No passado 6 de Dezembro
o processo revolucionário venezuelano sofreu um seriíssimo revés nas eleições
legislativas. A Direita (MUD) ganhou a maioria absoluta na Assembleia Nacional (NA)
com 112 deputados e 67,7% dos votos, enquanto a Esquerda GPP-PSUV ficou com 55
deputados e 42% dos votos.
O imperialismo dos EUA
ficou exultante. A CNN, eufórica. Desde logo, uma observação: que é feito das
acusações de eleições fraudulentas e de existência de ditadura? Desta vez, como
a direita ganhou, o processo eleitoral passou a ser legítimo para os próceres
do imperialismo e desapareceram as acusações de ditadura. Note-se também o
diferente comportamento entre o Presidente Maduro, que aceitou serenamente os
resultados, enquanto em eleições anteriores em que a direita perdeu, os
respectivos líderes uivavam impropérios e recorriam à violência nas ruas.
Com a maioria absoluta
(um deputado a mais do que dois terços do total de deputados), o MUD pode, a
partir de Janeiro de 2016, aprovar leis, efectuar emendas constitucionais,
substituir membros do Supremo Tribunal de Justiça (STJ), da Comissão Eleitoral
e outras instituições públicas se tiver aprovação de outros órgãos
governamentais, nomeadamente do actual STJ e do Defensor do Povo e se as leis não forem de remoção ou limitação de direitos
humanos (segundo a Constituição actual).
Estamos, porém, muito cépticos quanto ao real valor dos dois «se» debaixo da maioria absoluta
do MUD na AN e com o aparelho de Estado burguês, praticamente intacto. A grande
burguesia, com o seu aparelho de Justiça, tem séculos de experiência das muitas
maneiras pelas quais se podem rasgar e tornear leis.
Qual a razão da estrondosa vitória da Direita que surpreendeu muitos
observadores, incluindo o autor destas linhas? A surpresa indicia sempre
debilidade de análise e/ou escassez de informação. Vejamos o que se pode dizer
sobre isto.
Comecemos por notar que o próprio PSUV e Nicolás Maduro também
pareceram surpreendidos com a dimensão da derrota, tendo Maduro apontado a guerra
económica atiçada contra o processo como causa do revés. Sem dúvida uma
causa importante, que analisámos com algum detalhe no nosso anterior artigo http://revolucaoedemocracia.blogspot.pt/2015/11/o-processo-revolucionario-da-venezuela.html
. As dificuldades de abastecimentos levantadas pela própria Direita e pelo
imperialismo ianque, as fugas de capitais e a consequente inflação galopante
teriam fatalmente de ter impacto na consciência de muitos votantes. Tanto mais
que, como já tínhamos assinalado, a contra-revolução dispunha de cerca de 70%
dos meios de comunicação e do apoio de figuras gradas da Igreja.
É a guerra económica contra-revolucionária alguma novidade nos
processos revolucionários? De forma nenhuma. Sempre foi usada ao longo da
história. Como se combate uma guerra económica? Da mesma forma que se combate
qualquer guerra: cercando e punindo exemplarmente o inimigo e retirando-lhe a
economia das mãos. Os revolucionários da Revolução Francesa (uma revolução
burguesa!) não hesitavam em guilhotinar os açambarcadores e em entregar os
abastecimentos a outros contratantes devidamente vigiados, nomeadamente a oficinas
do Estado. Na Revolução de Outubro e na Guerra Civil que se lhe seguiu, também
não houve hesitações em punir os camponeses ricos (kulaks) que
açambarcavam géneros; punição levada a cabo por milícias de trabalhadores que não
estavam com conversinhas moles e lhes expropriavam os campos e pertences
entregando-os a camponeses pobres e a cooperativas, encarregando-se também de
transportar os géneros para onde faltavam. Em ambos os casos (e estes são
apenas dois de muitos exemplos) a corrupção era também severamente punida.
Por conseguinte, falta de remédios contra a guerra económica não é a
questão. A questão reside, sim, na vontade política de quem detém o poder de
Estado; é esta a questão essencial de qualquer processo revolucionário
(analisada em detalhe por muitos marxistas, entre outros, por Lenine [1] e
Álvaro Cunhal [2]). Ora, no processo venezuelano,
o poder de Estado e o controlo económico continuaram largamente entregues à
burguesia e não ao proletariado. No artigo anterior, chamámos implicitamente a
atenção para isso ao enumerar os passos dados pelo processo:
-- Falámos do progresso nas nacionalizações e controlo das actividades
económicas por comissões de trabalhadores (CTs), referindo estar-se ainda longe
da «propriedade social dos meios de produção».
Houve, contudo, aspectos que não referimos por só dispormos nessa altura de
informação escassa: a debilidade do
controlo operário e condutas erradas por parte de órgãos governamentais
(indiciando corrupção de funcionários). Sabemos agora que: O PSUV, por
ingerências erradas no trabalho sindical, contribuiu em alguns casos para
cisões entre os trabalhadores que redundaram na vitória de oposicionistas
(Empresa Ferrominera: http://venezuelanalysis.com/analysis/7158);
o controlo operário, mesmo quando aceite pelas autoridades revolucionárias,
deparou com a sabotagem de funcionários ministeriais (Empresa Alcasa: http://venezuelanalysis.com/analysis/6720);
nas Indústrias Diana, sob controlo operário desde 2008, o ministro da
Alimentação Félix Osório decidiu em 2013 impor um gestor sem consultar os
trabalhadores e contra o parecer da CT, tendo aberto um conflito durante vários
meses que terminou com a vitória da CT; na empresa Fama de America, decorre um
conflito por a administração querer destituir um dirigente dos trabalhadores
(ver http://www.marxist.com/venezuela-counter-revolution-wins-election.htm
de um autor que não se surpreendeu com o resultado das eleições).
-- Falámos do açambarcamento de bens de consumo por grandes empresas nas
mãos da burguesia, tendo citado o criminoso exemplo das Empresas Polar. Pois,
apesar disso, apesar dos trabalhadores insistirem, ainda no 1º de Maio passado,
na nacionalização da Polar para acabar com a sabotagem económica, o governo
nada fez e deixou o seu oligarca completamente à vontade. O mesmo acontece com
outros oligarcas e associados que sabotam a economia e exportam capitais, com a
ajuda de uma enorme corrupção e de quintas-colunas a nível dos órgãos de
Estado.
-- Falámos do controlo de órgãos importantes do poder de Estado por uma
vanguarda pluripartidária que representa as camadas trabalhadoras, e que estimula
iniciativas de base como os Conselhos Comunais.
Mas, acrescentámos «atenção: o aparelho de Estado burguês está longe de ter
sido destruído. Subsistem, por isso mesmo, fortes ameaças ao processo
revolucionário: grande parte do alto funcionalismo público, nomeadamente na
Justiça, está com a reacção; há dúvidas sobre as altas patentes das FFAA,
nomeadamente na Força Aérea; a grande maioria dos media está com a reacção; idem, quanto a bancos, empresas
financeiras e empresas distribuidoras. De realçar que muitos comparsas destas
entidades se mascaram de revolucionários (incluindo elementos da aristocracia
operária) dificultando a avaliação dos reais perigos na construção do
socialismo, que só poderão ser adequadamente tratados com um novo aparelho de
Estado inteiramente controlado pelos trabalhadores.»
O perigo acabou por surgir, não por um golpe de força, mas por um «golpe»
eleitoral que reflecte a grave
desmoralização de largas massas populares por os dirigentes revolucionários
se mostrarem incapazes de fazer frente de
forma firme, resoluta, sem hesitações e oscilações, à/aos: sabotagem
económica com punição exemplar dos seus autores, garantindo abastecimentos
regulares de bens essenciais; altos níveis de corrupção e manobras de
quintas-colunas infiltradas no aparelho de Estado; altos níveis de
criminalidade, alimentando um perpétuo sentimento de insegurança, denunciando fraqueza
ou incapacidade de um Estado que era suposto ser revolucionário, capaz,
portanto, de lidar de forma exemplar e breve com este problema.
Embora compreendendo, como anteriormente dissemos, «a formação de uma larga
aliança de classes, envolvendo o proletariado com a pequena burguesia urbana e
rural (grande parte dela mergulhada em profundo pauperismo)» como base de apoio
do processo revolucionário, chamámos a atenção que considerávamos errada a
designação «socialismo do século XXI» já que a definição de socialismo é única
e envolve a detenção do poder de Estado pelos trabalhadores.
De facto, tal designação aponta para uma concepção basista de um «socialismo»
assente em comunas (conselhos comunais). Não há nada de mal na existência de
conselhos comunais que dinamizem actividades de «poder popular» resolvendo
questões locais e contribuindo para uma maior consciencialização dos problemas. O mal está em reduzir a isso o socialismo.
De facto, tal redução não é socialismo mas sim anarquismo. Pensar que o
socialismo se pode construir como um agregado de pequenas ilhas comunais, sem
um Estado centralizador dos trabalhadores, é pura utopia anarquista já desde há
muito tempo analisada e denunciada até à exaustão por muitos estudiosos
marxistas; utopia sempre desmentida pela história e geradora de brutais e
sangrentos desaires.
Ora, o problema, é que parecem subsistir muitas ilusões deste tipo no PSUV
(ver http://mltoday.com/article/2309-review-of-the-socialist-imperative/29)
.
No artigo anterior tínhamos colocado a pergunta «mostra-se a vanguarda [do
processo] e as medidas político-sociais já implementadas e programadas capazes
de conduzir ao socialismo?» e respondido «parece-nos haver fortes evidências de
uma resposta positiva». É agora forçoso modificarmos a nossa opinião: só se o
PSUV, juntamente com outros partidos do GPP, conseguirem galvanizar todas as
forças populares para travar a grande maré de reacção que se avizinha – o que
não vai ser nada fácil e exige líderes firmes que não caiam na tentação
social-democrática -- e, no seguimento, passarem de imediato à destruição do
Estado burguês que se deixou quase intocado durante 13 anos (!) construindo um
Estado dos trabalhadores.
[1] Lenine, O Estado e a
Revolução, 1917, Obras Escolhidas, Edições «Avante!».
[2] Álvaro Cunhal, A
Questão do Estado, Questão Central de Cada Revolução, Edições «Avante!», 2007.
P.S.: Já depois de
escrito o texto acima, lemos três artigos importantes:
-- Uma petição recente do
PCV e sindicatos dirigida ao Presidente para rapidamente decretar a lei do
controlo operário (http://mltoday.com/article/2327-venezuelan-communist-party-trade-unions-ask-president-to-pass-workers-councils-law/24)
. Só foi pena não ter sido há mais tempo.
-- Uma brevíssima apreciação
do Secretário-Geral do PCV (http://mltoday.com/article/2325-pcv-demonstrate-the-strength-of-working-people/24)
de que retemos como causa do revés «não conseguimos que as massas adquirissem
consciência do confronto com o imperialismo e a oligarquia, isto é, existe
ainda muita incompreensão de que se está perante uma agressão continuada e
multifacetada contra o processo venezuelano, o qual nós não desmascarámos com
êxito perante o povo». Parece-nos estranha esta afirmação, tendo em vista o
desmascaramento oportuno, acertado e constante das manobras do imperialismo e
oligarquia que vimos na VTV, em entrevistas, declarações e inúmeros comícios. A
«consciência» adquire-se também através da luta, e se nas lutas populares
contra os oligarcas se assiste aos que deveriam ser revolucionários deixarem os
oligarcas à vontade, objectivamente ajudando-os contra o povo, então não se
adquire «consciência», mas sim cepticismo, frustração e desmoralização. Enfim,
achámos a apreciação do PCV de uma enorme pobreza analítica.
-- Um ensaio de como ainda salvar a revolução em
http://mltoday.com/article/2326-venezuela-it-is-still-possible-to-save-the-revolution/24
. De interessante leitura, mas pouco apontado e firme na resolução das questões
concretas. A questão principal – a do poder de Estado – passa-lhes ao lado.