Como se chegou a este paradoxo?
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Sejamos claros: a revolução do 25 de
Abril durou 1 ano, 4 meses e 25 dias. Neste curto período de tempo foram
desmanteladas as instituições fascistas e construídas as de um Estado
democrático, foi terminada a guerra colonial e desenrolado o processo que
conduziu à independência oficial das ex-colónias, levada a cabo a Reforma
Agrária na zona de latifúndio, efectuadas nacionalizações da banca e de muitas
empresas importantes, construídas organizações de base como comissões de
trabalhadores nas empresas e comissões de moradores nas autarquias, lançadas as
sementes de um processo socializante único na Europa ocidental. E, apesar desse
processo intenso, dizia um jornal americano que, surpreendentemente, a economia
portuguesa estava em bom estado...
Em 19 de Setembro de 1975 caía o
quinto governo provisório encabeçado por Vasco Gonçalves. Caía o último governo do 25 de Abril.
Por essa altura, no Verão Quente de
75, o patético Otelo mandava Vasco Gonçalves «descansar», achava que o PCP
ainda tinha muitas sedes para queimar, e oscilava entre ser o «Fidel da Europa»
ou o embaixador do «socialismo» sueco. No que lhe competia fazer, não fazia
nada: o COPCON era apenas um tigre de papel que só mostrou os dentes contra os
trabalhadores da Reforma Agrária; quanto aos bandos fascistas, por serem
anti-PCP, Otelo permitia-lhes rédea solta.
Sob tal protecção da revolução a
direita do MFA, representada pelo «Grupo dos 9», iniciava um processo
contra-revolucionário. Processo que, no sector civil, era liderado pelo PS em
íntima colaboração com o embaixador americano Frank Carlucci, da CIA, levando
pela arreata o PSD, o CDS e a extrema-direita, incluindo as forças spinolistas.
O sexto governo provisório, de iniciativa da direita militar, consagrava o
casamento do «Grupo dos 9» com o PS. Casamento revelado ao público na
manifestação de apoio ao governo em Outubro. Pinheiro de Azevedo, o novo
primeiro-ministro, arengou à multidão da janela de um edifício. Bem coladinho a
ele, lá estava o Mário Soares -- o amigalhaço de Carlucci -- a dar-lhe as dicas
(elas ouvem-se bem na reportagem que por misteriosas razões caiu no
esquecimento dos memorialistas oficiais); noutras janelas, elementos do (ou
afectos ao) «Grupo dos 9», como Vasco Lourenço; na manifestação, os «socialistas»
lado a lado com grandes «revolucionários» esquerdistas, como os da FEC-ml,
gritando a plenos pulmões «Vasco só há um, o Lourenço e mais nenhum!».
Pelo sim pelo não -- não fosse o
diabo tecê-las -- o casamento «Grupo dos 9»-PS-Direita-Extrema-Direita levou a
cabo a provocação do 25 de Novembro, liderada
no plano militar por spinolistas encabeçados por Ramalho Eanes -- aparece nas
fotos da época em cima de um carro e de peitaça para a frente, em atitude de
grande guerreiro vitorioso sobre o nada
-- que liquidou o essencial do MFA, enviando os seus elementos consequentes
para a prisão, e impôs, assim, um fim definitivo
ao 25 de Abril. Vasco «o Lourenço», um dos liquidadores do 25 de Abril, é o
actual presidente da «Associação 25 de Abril». Nunca vimos nem lemos dele
qualquer manifestação crítica do seu papel no 25 de Novembro, na formação do
sexto governo e na liquidação do MFA, pelo que nos assiste a razão em vê-lo não
como o Vasco Lourenço do 25 de Abril, mas sim como Vasco «o Lourenço», personagem
incensada pelo PS e restante Direita pelo seu papel na liquidação do 25 de
Abril.
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O que veio a seguir ao 25 de
Novembro de 1975 foi a eliminação, por etapas, de tudo o que era «25 de Abril».
A reconstituição dos monopólios e dos latifúndios. Com a participação maciça de
capitais estrangeiros. Com a integração na Europa neoliberal dos monopólios e a
perda quase total da nossa soberania. Em suma: PS-PSD-CDS e seus representantes
na direita militar conduziram o país para o lindo estado em que nos
encontramos.
Era preciso, porém, enganar o povo.
Era preciso fazer crer que o rumo de reconstituição do capitalismo monopolista
e latifundiário era um rumo com a chancela do «25 de Abril». Os próprios
autores do 25 de Novembro não se cansaram de clamar que o 25 de Novembro era um
espécie de confirmação e «correcção de excessos» criados pelo 25 de Abril. Agora,
sim, é que o povo iria ver o que era um «25 de Abril» purinho, limpinho, cheio
de verdadeiro «socialismo», do «socialismo democrático» da marca Mário Soares. Pílula
já na altura difícil de engolir, inclusive pelos mais desfavorecidos que
instintivamente viram no 25 de Novembro a entronização de novos «senhores». Não
admira, portanto, que as comemorações oficiais do 25 de Novembro sempre decorressem
chochas, cada vez menos participadas, acabando por praticamente desaparecer.
É que há coisas que ficam, ainda que
atenuadas, na memória colectiva. A capacidade de determinar soberanamente o
próprio destino, de construir uma vida digna com redução de desigualdades
sociais, continua associada na memória do povo, na memória dos trabalhadores,
ao 25 de Abril. Do 25 de Novembro só perdura o travo amargo da traição aos
ideais de Abril. A traição de todos aqueles que prometeram a liquidação dos
monopólios e latifúndios e não cumpriram. De todos aqueles que tinham a boca
cheia de «socialismo» e se empenharam em repôr e reforçar o capitalismo. De
todos os da «Europa connosco» que liquidaram o sector estatal e venderam
Portugal ao capital estrangeiro. De todos os «democráticos» que em sucessivas
revisões constitucionais restringiram cada vez mais a «democracia», os direitos
dos trabalhadores, o direito a uma informação livre, não tutelada pelos grandes
grupos económicos; dos «democráticos» que ainda hoje procuram, através de novas
leis eleitorais e da «reforma estrutural do Estado», dar novas e potentes
machadadas na «democracia».
Havia, portanto, que continuar a
vender a ilusão de que tudo que é feito é dentro do «espírito» do 25 de Abril. (Os
da Direita são sempre muito «espiritistas».) Daí, as comemorações oficiais. Em
que se empenha a Direita, não poupando despesas. Este ano, inclusive, a
seta do PSD vai mudar durante as comemorações de laranja para vermelho
(divulgado nos jornais)! A mensagem é esta: «O 25 de Abril não é
anti-monopólios nem anti-latifúndios. Não é socialismo. Não, senhor. Não! O 25
de Abril é o que estamos a fazer: capitalismo neoliberal que rouba aos
trabalhadores para dar ao grande capital. Submissão aos interesses do grande
capital nacional e estrangeiro». Jardim Gonçalves e seus confrades devem estar
a torcer-se de riso. Então não querem lá ver que o 25 de Abril foi feito para
eles?!
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Nas comemorações oficiais do 25 de
Abril lá aparecem todos os anos umas avesinhas, da espécie esquerdinus ingenuus, a cantar comovidinhas o «povo é quem mais
ordena». Coitadinhas, que não se dão conta que já há muito anos o povo não
ordena nada. Coitadinhas, que não se dão conta que só estão a emprestar
sustentação e respeitabilidade às teses da Direita. Por isso mesmo, estas
avesinhas são observadas do alto sob o olhar enlevado dos passarões.
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Pensamos, portanto, que só há uma
forma adequada da Esquerda comemorar o 25 de Abril se quiser ser Esquerda, isto
é, demarcar-se do regime de Direita instaurado com o 25 de Novembro: denunciar
no parlamento e nas ruas o monumental embuste das comemorações oficiais; o
embuste das comemorações da Direita que se apropriou do «25 de Abril» como mero
estratagema de controlo ideológico. Comemorar nas ruas de forma independente,
totalmente divorciada das comemorações oficiais, esclarecendo o povo de como
foi traído, de quem o traiu, e aonde nos conduziu a traição aos ideais de
Abril. Usando as palavras exactas. Todas as palavras exactas. Com bandeiras negras. O 25 de Abril morreu há muitos anos atrás. O povo,
os trabalhadores, continuam de luto.
Só assim, no nosso entender, a
Esquerda ganhará o crédito popular de que não alinha em rotinas de parvoeira e está
empenhada em construir um novo «25 de Abril». Totalmente novo.