea.
   
Os documentos mostram como indivíduos ricos ocultam o seu dinheiro ao escrutínio público, incluindo autoridades civis, como líderes estatais e chefes de governo da Argentina, Islândia, Arábia Saudita, Ucrânia e Emiratos Árabes Unidos. Também membros de governos, seus familiares mais chegados, e figuras próximas de chefes de governo de mais de quarenta países, para além dos já nomeados. As Ilhas Virgem Britânicas albergam metade das companhias.
   
Os jornalistas descobriram que algumas das companhias-fantasma podem ter sido usadas para fins ilegais, tais como fraude, tráfico de drogas, evasão fiscal.  Igor Angelini, chefe do Grupo de Investigação Financeira da Europol, disse recentemente que as companhias-fantasma usadas para tal fim «têm papel importante em actividades de lavagem de dinheiro em grande escala» e também em corrupção: elas servem muitas vezes de veículo para «transferir dinheiro de subornos». A Tax Justice Network referenciou o Panamá como um dos mais antigos e melhor conhecidos paraísos ficais nas Américas e «o recipiente do dinheiro de drogas da América Latina, bem como de muitas mais fontes de dinheiro sujo dos EUA e de outros horizontes»
   
O aspecto mais chocante dos documentos do Panamá não é a possível criminalidade e lavagem de dinheiro, mas o facto de que é feita legalmente.  Na maioria dos países é legal abrir uma conta offshore para uma companhia ou um conglomerado desde que os directores sejam não «residentes» no país em que os impostos deveriam ser pagos. A companhia poderá ser sujeita a impostos locais mas estes são mínimos ou não existem.  Assim, se alguém tiver um fundo que é registado [numa companhia] no Panamá ou Luxemburgo, e se todos os seus rendimentos vão para essa companhia mesmo que tenham sido ganhos no país de origem, nenhum imposto é pago na origem.  Claro que se esse alguém retirar o dinheiro e o puser na conta bancária do seu país, então é suposto estar sujeito a imposto.  Mas [o fundo] pode manter-se offshore até que esse alguém se retire para o estrangeiro, etc., ou pode ser usado para comprar propriedades ou diamantes no estrangeiro.
   
Segundo o The Guardian «Mais de 170 mil milhões de libras de propriedades da Grã-Bretanha estão no ultramar… Cerca de uma em cada 10 de 31.000 companhias em paraísos fiscais, que possuem activos britânicos, está ligada à Mossack Fonseca». Em 2015 foram investigadas aquisições de propriedades britânicas, num valor superior a £180 milhões, quanto a serem pagamentos de corrupção. Segundo dados obtidos pela Private Eye do Land Registry [Registo de Propriedades], quase todas as propriedades tinham sido adquiridas através de companhias offshore.
   
Os Territórios Britânicos Ultramarinos, tais como as ilhas Virgem e Jersey, operam nesse negócio que é a principal fonte de rendimento dessas ilhas.  Nos EUA os americanos podem criar uma «companhia  offshore» no Delaware ou em outros estados como o Nevada; não precisam de ir para o Panamá. Dois terços das aquisições [americanas] foram feitas por companhias registadas nos Territórios Britânicos Ultramarinos e dependências do Reino que operam como paraísos fiscais: Jersey, Guernsey, a ilha de Man e as ilhas Virgem britânicas.
   
Os Territórios Britânicos Ultramarinos são parte importante do papel que o imperialismo britânico desempenha como centro financeiro global e veículo de fluxos de capital (ver meu artigo).  Estas velhas colónias nas Caraíbas são «encorajadas» a desenvolver a indústria dos serviços financeiros, sendo-lhes concedido o benefício de tratados sobre impostos com o Reino Unido (e através do Reino Unido acedem ao sistema financeiro global), conjuntamente com disposições próprias quanto à tributação local das companhias-fantasmas offshore.
   
Conforme já assinalámos neste blog, as grandes corporações globais com múltiplas operações têm a possibilidade de mudar de local de sujeição a tributação ao longo do globo, de forma a conseguir o menor peso tributário por via de companhias específicas em paraísos fiscais. O Barclays tem mais de 30 destas companhias-fantasma para fugir a impostos.  No seu livro devastador, Treasure Islands, tax havens and the men who stole the world [Ilhas do Tesouro, paraísos fiscais e os homens que roubaram o mundo] Nicholas Shaxson denuncia os mecanismos de todos estes esquemas globais de elisão fiscal usados pelas grandes corporações e de como os governos são coniventes ou permissivos com isso.
   
Existem três maneiras pelas quais qualquer pessoa ou corporação pode baixar os impostos ou não pagar nenhum.  Pode mentir sobre os seus rendimentos: evasão fiscal; pode usar baterias de contabilistas para construir esquemas cuja finalidade é evitar pagar imposto: elisão fiscal; ou pode simplesmente recusar pagar: sonegação fiscal.
   
Um dos casos mais notórios de sonegação do imposto legal foi o da corporação de comunicações móveis globais Vodafone.  Devia 16 mil milhões de libras de imposto ao governo britânico, segundo a lei fiscal existente, por ter escamoteado lucros para uma subsidiária num paraíso fiscal (Luxemburgo) apenas para evitar imposto no Reino Unido. A lei era clara. O governo britânico exerceu pressão sobre a corporação para obter o imposto, mas no último momento o então dirigente britânico dos impostos estabeleceu um acordo secreto com a Vodafone para esta pagar apenas 1,2 mil milhões de libras em prestações durante cinco anos. A razão dada para o acordo, quando este foi denunciado, era de que se tratava de «uma boa liquidação financeira». Mas isso aconteceu apenas porque a Vodafone lutou persistentemente nos tribunais para evitar uma liquidação (embora estivesse a ponto de perder [nos tribunais]).
   
Quantos de nós obteríamos um tal acordo se recusássemos pagar os impostos? Todavia, existem agora 109 disputas semelhantes com companhias britânicas que colocaram os seus lucros em paraísos fiscais para evitar pagar. E estas companhias estão a usar o precedente da Vodafone como justificação para recusar o pagamento por inteiro.
   
Segundo a Tax Justice Network, o Reino Unido perdeu cerca de £25 mil milhões por via de esquemas de elisão fiscal, e outros £70 mil milhões foram perdidos por evasão fiscal de grandes companhias e de indivíduos ricos.  Ao mesmo tempo, por falta de pessoal de impostos, cerca de £26 mil milhões não são colectados.  Estes £120 mil milhões seriam mais que suficientes para evitar os cortes nas despesas públicas e os impostos extra sobre as famílias que o governo britânico impôs dizendo ser por «estarmos todos juntos».
   
A amarga ironia é que esta gente das firmas de contabilidade, que organiza as manigâncias da elisão fiscal, é precisamente a que obtém empego nos departamentos governamentais de tributação para caçar os que fogem aos impostos!  Edward Troup, o patrão da UK Revenue & Customs [Autoridade Tributária e Aduaneira do Reino Unido] -- departamento do governo que supervisiona o inquérito sobre os 10 mil milhões de libras dos Panama Papers --, foi sócio da firma de advogados Simmons & Simmons, uma das firmas de topo da City que trabalhou para a Blairmore Holdings e para outras companhias offshore identificadas nos Papers, quando a Simmons & Simmons tinha contactos com a Mossack Fonseca.
   
Troup, que definiu a tributação como «extorsão legalizada»» num artigo de jornal em 1999, tem uma carreira de aconselhamento das corporações em como reduzir as suas contas de impostos, antes de deixar a Simmons & Simmons para ingressar no serviço público em 2004. Enquanto trabalhou na City, Troup liderou a oposição às reformas de 1999 para travar a elisão fiscal, do então primeiro-ministro do Reino Unido Gordon Brown, com uma publicação na imprensa intitulada: «Os advogados da City apelam ao governo para retirar as propostas de enfrentar a elisão fiscal». Troup criticou as propostas de lei por darem poderes «demasiado abrangentes» à Autoridade de Tributação Doméstica.
   
É claro que quebras de imposto para corporações e para os ricos conjuntamente com subidas de imposto para o agregado familiar médio, não exstem apenas no Reino Unido.  Investigadores do Fundo Monetário Internacional (FMI) estimaram, em Julho de 2015, que a transferência de lucros por parte de companhias multinacionais custa aos países em desenvolvimento cerca de 213 mil milhões de dólares por ano, quase 2% do respectivo PNB.  A Tax Justice Network estima que a elite mundial assenta em 21 a 32 triliões [milhões de milhões] de dólares de activos não tributados.
   
Thomas Piketty assinalou em 2014 que a investigação do LuxLeaks [Luxemburgo Leaks] tinha revelado que as multinacionais quase não tinham pago impostos na Europa graças às suas subsidiárias no  Luxemburgo. Piketty esclareceu que, em muitas áreas do globo, as maiores fortunas continuaram a crescer desde 2008 muito mais rapidamente que a economia global, em parte porque pagaram menos impostos do que os outros. Em França em 2013, um ministro júnior do orçamento afirmou impávido qu não tinha uma conta na Suíça, sem qualquer medo que o seu ministério pudesse descobrir isso. Foram os jornalistas que revelaram a verdade.
   
Gabriel Zucman, um economista colega de Piketty, publicou recentemente um livro mostrando que 7,6 triliões de dólares em activos se encontram em paraísos fiscais offshore, o equivalente a 8% de todos os activos financeiros do mundo.  O montante de riqueza em paraísos fiscais aumentou 25% nos últimos cinco anos.  Nunca houve tanto dinheiro em offshores como há actualmente.
   
Nos EUA são poucas as grandes companhias que de facto pagam os 35% de imposto oficial. Os lucros aumentaram 21% desde 2007, mas o total de imposto das corporações americanas baixou 5%.
   

   
O melhor truque é a chamada «inversão fiscal»: As companhias dos EUA movem as suas sedes para o estrangeiro [ver figura abaixo] evitando o homem dos impostos, mas mantendo os executivos nos EUA, beneficiando de contratos do governo e aproveitando-se de todos os benefícios públicos para os seus funcionários. A Walgreens, que obtém um quarto do seu dinheiro a partir da Medicaid e da Medicare, teve a intenção de se transferir para a Suíça no ano passado e apenas mudou de planos na sequência de um protesto público.
      
Adivinhem agora, onde nasceram as «inversões»?  No Panamá!  A inversão fiscal foi inventada em 1983 quando a companhia de construção McDermott International mudou de endereço para o Panamá para evitar pagar mais de $200 millões em impostos. O advogado de impostos que inventou a «Fuga para o Panamá» foi mais tarde imortalizado numa opereta apresentada aos seus colegas.  A opereta de 13 minutos, Charlie’s Lament, contava como o patrão da festa, John Carroll Jr., inventara a nova categoria de elisão fiscal e a defendera com sucesso em luta contra o IRS dos EUA. Os advogados cantavam:
   
Os Feds [funcionários dos impostos] bem podem gritar,
Mas nós todos estamos a exultar,
Porque nunca mais pagaremos imposto
Nunca mais pagaremos imposto,
Nunca pagaremos imposto de novo!
   
As inversões não são a única forma de aldrabar o homem dos impostos. Os lucros das corporações dos EUA no estrangeiro só são tributáveis quando são «repatriados»; desta forma, as companhias podem acumular lucros em subsidiárias ou agências no estrangeiro. (A Irlanda acaba de fechar o truque do «duplo irlandês» [parqueamento de lucros na Irlanda do Norte] usado pela Apple, Google, Twitter, e Facebook.) Entre 2008 e 2013, as firmas americanas tinham mais de $2,1 triliões de lucros no ultramar, correspondendo a mais de $500 mil milhões de impostos não pagos.
   
Há corporações americanas a fazer milhares de milhões de lucros recorde, mas um inquérito do Wall Street Journal revela que 60 das maiores companhias parqueiam 40% dos lucros em offshores procurando escapar aos impostos dos EUA.  O último orçamento do presidente Obama para 2016 propunha impor uma «taxa aduaneira de transferência» de 14% sobre os mais de $2 triliões em lucros de corporações parqueados no ultramar, aplicável uma só vez e independentemente de serem trazidos de volta aos EUA. Os $280 mil milhões de impostos estimados estavam destinados a melhorar estradas e infraestruturas.  A proposta da taxa aplicada uma só vez visa apenas lidar com um dos vários truques que os negócios domésticos usam para escapar ao IRS.  O Congresso pode bloqueá-la.
   
Para além da ganância, existe uma boa razão económica para um sistema tributário que beneficia as corporações e os ricos e sacrifica as famílias médias e os pobres.  A baixa do peso dos impostos das corporações tem desempenhado papel relevante na contraposição à rendibilidade declinante do capital nas maiores economias. Olhemos [figura abaixo] para a tendência da taxa efectiva de imposto das corporações dos EUA face à taxa efectiva de imposto dos seus empregados. A taxa efectiva de imposto mede o que é de facto pago face ao rendimento, ao contrário da taxa de imposto nominal. Enquanto nos anos de 1950 as corporações americanas pagavam uma taxa efectiva de imposto de cerca de 40-45% dos lucros, nos anos de 1990 essa taxa tinha baixado para 30-35%.  Na última década decresceu ainda mais, abaixo de 25%, e alcançou o mínimo em 2009 em plena Grande Recessão.  O chanceler do Reino Unido [Ministro das Finanças] George Osborne anunciou, no actual período parlamentar, mais uma descida na taxa de imposto das corporações, para 17%, um mínimo recorde dos países G7.
   
A tendência é clara: as corporações são tributadas cada vez menos para preservar a sua rendibilidade.  Em contraste com isso, a taxa efectiva de imposto sobre o rendimento individual dos assalariados [dos EUA] permaneceu bastante estável, em torno de 35%.  Menos impostos para os capitalistas, mais imposto para os trabalhadores.
   
 
   
Enquanto as corporações e os indivíduos ricos pagam menos imposto no seu país e escamoteiam muito dos seus ganhos para os paraísos fiscais, todos nós outros temos de pagar pela perda desses rendimentos fiscais.  […].
   
O que é necessário fazer? […] Os governos deveriam celebrar um acordo internacional para acabar com paraísos fiscais como o Panamá e impor sanções económicas contra eles se não acabarem.  Mais importante ainda, os operadores de elisão fiscal têm de ser fechados.  Precisamos de tornar pública a propriedade e controlo dos bancos e das instituições financeiras que dominam o globo, que encorajam e fornecem serviços para os ricos e a elite corrupta (como se revela em escândalo atrás de escândalo). Isto não só proporcionaria rendimento extra de impostos para as necessidades do povo em serviços públicos e em investimento, mas permitiria ainda converter a banca e serviços finaceiros num serviço público proporcionando crédito para investimento.
   
Claro que tais medidas terão uma oposição vigorosa da maioria dos actuais governos e dos seus ricos apoiantes, e serão ignoradas pela maioria de movimentos da oposição de esquerda.  Mas sem essas medidas a história do Panamá irá continuar.
   

[1] Omitimos na tradução dois curtos trechos finais (assinalados com [...]) de interesse muito reduzido para o leitor português.