A pretensa democraticidade da UE foi já por
nós comentada e analisada desde o início do blog em 2012.
A UE é uma estrutura essencialmente controlada
pelo grande capital alemão, com associados menores: grande capital francês, do
Benelux e parte do grande capital inglês. O objectivo do grande capital é o
domínio de um vasto mercado monopolisticamente gerido, e a extracção de
mais-valia através de mecanismos supranacionais, aparentemente «democráticos»,
de coerção sobre os trabalhadores e de gestão neo-colonial das economias
periféricas.
O conceito de democracia tem de ser sempre
analisado pelo critério de classe. No capitalismo neoliberal quem possui o saco
de moedas é quem dirige a orquestra. O Parlamento Europeu e outras estruturas
da UE não alteram em nada a direcção da orquestra. O primeiro, empresta um
perfume de democracia, escondendo dos 99,9% a realidade de que apenas os 0,1%
do grande capital dirigem a orquestra. Isto não quer dizer, naturalmente, que
os representantes progressistas dos 99,9% não usem o Parlamento Europeu na
denúncia e na tentativa de reversão das manigâncias dos 0,1%. Quanto a outras
estruturas (comissões de ministros, CE, etc.) a sua submissão aos 0,1% é total,
funcionando em estilo mercenarista ou de corrupção pura e simples, do tipo
«coça-me as costas que eu depois coço-te as tuas». Fica assim justificada a
afirmação «A UE não pode ser democratizada».
Com vista a adiar a agonia capitalista
aparecem constantemente grupos que apresentam as velhas e falhadas ideias da
social-democracia sob novas roupagens. Arvoram novas denominações, procurando inclusive
demarcar-se da etiqueta «social-democrata» e parodiar-se de «marxistas» ou
«progressistas». São como o «gato escondido com o rabo de fora». E o essencial do
«rabo», seja quais forem as roupagens com que se pavoneiam, é sempre o mesmo: a
colaboração de classes, em nome de uma utópica e etérea democracia acima das
classes, que será sempre e não poderá ser outra coisa senão a submissão à
classe dominante.
O último exemplo emblemático de tais grupos é
o recentíssimo Movimento Democracia na
Europa 2025, dinamizado pelo bem conhecido «marxista errático» (assim
auto-denominado) Yanis Varoufakis, ex-ministro grego das Finanças. Membro do
grupo é também o filósofo eslovaco Slavoj Žižek, muito apreciado pelos media quando querem mostrar a sua
independência entrevistando um marxista (imagine-se!). A este poderíamos denominar
de «marxista esotérico». Também não faltam portugueses a abrilhantar o grupo: o
confusionista pós-moderno Boaventura de Sousa Santos e o jovem dos conceitos
absolutos e puros, livres dessa coisa chata e ultrapassada de tingimentos de
classe, Rui Tavares.
Sobre o «Democracia na Europa» encontrámos um
artigo de muito interesse no MLToday
(http://mltoday.com/ ) que traduzimos abaixo.
Confirma e expande algumas das ideias por nós avançadas desde 2012.
* *
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A UE
Não Pode Ser Democratizada
Nota do editor do MLToday:
Uma linha de fractura essencial entre o Centro
e a Esquerda na política europeia é a atitude face à União Europeia (UE). Os
reformistas sociais, de novas e velhas variedades, afirmam que a UE tem algum
potencial progressivo. Os comunistas afirmam que a UE é uma instituição de
classe dominante que não pode ser reformada. Este último ponto de vista é
convincentemente argumentado no artigo que se segue.
O
Movimento Democracia na Europa 2025: o velho mascarado de novo
Texto
de análise do Partido Comunista da Irlanda
12 de
Fevereiro de 2016
Ao mesmo tempo que o povo trabalhador da União Europeia começa a questionar o seu
papel e até mesmo a sua natureza, incluindo os interesses que serve, eis que um
novo agrupamento apareceu a semear a confusão e a atirar poeira aos olhos.
O «Movimento Democracia na Europa 2025», o
grupo mais recente a apresentar-se como salvador do povo, despertou interesse
devido à participação de um representante do Right2Change [Direito à Mudança, um grupo político da Irlanda] na
sua reunião de fundação em Berlim, no passado 9 de Fevereiro. A 13 de Fevereiro, a conferência do Right2Change em Dublin terá uma
participação por vídeo de um dos fundadores do «Movimento», o ex-ministro grego
das Finanças, Varoufakis. Ele irá também viajar por um certo número de países
periféricos para promover este novo grupo.
O «Movimento Democracia na Europa» é um agregado de personalidades e de
políticos falhados da tradição social-democrata (Labour Party). Varoufakis não é o único ex-ministro do grupo: um
outro membro fundador proeminente é Arnaud Montebourg, ex-ministro do governo
francês que é também vice-presidente da cadeia de armazéns Habitat e membro do
comité de orientação estratégica da companhia Talan (França).
Antes do almoço formal em Berlim o grupo
emitiu um manifesto no qual declara que o objectivo ou estratégia do movimento
é «democratizar» a União Europeia. Contrapõe esta «democratização» a duas
«opções terríveis»: ou um recuo para o casulo do Estado-Nação ou uma submissão
à zona livre-de-democracia de Bruxelas.
As reivindicações iniciais do grupo são as de
uma transparência completa no processo de decisão, com difusão ao vivo das
reuniões do Conselho da UE, do Conselho de Ministros das Finanças e do Eurogrupo,
a divulgação integral das negociações económicas, das actas do Banco Central da
UE, etc. Se bem que fosse útil saber o que tais organismos estão a planear,
sabemos por experiência que as decisões realmente importantes são tomadas nos
bastidores: no campo de golfe, em restaurantes de luxo, ou nos corredores dos
parlamentos patrulhados pelos lobistas das corporações.
Este novo grupo quer que as actuais
instituições da UE obtenham recursos e implementem políticas dirigidas à
resolução das crises da dívida, à banca, ao investimento, à pobreza, ao
emprego, e à migração. Desde logo, este programa parte do pressuposto de que as
ditas instituições tomam «más» decisões porque operam à porta fechada ou negoceiam
em segredo, em vez de ter em conta o simples facto de que as ditas instituições
representam, reflectem e trabalham no interesse das forças económicas reais.
Elas não são neutrais, nem estão acima do serviço de interesses de classe.
As instituições e os indivíduos que as povoam
não tomaram más decisões: tomaram as decisões correctas no sentido de favorecer
os interesses das grandes corporações e das empresas financeiras. Estas
estruturas foram desenvolvidas e estão a ser constantemente refinadas para
assegurar o controlo e a conformidade com qualquer que seja a estratégia
requerida pela elite dominante em dado momento, ao mesmo tempo emprestando-lhes
uma aparência democrática formal.
O «Democracia na Europa» também deseja
convocar «uma assembleia constitucional onde os europeus deliberarão como
avançar, em 2015, para uma democracia europeia total, caracterizada por um
parlamento soberano da UE que respeite a auto-determinação nacional e partilhe
o poder com os parlamentos nacionais, as assembleias regionais e os concelhos
municipais». O objectivo a longo prazo é, portanto, «instituir uma Europa
totalmente democrática e funcional em 2015».
O que significa, na realidade, esta
altissonante democracia de poder-ao-povo, paramentada de tão fantástica
linguagem? Eles querem um «parlamento» Europeu com poderes «soberanos»: logo,
aquilo que estão a reclamar, é que todas as decisões fiscais, monetárias, económicas
e sociais sejam do foro deste «parlamento» reforçado. Eles querem que todo o
poder seja dado a este novo parlamento mas, ao mesmo tempo, «partilhando» o
poder e «respeitando» os parlamentos nacionais e as assembleias regionais.
O que estariam de facto a «partilhar» com o
parlamento nacional? É óbvio que se temos um Parlamento Europeu «genuíno» e
democraticamente legítimo, então teremos de ter um «Governo Europeu» que dê
expressão a essa nova instituição democrática. Eles querem uma estratégia
federalista «de esquerda», a qual preferem ao actual processo
intergovernamental, com os representantes dos Estados membros a tomar decisões.
Sendo assim, o povo irlandês [ou português, ou
qualquer outro] poderia votar em quem quer que desejasse a nível nacional, mas
ficaria sem qualquer capacidade de mudança a esse nível, dado que o poder e a
tomada de decisões reais, segundo o «Movimento», pertenceriam a esse novo e
«democrático» parlamento Europeu.
As decisões políticas significativas já estão
fora dos Estados membros; já temos uma forma de «governo Europeu» onde
reduzidos círculos de uma elite politico-económica – tal como a Mesa Redonda Europeia dos Industriais –
decidem o que deve ser feito. Assim, segundo a visão do «Movimento»,
tratar-se-ia apenas de democratizar este processo.
Aqui há que ter em conta a recente experiência
do encargo da dívida imposto ao povo irlandês pelo BCE e CE, bem como o
«Programa para a Irlanda» exigindo a privatização de activos públicos,
incluindo a companhia das águas e companhias públicas. [Idem, para Portugal,
etc.]
É, portanto, falsamente apresentada, sob a
capa de uma maior democraticidade, a ideia de que uma espécie de Parlamento reforçado
da UE é melhor do que a actual governação por uma elite económica com a sua
burocracia tecnocrática, a qual na verdade um tal Parlamento improvavelmente
desafiaria, ainda que o pudesse fazer.
Mesmo que seguíssemos à letra essa ideia do
«Movimento», não existiria simplesmente qualquer possibilidade de que obtivesse
um apoio legítimo do povo, que o levasse a aceitar um voto maioritário de um
novo Parlamento da UE da mesma forma que sucede internamente nos Estados
independentes, onde o povo consente ser governado por decisões maioritárias dos
parlamentos nacionais.
Se, no proposto parlamento recauchutado,
tivéssemos a actual composição de representação política do Parlamento da UE,
com a sua maioria de cristãos democratas e de outros partidos conservadores,
apoiada pela minoria social-democrata que partilha com eles a mesma visão de
política fiscal e económica, então tal maioria poderia «democraticamente» votar
pela austeridade e impor aos povos o fardo da dívida massiva das corporações.
Será que o «Democracia na Europa» acredita
seriamente que num Parlamento da UE recauchutado tais políticas iriam ser mais
aceitáveis para o povo trabalhador da Grécia, Espanha, Portugal, e Irlanda? [Na
realidade] À semelhança de outras instituições da Europa, eles desejam
despolitizar a democracia, despolitizar as decisões económicas e fiscais, de
facto despolitizar o próprio Estado-Nação, defendendo que já nada mais pode ser
feito ao nível do Estado-Nação, que os Estados-Nações são redundantes no que
diz respeito à política fiscal, económica e social.
É simplesmente impossível que uma forma
parlamentar de governo da UE ganhasse aceitação popular, por várias razões. As
dimensões diferentes e os diferentes níveis de desenvolvimento económico dos
estados membros, bem como a heterogeneidade das populações nacionais, tornam
isso impossível.
O Parlamento da UE, tal como existe, é uma
fachada, um fingimento de democracia, que serve para esconder o funcionamento
não democrático do sistema. Serve também como meio de propaganda de uma
«identidade europeia», como um disfarce do relacionamento neo-colonial existente
entre os poderosos Estados nucleares e a periferia. Esta é uma lição que muitas
nações que buscam uma separação dos actuais Estados multinacionais, tais como a
Escócia, a Catalunha, e o País Basco, precisam de aprender. A verdade crua e
simples é que dentro da UE nenhuma independência pode existir.
As propostas do «Democracia na Europa», de
aumentarem os poderes aparentes do parlamento, apenas iriam redecorar a fachada
e não contribuiriam em nada para alterar a natureza imperialista da UE, quer
internamente quer externamente.
A reivindicação ou estratégia de mais
integração, mesmo que com uma componente eleitoral-representativa de alguma
forma melhorada, não é a mesma coisa que controlo popular. Nada tem a ver com
uma transferência fundamental de poder dos escritórios das corporações e empresas
financeiras para o povo trabalhador. Tal reivindicação ou estratégia
simplesmente ignora ou não consegue entender a natureza do poder político e
económico, a natureza do Estado e das instituições de governo e controlo.
O esvaziamento da democracia representativa
decorrente da adopção dos múltiplos tratados da UE seria ainda mais completo se
e quando o TTIP [Transatlantic Trade and
Investment Partnership = Acordo de
Parceria Transatlântica de Comércio e Investimento, projecto das
administrações Obama-Merkel de consolidação e reforço do pólo imperial
EUA-Alemanha] fosse adoptado. Os tratados da UE visaram retirar todas as
decisões de políticas fiscais, económicas e sociais, do âmbito nacional,
assegurando que elas não poderiam ser influenciadas pelas lutas de classes a
nível nacional, e assegurando de forma permanente que um governo progressista
eleito a nível nacional ficasse severamente restringido na sua acção. O colete
de forças fiscal e económico está firmemente atado.
A elite governante, especialmente a nível da
UE, despolitizou as decisões fiscais e económicas relegando-as para meras
questões técnicas. Isso também se aplica à despolitização dos Estados
individuais. Tal como a elite governante o «Democracia na Europa» defende que
os problemas não podem ser reolvidos a nível nacional: só podem ser resolvidos
a nível internacional, limpando assim, de forma conveniente, a classe dominante
irlandesa de qualquer responsabilidade [idem, para outros países] e negando a
possibilidade de mudança.
A entrega pelas classes governantes nacionais
de poderes soberanos de estruturas nacionais a estruturas internacionais, só
pode ser entendida como uma componente de um processo de reversão das
conquistas democráticas, económicas e sociais dos trabalhadores, conduzido
pelas respectivas classes governantes.
O que Varoufakis e outros como ele advogam é
uma forma de democracia sem o povo, uma maior erosão da soberania nacional e da
democracia nacional, é o erigir novos obstáculos a qualquer possível transformação
radical das estruturas económicas e sociais a nível nacional.
Indivíduos como Varoufakis e grupos como o
«Democracia na Europa» são apenas a última versão de uma longa linha de
personagens que intentaram colocar uma face humana num sistema inumano e suas
estruturas de controlo, como as da União Europeia. Neste aspecto, estão a
emular a campanha bem sucedida do Syriza na Grécia que mobilizou forças
populares para as conduzir à derrota e à desilusão. É essa a missão de
Varoufakis, agora ao nível do palco europeu.
O que têm para oferecer é apenas mais do
mesmo: o velho mascarado de novo. Há uma necessidade crescente de cirurgia bem
mais radical se queremos construir e viver numa sociedade decente, onde o pilar
fundamental é a solidariedade e a justiça económica a nível popular, uma sociedade
onde o «mercado» deve estar submetido ao povo, em vez do que agora acontece,
onde o povo está submetido ao «mercado».