A recente peroração de Vasco
Lourenço no Largo do Carmo traz confirmações adicionais ao que nesse artigo
dissemos. Confirmações adicionais que nos parece de interesse comentar.
Note-se que o nosso interesse aqui
não é o cidadão Vasco Lourenço,
contra quem nada nos anima. Não questionamos as virtudes pessoais que têm sido
apontadas a Vasco Lourenço. Só nos interessa aqui Vasco Lourenço enquanto
representante e voz de uma corrente sociológica. A corrente que procedeu à
liquidação do 25 de Abril – isto é, à liquidação de uma política
anti-monopolista e anti-latifundiária dirigida ao socialismo, tal como constava
do programa do MFA e das teses da oposição democrática no Congresso de Aveiro
de 1973; liquidação do 25 de Abril em nome do «25 de Abril». Uma contradição
fundamental e insanável.
Eis algumas afirmações
de Vasco Lourenço (VL) que nos suscitam comentários:
- «Os detentores do poder assumem-se, cada vez mais, como os herdeiros dos
vencidos do 25 de Abril de 1974».
VL não disse «são,
cada vez mais», mas sim «assumem-se, cada vez mais». Teria sido mais fácil
dizer «são»; e bem mais compreensível do que dizer «assumem-se». VL, porém,
esquivou-se a formulações concretas; prefere as formulações «espiritistas»
sobre o que se passa nas cabeças dos actuais detentores do poder. Será esta uma
questão menor, de lana caprina? Na
realidade, não é. Não foi por acaso que VL disse «assumem-se» em vez de «são».
É que dizer «são» levantaria de imediato a questão de saber se só os actuais detentores
do poder «são». E os anteriores não foram? Não prepararam o terreno, as
condições objectivas, para que os actuais fossem o que são? A resposta a estas
perguntas remeteria, no final, para o que representou o 25 de Novembro e o que
representaram as políticas do PS, partido amigo de VL. Resposta incómoda para
VL. A afirmação de VL pode, assim, ler-se da seguinte forma: «Tudo que tem sido
feito anteriormente a este governo foi feito dentro do mais puro «espírito» do
25 de Abril [a realidade objectiva da reconstituição dos monopólios e dos
latifúndios, a reconstituição de um sector bancário privado omnipotente, a entrega
da economia ao estrangeiro, pode,
segundo VL encaixar-se nesse «espírito»]; infelizmente e apesar de um percurso
brilhante desde o 25 de Novembro, “os detentores do poder assumem-se, cada vez mais,
como os herdeiros dos vencidos do 25 de Abril de 1974”». É lícito perguntar: porque
é que se «assumem»? Deu-lhes na veneta? E só agora é que se «assumem»?
Mistério. VL aparece aqui, claramente, como representante da corrente
ideológica que atribui os factos históricos a simples ideias surgidas nas
cabeças de alguns figurantes, num dia em que acordaram mal dispostos, sem
relação com uma realidade objectiva. Isto é, sem relação com os interesses económicos
de classes sociais concretas. Admitir isso obrigaria VL a admitir que a política
dos actuais dirigentes não é mais do que o corolário das políticas que têm sido
seguidas desde o 25 de Novembro, ao serviço dos interesses económicos da
burguesia, dessa mesma burguesia que, obviamente, teria de destruir o
«concreto» do 25 de Abril. Porque com o «espírito» do 25 de Abril pode a
burguesia bem. VL teria de admitir o que não lhe convém: que como construtor da
aliança de classe que levou a cabo o 25 de Novembro ele (talvez sem o desejar)
ajudou a construir o domínio dos «vencidos do 25 de Abril de 1974».
- «Se a nossa presença é tão desejada na Assembleia da República, tão
imprescindível e tão insubstituível, não compreendemos o medo, sim o medo, de
nos olharem para além da cereja em cima do bolo».
A afirmação de VL é
pertinente. VL não compreende o medo. É que VL não foi suficientemente longe na
análise do significado da «cereja» e do «bolo». Mais uma vez, não concretizou. VL
e confrades representam a utópica «terceira via» entre o capitalismo e o socialismo,
posta em letra de forma no «documento dos nove» de que VL foi co-autor;
«terceira via» tão do agrado de um sector da pequena burguesia. Esse diminuto e
utópico sector é a pequenina cereja, que só esperneia quando o grande e anafado
«bolo» -- a grande burguesia – lhe pisa os calos (cortes nos salários de
quadros da função pública, cortes nas promoções e verbas para as forças
armadas, fortes restrições nos empréstimos bancários, nomeadamente às PMEs,
etc.). Nessa altura a «cereja» pensa: espera aí, mas a terceira via não tinha um
qualquer cheirinho de socialismo? Não será de falar nisso na AR? É claro que,
por esta altura, com o «bolo» bem instalado no poder graças à antiga ajuda da
cerejinha, tais elucubrações cerejais são «subversivas» além de serem de mau
tom; podem, por exemplo, assustar a troika e os mercados compradores da dívida
pública.
Estás a ver, cereja, de
que é que o bolo tem medo?
- «Neste local simbólico que tão gratas recordações nos traz, podemos e
queremos dizer, sem qualquer hesitação, que quem nos desgoverna subiu ao poder
fazendo promessas que não cumpriu».
Só agora VL descobriu
isso! Estranhamente, não reparou que todos os anteriores governos PS fizeram
promessas que não cumpriram. Bem como os do PSD e CDS. Exceptuam-se aqueles
breves governos de Nobre da Costa e Mota Pinto que só prometeram medidas de
direita e cumpriram.
- «Temos de nos mobilizar a fundo para pôr cobro a uma situação que seria impensável
há meia dúzia de anos».
Para VL, até há meia
dúzia de anos, estava tudo bem. Não notou os cortes nos direitos dos
trabalhadores, as revisões de direita da Constituição, as privatizações, os
despedimentos, etc. Mas que distracção! É claro que se VL fosse um de muitos trabalhadores
que desde o 25 de Novembro ficou no desemprego e a arder com salários não pagos
porque os patrões fugiram para o estrangeiro, se calhar estaria menos
distraído.
- «Temos de ser capazes de retomar as Presidências de boa memória de Ramalho
Eanes, Mário Soares e Jorge Sampaio»
Cá está. Com Eanes,
Soares e Sampaio estava tudo bem. Para VL tem estado tudo, essencialmente, bem,
desde o 25 de Novembro. Sá há cerca de meia dúzia de anos para cá é que há uns
quantos dirigentes que – sem necessitarem disso, apenas porque se calhar
acordaram mal dsipostos – se «assumiram» como herdeiros dos vencidos do 25 de
Abril. Não haverá por ai um presidente a convencê-los a «assumirem-se» de forma
diferente?
«A desvergonha é tanta que, no Governo, ao mais alto nível, há até quem se
atreva a falar de uma nova restauração, fazendo de conta que não sabe que o
novo 1640 está mesmo a caminho com a inevitável defenestração dos Miguéis de
Vasconcelos que por aí andam»
Pois. A cereja fala de
grosso. Recordando a acção de denodados conspiradores; não de acções populares,
claro. Que tal um novo D. Sebastião ou um Bandarra a fazer de Eanes, Soares e
Sampaio de «boa memória»? Um novo presidente que ajude a pôr tudo como era
dantes? Meia dúzia de anos atrás?
* * *
Vasco Lourenço permanece
fiel à ideologia de um certo sector da pequena burguesia: a «terceira via», entendida
não como um estado de transição rumo ao socialismo, mas sim como a concretização
de um capitalismo benevolente, atento aos interesses da pequena burguesia, das
«classes médias», incluindo os quadros médios das instituições públicas. Um tipo
de capitalismo que no passado só existiu em alguns países durante alguns anos e
que está, já de há muito, totalmente extinto.
Aliás, toda a história
da economia portuguesa desde o 25 de Novembro é uma ilustração da
impossibilidade de tal tipo de capitalismo. No sector do comércio foram
liquidadas milhares de lojas e pequenas empresas, substituídas por grandes
grupos do comércio por grosso e a retalho (Modelo Continente, Pingo-Doce,
Makro); o mesmo se verificou no sector
das indústrias e dos serviços, tendo-se assistido à constituição de grandes
empresas nacionais (Corticeira Amorim, Mota-Engil, Portucel), à absorção de
empresas nacionais por monopólios estrangeiros (Continental Mabor), à instalação de monopólios estrangeiros (Repsol,
Cepsa, Vodafone, Volkswagen Autoeuropa). Muitas
empresas nacionais importantes acabaram por ser liquidadas (caso, p. ex., da Sorefame
que passou para a Bombardier e, depois, para a ADtranz). Foi esse também o
destino de muitas grandes empresas privatizadas; só serviram aos capitais
estrangeiros enquanto estes não descobriram outras paragens com mão-de-obra
mais barata e menos direitos.
Portanto, a lógica do
capitalismo, desde o 25 de Novembro, lógica neo-liberal que passa pala necessária submissão da economia
portuguesa aos ditames de grandes grupos económicos estrangeiros, tem sido
esta: concentração, absorção e liquidação dos pequenos, deslocalização do que
já não é rentável produzir em Portugal. É uma lógica que, em declínio de
rendibilidade, tem necessariamente de
cortar nas despesas públicas. Tem, necessariamente,
de ferir os interesses da pequena burguesia que VL representa. E enfatizamos «necessariamente»
porque é determinado pela própria lógica interna do capitalismo. Enganam-se
aqueles que, como VL, julgam que vão impôr ou ensinar os capitalistas de como
devem praticar o capitalismo. Por isso dizemos que a «terceira via» de VL e confrades
é utópica. Mas mais do que isso: sempre que proponentes da «terceira via»,
«socialismo democrático», «social-democracia», ou seja lá o que for que chamem,
estiveram no poder, acabaram sempre por seguir a lógica do capitalismo. Sempre.
Quer se chamassem PS, PSD, CDS ou outra coisa qualquer. Puseram em prática a
lógica que, inelutavelmente, nos conduziu onde estamos.
Portanto, VL, nestes
anos todos não aprendeu nada. A realidade concreta da história, a análise dos
factos materiais, não lhe permitiu ir, nas suas concepções, para além dos quadros
de referência habituais da classe a que pertence.
* * *
No último artigo recordávamos:
«[Na manifestação
contra-revolucionária de Outubro de 1975] lá estava o Mário Soares [...];
noutras janelas, elementos do (ou afectos ao) «Grupo dos 9», como Vasco
Lourenço; na manifestação, os «socialistas» lado a lado com grandes
«revolucionários» esquerdistas, como os da FEC-ml, gritando a plenos pulmões
«Vasco só há um, o Lourenço e mais nenhum!».
Quanto à manifestação no Largo do Carmo, lemos no jornal:
«Na presença de Mário
Soares [...] fortemente ovacionado à chegada, Vasco Lourenço declara:
"Temos de ser capazes de retomar as Presidências de boa memória de Ramalho
Eanes, Mário Soares e Jorge Sampaio". Na assistência estavam ainda Maria
Barroso, Vítor Ramalho, João Semedo, Arnaldo Matos, Marisa Matias e Júlio
Isidro.»
Em resumo, voltamos a
encontrar os mesmos socialistas e seus aliados: o BE, consciência de esquerda
do PS (o grilo do Pinóquio), e Arnaldo Matos, o antigo dirigente do MRPP
conhecido em 1975 por «o grande educador do povo» (esta a designação informal;
o título oficial era «grande dirigente e educador do proletariado
português»). MRPP que também esteve presente citada manifestação de Outubro de 1975.
O mesmos figurantes e
as mesmas ideias. Ao serviço da campanha para guindar o PS ao poder. Ao serviço
do embuste do povo. O 25 de Abril com cara de 25 de Novembro. O cheiro a bolor
é insuportável.