segunda-feira, 22 de setembro de 2014

Marxismo e Ciência. III – Materialismo e Mecânica Quântica

    À primeira vista o presente artigo parece fugir um tanto aos temas do nosso blog: política, economia e história. A razão porque nos sentimos obrigados a abordar a Mecânica Quântica no âmbito de «Marxismo e Ciência» (ver artigos anteriores da série, em particular http://revolucaoedemocracia.blogspot.pt/2014/06/marxismo-e-ciencia-ii-materialismo.html ) é porque ela é hoje a disciplina científica mais invocada e abusada para combater a concepção materialista do mundo em geral e das ciências sociais em particular.
    O artigo está estruturado em sete secções: Preâmbulo, A Mecânica Quântica ao Serviço do Idealismo, Os Aspectos Intrigantes da Mecânica Quântica, Interpretações da Mecânica Quântica, Balanço, Notas e Referências.
Preâmbulo

    Desde sempre os idealistas de todos os matizes procuraram usar resultados da ciência para desacreditar a concepção materialista do mundo, a única que os cientistas das ciências da natureza espontaneamente usam no seu trabalho prático, embora possam abraçar concepções idealistas na interpretação dos respectivos resultados, bem como em tudo que transcenda a sua área de trabalho. (Já discutimos este aspecto em artigo anterior). Na análise da fenomenologia social (economia, história, política) não há, contudo, lugar para equívocos: ou se abraça uma análise científica consequente, única capaz de fornecer uma explicação consistente dos fenómenos sociais, ou se envereda por caminhos idealistas que não explicam nada, não conduzem a nada. Não há lugar para se ser materialista nas horas de trabalho e ser idealista quando, sentado no sofá, se ouve o governador do BdP a dizer que a solução para o BES é a melhor possível para todos os portugueses. A única análise científica da fenomenologia social que a humanidade criou é designada por marxismo. Poderia ser designada, por exemplo, por «análise materialista dialéctica da fenomenologia social»; uma designação mais precisa mas encombrant. (A propósito, o próprio Karl Marx, avesso a tudo que parecesse culto da personalidade, dizia que não era marxista.) Exactamente por essa razão, a da consequência científica, os marxistas têm-se destacado pela atenção que prestam a todas as ciências, sejam da natureza ou do homem.
    Vale a pena lembrar aqui a atenção que Lenine (Vladimir Ulianov) dedicou às teorias físicas do seu tempo sobre a natureza da electricidade, por ele reportadas e comentadas na sua obra «Materialismo e Empiriocriticismo», já citada em artigo anterior. Lenine descreve em detalhe as interpretações idealistas de Poincaré e de outros físicos que viam a electricidade como apenas «energia» descrita por equações diferenciais (as de Maxwell), visão que supostamente invalidava a noção materialista de existência de realidade objectiva. Tanto bastou para que uma enorme quantidade de filósofos pegasse nesta deixa e proclamasse aos quatro ventos que o materialismo estava destruído, contribuindo para o reactivar de doutrinas místicas e de uma caterva de superstições. Quem se opôs a Poincaré e consortes, conforme reporta Lenine, foram Heinrich Herz, Ludwig Boltzmann e William Ramsay ([1]). Lenine comenta, assim, como bom materialista dialéctico: «Se os nossos machianos [idealistas da corrente positivista de Ernst Mach, ver nosso artigo anterior] que escrevem livros e artigos sobre assuntos filosóficos fossem capazes de pensar, entenderiam que a expressão “a matéria desaparece”, “a matéria é reduzida a electricidade”, etc., é apenas uma expressão epistemologicamente inútil da verdade de que a ciência é capaz de descobrir novas formas de movimento material, de reduzir as formas antigas às novas formas, e assim por diante». Isto foi escrito em 1908 quando a famosa E=mc2 da equivalência massa-energia era ainda mal conhecida (a fórmula ainda não aparecia assim escrita em 1907), a teoria atómica ainda não tinha nascido e as partículas elementares estavam quase todas por descobrir.
    No tempo de Lenine era a electricidade que servia de arma de arremesso contra o materialismo e de motivo incentivador o idealismo. No nosso tempo é a Mecânica Quântica (MQ). E as variantes idealistas das ciências da natureza de uma época têm sempre repercussões nas teorias idealistas dominantes da política, economia e história.

A Mecânica Quântica ao Serviço do Idealismo

    A MQ ([2]) é uma das mais bem validadas teorias da física ([3]), com resultados aplicados em muitos dispositivos actuais (lasers, ressonância magnética, semicondutores usados em diversa aparelhagem, etc.). Apesar da familiaridade com tais dispositivos, as leis quânticas em que se baseiam desafiam o senso-comum materialista. Os pescadores de águas turvas aproveitaram-se disso, usando quer interpretações idealistas e especulativas dos físicos, quer ideias e frases soltas pescadas fora de qualquer compreensão do tema (ainda que mínima!), para construir uma pletora de correntes idealistas que vão desde o holismo ([4]) New Age e esoterismo (taoísmo, teoria de Gaia, teosofia, homeopatia, arqueoastronomia, etc.) ao neo-positivismo e relativismo pós-modernista. Afirmam que «a ciência [a MQ] já mostrou que tudo é incerto [princípio da incerteza]», que «tudo é relativo» ([5]), que «tudo no mundo está harmoniosamente interligado», que «a ciência [a MQ] mostra que não há leis realistas», etc., etc. Vale, portanto, tudo: a incerteza da vida, como a necessidade de haver desemprego, estaria provada cientificamente; a crise é relativa e não tem causas materiais mas sim causas «mentais» (o «espírito animal» de Keynes e Ben Bernanke); pobres e ricos estão harmoniosamente interligados; a crise é global e tem sempre de existir; não há leis sociais, mas apenas a ganância de grupos e de indivíduos que lutam pelo poder; as lutas de classes são um mito; os mercados devem funcionar sem regras (quanto mais caótico melhor como [supostamente] nos átomos); «o realismo das assunções [de uma teoria] não interessa» [positivismo de Milton Friedman], etc. Todas estas correntes ludibriam o público em geral, obviamente ignorante da ciência e da MQ e, por isso, presa fácil de especuladores e charlatães: sacerdotes, filósofos idealistas, gurus, médicos e físicos holistas, economistas neoliberais, sociólogos e políticos pós-modernistas, etc. Eis alguns exemplos de «obras» destes pensadores sobre a MQ:
Robson Rodovalho (bispo), «Ciência e Fé: o reencontro pela física quântica», Rio de Janeiro, Leya, 2013.
Isidoro Mazzarolo (doutor em teologia bíblica pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro), «Jesus e a física quântica», Editora Reflexão, 1992.
Sergio M. Levy, «O livre-arbítrio: uma análise apoiada na Relatividade e na Mecânica Quântica», Editora E-papers, 2009.
Fritjof Capra (físico), «The Tao of Physics: An Exploration of the Parallels Between Modern Physics and Eastern Mysticism», Shambhala Publications of Berkeley, California, 1975.
Gary Zukav (professor de espiritualismo), «The Dancing Wu Li Masters: an overview of the new physics», William Morrow, 1979. Ganhou em 1980 o «U.S. National Book Award in category Science»!
Deepak Chopra (médico) «Quantum Healing: Exploring the Frontiers of Mind/Body Medicine», Bantam, 1989.
David Hamilton (medico), «Quantum Field Healing», Hay House UK, 2010.
Boaventura Sousa Santos, «Introdução a uma ciência pós-moderna», Livraria Almedina, 1989.

    Estes apenas alguns de inúmeros exemplos. Contabilizando livros, revistas (incluindo as de divulgação científica!), artigos dos media e portais na net, são às centenas! Constituem uma corrente de desinformação muitíssimo mais poderosa do que a da informação séria. Dos artigos de revista, citamos estes da Superinteressante: «Deus existe?» (http://super.abril.com.br/ciencia/deus-existe-441875.shtml) e «Ciência, uma questão de fé?» (http://super.abril.com.br/ciencia/ciencia-questao-fe-447815.shtml); em portais, temos, por exemplo, este: «Jesus Cristo ensinou Física Quântica e o mundo não entendeu!» (http://www.youtube.com/watch?v=SycV-qsWYLY) ou este: «Veja Luz» (http://blog.vejaluz.com/2011/11/dinamica-da-fe-na-fisica-quantica.html), de um auto-intitulado filósofo-epistemólogo que «casa» Cristo com a Mecânica Quântica ([6]).
    Geralmente os cientistas têm pouco tempo e paciência para lidar com disparates. Só muito poucos o fazem. Por exemplo, Murray Gell-Mann, no seu livro «O Quark e o Jaguar» (publicado pela Gradiva), tem um capítulo («Mecânica Quântica e Disparate») onde desmonta timidamente alguns (poucos) dos disparates. Melhor apontado no desmonte dos disparates idealistas é o livro de Victor Stenger «The Unconscious Quantum» ([7]).

Os Aspectos Intrigantes da Mecânica Quântica

    Para se entender minimamente as interpretações da MQ iremos de descrever os seus aspectos mais intrigantes de forma sumária q.b. e em termos muito simples.
    A MQ descreve correctamente o comportamento da matéria em escalas extremamente pequenas, atómicas e subatómicas, que chamaremos microscópicas. Poderia ser aplicada a maiores escalas, mas aí as leis da física clássica, pré-quântica, são mais fáceis de aplicar e produzem os mesmos resultados.
Qual é a particularidade da matéria a escalas microscópicas que exige a descrição quântica? Essa particularidade é a chamada dualidade onda-partícula: a mesma matéria pode comportar-se quer como partículas (corpúsculos individualizados, capazes, por exemplo, de chocar uns com os outros como bolas de bilhar) quer como ondas. Esta dualidade da mesma matéria origina comportamentos que desafiam o «realismo» da visão clássica. Vejamos alguns deles:

Incerteza da Medida Simultânea da Posição e da Velocidade

    A figura 1 mostra ondas de água passando, de cima para baixo, por uma pequena fenda.

Fig. 1

    Na figura da esquerda a abertura da fenda é maior que a distância entre as cristas das ondas e estas passam com ligeira perturbação. Na da direita a abertura da fenda é menor e a perturbação maior: ondas planas passam a ondas curvas que claramente extravasam a fenda. Chama-se difracção a este fenómeno e foi estudado para a luz monocromática por Huygens no séc. XVII. A figura 2 mostra uma imagem de difracção da luz monocromática de um laser obtida num ecrã. A figura 3 ilustra o dispositivo experimental ([8]).


    Para explicar a difracção (e outros fenómenos) os físicos tiveram de admitir a natureza ondulatória da luz. James Maxwell do séc. XIX mostrou que, efectivamente, a luz correspondia à propagação de uma onda contínua electromagnética (radiação); isto é, em termos simples, constituída por uma onda de electricidade e uma onda de magnetismo, intimamente associadas ([9]). Tirando o aspecto estranho da imagem no ecrã, com picos e vales de intensidade luminosa cuja causa não discutiremos, a onda electromagnética da luz comporta-se, ao passar por uma fenda, de forma semelhante à onda de água: ondas planas (garantidas pelo facto de usarmos luz monocromática) passam a ondas curvas. A figura 4 ilustra um aspecto importante no caso da luz: a zona central de maior intensidade alarga-se quando a fenda estreita e estreita-se quando a fenda alarga.

Fig. 4


    No princípio do séc. XX o estudo de certos fenómenos de radiações electromagnéticas, impôs que se lhes atribuísse uma natureza corpuscular, com cada corpúsculo (partícula) «encapsulando» uma certa quantidade – quantum -- de energia. Um desses fenómenos foi o do efeito fotoeléctrico, muito usado actualmente para detectar passagens em portas. Verificou-se, neste fenómeno, que a luz incidindo numa placa metálica lhe arrancava electrões, não como se fosse uma onda mas sim como se fosse constituída por corpúsculos. Denominados de fotões por Einstein (que explicou o fenómeno), a sua existência está hoje comprovada. Com os meios tecnológicos actuais podemos, aliás, fazer algo impensável nos tempos de Huygens e Maxwell: efectuar a difracção com uma luz monocromática extremamente fraca, de forma a corresponder à emissão de fotões isolados, um a um, e fotografar um ecrã impressionado pelos fotões em tempos sucessivos de exposição. Obtêm-se fotos como as da figura 5, em que cada ponto corresponde ao embate de um fotão no ecrã.



    Vemos que os fotões embatem ao acaso no ecrã mas comportam-se colectivamente de forma disciplinada, com maior probabilidade de cair no centro, reconstituindo cada vez melhor, ao longo do tempo, a imagem da difracção! (Na figura 5 só mostramos a zona central.) Portanto, o mesmo fenómeno – a difracção – é explicável quer pela natureza ondulatória (campo electromagnético) quer pela natureza corpuscular (fotões) da luz.
    Entretanto, a natureza corpuscular da luz leva-nos de imediato a uma conclusão estranha em relação com a figura 4, onde um fotão é representado por um pontinho na trajectória superior. A fenda pode ser vista como um medidor de posição dos fotões, com uma certa tolerância ou desvio de posição, x. À esquerda a posição é melhor medida, com menor desvio, do que à direita. Mas o que acontece com a velocidade, v, dos fotões? Como à esquerda a largura da zona central é maior, a probabilidade de encontrar fotões que se desviaram mais da horizontal – exigindo, por conseguinte, maior desvio de velocidade na direcção vertical – é maior. E vice-versa: com maior x (à direita) menor v. Verifica-se, de facto, que o produto xv é sempre maior que uma determinada quantidade a, embora pequena ([10]): xv > a .
    Segundo o senso-comum é possível medir arbitrariamente bem simultaneamente a posição e velocidade de uma bola de bilhar, por exemplo. Mas o mundo microcópico contesta este senso-comum. Nele, quanto melhor meço a posição (desvio x pequeno), dado que  xv > a, então a velocidade é necessariamente pior medida (desvio v grande) e vice-versa. Não se trata aqui de uma limitação dos aparelhos de medida, mas sim de uma propriedade intrínseca da matéria a essas escalas. É esta uma das formulações do princípio da incerteza de Heisenberg: medições arbitrariamente boas, simultaneamente da posição e velocidade de uma partícula, são impossíveis ([11]).

Ondas de Partículas «Normais»
    A incerteza não se verifica apenas para essas estranhas partículas chamadas fotões. (Estranhas porque, entres outras coisas, têm massa nula quando em repouso.) Verifica-se também com electrões, protões, neutrões e outras partículas ou corpúsculos com massa não nula em repouso, como átomos e moléculas. E estas últimas até não são invisíveis como os fotões; já as conseguimos ver com microscópios sofisticados.
De facto, desde o trabalho pioneiro de Louis de Broglie, foi possível comprovar que todas as partículas têm uma onda associada (embora possa ser de comprimento de onda extremamente pequeno), pelo que a experiência da difracção da luz também se pode efectuar com resultados semelhantes com electrões (por exemplo). Na realidade, do ponto de vista de obediência a leis quânticas, não há diferença entre fotões e outras partículas. Tudo que a seguir dissermos para dadas partículas (fotões, por exemplo) aplica-se a todas as outras partículas microscópicas.
    Para a difracção de electrões obtêm-se também fotos como as da figura 5. Quer para a luz quer para as partículas «normais» existem leis probabilísticas que regem não só a difracção como outros fenómenos. Poder-se-ia pensar que a natureza ondulatória das partículas «normais» poderia causar um universo muito instável. É precisamente o contrário. São as ondas associadas aos electrões que são responsáveis por estes só ocuparem determinadas órbitas nos átomos. Responsáveis, portanto, pela estabilidade atómica e, por isso mesmo, de todo o universo.

Indeterminismo
    Na física clássica considerava-se que, uma vez sabidas as condições iniciais de um corpo, o seu comportamento futuro poderia, em princípio, ser exactamente predito. Todos os fenómenos da natureza eram considerados deterministas ([12]). Mas a posição em que vai incidir no ecrã um dado fotão (ou qualquer partícula microscópica) não é regido por nenhuma lei conhecida: indeterminismo individual. Mas, atenção! Nem tudo é indeterminado. Ao nível da partícula individual o resultado pode ser indeterminado. Mas, ao nível de um grande número de partículas (ao nível estatístico), podemos sempre saber como elas se comportam globalmente: a distribuição de probabilidade das partículas. Temos aqui uma situação de acaso e necessidade ([13]).
    A MQ fornece ferramentas matemáticas – operando com entidades matemáticas tais como a função de onda de Schrödinger e matrizes de estados ([14]) -- que permitem determinar, para cada caso concreto, as distribuições de probabilidade de conjuntos de partículas nas mesmas condições. (A distribuição de probabilidade para o conjunto de fotões de um feixe de luz da figura 3 corresponde ao perfil de intensidade luminosa. Desde logo, uma conclusão: a probabilidade de os fotões se propagarem em linha recta é máxima.)
Influência das Medições

    A figura 6 ilustra a famosa experiência das duas fendas, onde F é uma fonte de luz monocromática como na figura 3 ([15]).



    Lembrando o que acontece com a difracção por uma fenda, em (a) temos o que poderíamos esperar que acontecesse no caso das duas fendas. Estamos a supor, como vimos acima, que cada fenda causa uma difracção, e a representar com traço fino apenas a zona central da difracção de cada fenda. Considerando que, segundo o senso-comum, um fotão ou passa por A ou passa por B, e dado que a intensidade da luz no ecrã é uma medida de probabilidade, esperaríamos obter uma intensidade total da luz no ecrã que fosse a soma das intensidades: ‘probabilidade de passar por A ou passar por B’ = ‘probabilidade de passar por A’ + ‘probabilidade de passar por B’, obtendo a soma de intensidades representada pela curva a traço grosso. Seria isso que de facto obteríamos com partículas macroscópicas, como berlindes (b). Com partículas microscópicas, como os fotões, não é isso que se obtém, mas sim uma imagem de interferência com alternância de bandas claras e escuras cujo perfil de intensidade é representado em (c), e é explicável em termos da natureza ondulatória da luz: as bandas claras são devidas a ondas que «chegam ao mesmo tempo» com picos que se adicionam, e as bandas escuras a ondas que chegam em oposição, com o pico de uma cancelando o «vale» de outra.
    A interferência é também obtida experimentalmente com luzes muito fracas, com os fotões a chegar um a um ao ecrã [16]. (Idem, se a experiência for realizada não com fotões mas com outras partículas). Repetindo o procedimento fotográfico anterior, obtêm-se imagens como a da figura 7, em que cada ponto é o impacto de um fotão. Também aqui a intensidade da luz na imagem de interferência descreve a distribuição da probabilidade da chegada dos fotões ao ecrã.



    Mas surge aqui uma dificuldade de interpretação do resultado da experiência. Dificuldade que não surgia classicamente quando se considerava apenas a natureza ondulatória da luz. Como é que cada fotão «sabe» por onde deve passar – fenda A ou fenda B --, de forma a, em termos de grandes números, criar o padrão de interferência e, portanto, a distribuição de probabilidade associada? Há quem diga que o fotão passa ao mesmo tempo pelas duas fendas; mas, como refere o Richard Feynmann em [iv], a noção clássica de «passar» não se aplica nesta situação; há quem defenda, como propôs Louis de Broglie, que os fotões são precedidos por uma onda («onda-piloto») que os orientam probabilisticamente na passagem pelas fendas; e, finalmente, Einstein e outros que sempre se bateram por uma interpretação realista (materialista) da MQ, sugeriram a existência de propriedades internas das partículas («variáveis escondidas locais») que determinariam por que fenda passavam os fotões. Note-se que se trata aqui apenas de uma dificuldade de interpretação. A MQ fornece regras de operação com os fotões (ou outras partículas) que explicam porque razão a anterior soma de probabilidades não é válida ([17]) e porque razão se obtém o padrão de interferência. E essas regras de operação fornecem resultados exactos.
    Um outro aspecto intrigante é este. Suponhamos que colocamos detectores, logo a seguir às fendas, que nos indiquem se um fotão passou através de qualquer delas. Pois bem, nesse caso, o padrão de interferência desaparece, e obtemos o padrão da figura 6a! Portanto, se não nos interessa saber por onde passam os fotões da luz, esta comporta-se como onda; se, pelo contrário, queremos saber por onde eles passam (comportamento de partícula), ficamos a sabê-lo mas o padrão de interferência desaparece. Podemos dizer que se trata aqui de mais uma manifestação do princípio da incerteza: não é possível medir simultaneamente bem a posição (por qual das fendas passa) e a velocidade (contribuição para o padrão de interferência) de um fotão ([18]). Mas continua sem resposta a pergunta: sem detectores, como é que o fotão «sabe» por qual das fendas deve passar? Embora haja trabalhos prometedores, que veremos à frente, a resposta ainda não é clara.
    Note-se que a aplicação de um detector corresponde a uma medição. Neste caso, medição de posição: por que fenda passou determinado fotão. A perda da interferência, corresponde à perda de informação sobre a velocidade (ver o que dissemos sobre difracção). Niels Bohr, pioneiro da MQ, propôs com outros (1927) uma interpretação positivista, dita de Copenhaga (IC): só é real o que é medido. As duas propriedades (posição e velocidade, ou, equivalentemente, comportamento de partícula e comportamento de onda) nunca eram reais ao mesmo tempo; eram ditas incompatíveis ou complementares.

A Experiência EPR

    Einstein, embora não contestando a correcção dos resultados obtidos pela MQ-IC, sempre se bateu por uma fundamentação realista da MQ. Juntamente com os físicos Podolsky e Rosen, escreveu um artigo célebre que defendia a incompletude da MQ ([v]).
    O artigo contém, logo no início, uma declaração materialista: «Qualquer consideração séria de uma teoria física deve ter em conta a distinção entre a realidade objectiva, que é independente de qualquer teoria, e os conceitos físicos com os quais a teoria opera. Estes conceitos pretendem estar em correspondência com a realidade objectiva, e por meio destes conceitos nós próprios formamos uma imagem da realidade». O artigo demonstra que a teoria da função de onda da MQ não pode ser completa («cada elemento da realidade física deve ter um elemento correspondente na teoria física») dado violar um critério de realidade física ([19]). A palavra «realidade» tem sido interpretada de várias maneiras pelos físicos. No artigo, os autores apresentam um critério suficiente ([20]) de realidade de uma quantidade de um sistema físico: «se pudermos predizer com inteira certeza (isto é, com probabilidade igual a um) o valor de uma quantidade física sem de qualquer forma perturbar o sistema». O «sem perturbar o sistema» assegura a objectividade da quantidade predita, dependente do objecto-sistema e não do observador. A predição com «inteira certeza» assegura que a teoria preditiva é determinístíca.
    Os argumentos do artigo vieram a traduzir-se na «experiência EPR» (dos apelidos dos autores), inicialmente só a nível conceptual, que se pode apresentar assim (figura 8):

Duas partículas do mesmo tipo, A e B, são emitidas por uma fonte em repouso. No momento em que são simultaneamente emitidas a velocidade total das partículas é nula. Existe um medidor da posição de A e outro medidor da velocidade de A. Se a posição de A é medida, a posição de B fica conhecida (fonte em repouso). Logo, a posição de B é um «elemento da realidade física», segundo a definição acima. Se a velocidade de A é medida, a velocidade de B fica conhecida (velocidade inicial total nula). Isto é, duas variáveis, ditas incompatíveis pela IC, são preditíveis com probabilidade=1. Logo, posição e velocidade são «elementos da realidade física». Ora, na MQ-IC a função de onda que representa o estado de um conjunto de partículas de posição definida não contém informação sobre as respectivas velocidades; a partir da função de onda todas as velocidades são igualmente prováveis. E vice-versa. Logo, à luz da experiência EPR, a descrição da função de onda é incompleta, o que contradiz a IC ao sustentar que a MQ-IC é completa e que variáveis incompatíveis não podem ser simultaneamente reais.


Teorema de Bell

    Einstein pensava que as partículas deviam possuir propriedades internas (variáveis escondidas locais, [21]) determinando o seu comportamento quântico. John Bell demonstrou em 1964, num famoso teorema ([22]), que uma tal teoria determinística levaria a correlações dos valores das propriedades da partículas A e B na experiência EPR não excedendo certo valor (desigualdade de Bell); ora tal valor máximo das correlações era violado pela leis da MQ. A desigualdade de Bell foi testada em muitas experiências do tipo EPR ([23]). É hoje largamente aceite que as experiências confirmaram a violação da desigualdade de Bell, embora subsistam interrogações. Quanto às leis da MQ, a violação da desigualdade de Bell só é explicável por uma de três razões: são não-determinísticas; são não-locais (a localidade é uma assunção da física de que o que é feito num local só afecta esse local); são ambas. A não-localidade tem sido interpretada como uma propriedade holista pela qual o que se mede em A tem efeitos instantâneos sobre o que se mede em B, com a transmissão de informação a velocidade superior à da luz! De facto, tal assunção anti-relativista é inútil como se explica em [ii].

Interpretações da Mecânica Quântica

    Existe um grande número de interpretações da Mecânica Quântica, com perspectivas diferentes sobre as questões do indeterminismo, da não-localidade e do «problema da medição». Têm surgido interpretações quer idealistas quer materialistas. Provavelmente não existe nenhum outro ramo do conhecimento da natureza tão fértil em reflexões no espectro idealismo-materialismo.
    Convém desde já ter em atenção o seguinte: não é pelo facto de uma interpretação ser materialista, ainda que dialéctica, que ela é correcta. Podemos ter muitas interpretações materialistas dialécticas alternativas e todas elas erradas. Não são os critérios filosófico-metodológicos que validam a ciência. Mas, pelo contrário, são os resultados validados da ciência que contribuem para o enriquecimento dos critérios filosófico-metodológicos. Em particular, o enriquecimento de o conceito de matéria que, como dizia Lenine, é inesgotável ([24]).
    O uso de critérios filosóficos como critérios absolutos (dogmas), que devem validar a ciência, corresponde a um erro dogmático muito em voga na URSS do tempo de Estáline (mas não só!), como neste trecho sobre a MQ de um discurso do político Andrei Jdanov, em 1947, perante cientistas soviéticos ([viii]): «As divagações kantianas dos modernos físicos atómicos burgueses leva-os a inferências sobre os electrões possuírem “livre arbítrio” [refere-se provavelmente ao electrão ‘saber’ por que fenda deve passar] e a tentativas de descrever a matéria como apenas a conjunção de ondas [refere-se à natureza ondulatória da matéria e talvez também à função de onda] e a outros truques diabólicos». Perversões do materialismo dialéctico como estas conduziram a que os físicos soviéticos tivessem de ser cautelosos para não serem acusados de «burgueses» e usarem «truques diabólicos»; com a consequência de que no período jdanovista a concepção materialista dialéctica não se enriqueceu; pelo contrário, empobreceu. E contribuiu fortemente para o descrédito do marxismo entre muitos intelectuais, não só na URSS como noutros lugares.

A Interpretação de Copenhaga (IC)

    É a interpretação idealista mais difundida e ensinada nas universidades, cujo principal proponente foi o físico Niels Bohr [25] da Universidade de Copenhaga. É uma interpretação idealista da variante positivista (ainda muito prevalente entre os físicos e nos meios académicos) que defende o seguinte: uma propriedade pode ser considerada real se tiver sido medida. Lembremo-nos que a tese essencial dos positivistas é também que não existe realidade objectiva fora das sensações (idealismo subjectivo). (Sensações são medições.) Em última análise, para os positivistas é o observador que cria a realidade!
    A IC usa as ideias de «sobreposição» de estados e da «complementaridade». Vamos ilustrá-las com um exemplo muito simples: vamos imaginar partículas girando sobre si próprias tal que em qualquer momento só podem girar em torno de uma ou outra de duas direcções perpendiculares, por exemplo, horizontal (H) e vertical (V). Tal propriedade (rotação) e tal restrição (direcções perpendiculares) existem no mundo das partículas microscópicas ([26]). As partículas progridem até embaterem num detector que determina em que sentido giram. Um físico da IC dirá: antes de chocar contra o detector não sabemos se um qualquer dos dois estados possíveis de uma partícula (rotação H ou V) é real; como não sabemos nada, teremos de admitir que ela está num estado de «sobreposição» das duas rotações; só quando choca contra o detector é que sabemos que um dado estado de rotação tem existência real. Na verdade, a famosa «sobreposição» proveio de uma técnica operativa da matemática usada na MQ que, na IC, se viu promovida a realidade objectiva, como no famoso gato de Schrödinger ([27]) que está em «sobreposição» de «vivo» e «morto»; se é que alguém sabe o que isso significa.
    A IC vai ainda mais longe no seu positivismo. Suponhamos (ver figura 9) que um fluxo de partículas com o mesmo tipo de rotação (qualquer que ele seja), entra num dispositivo, Tipo_1, que coloca as partículas nos estados de rotação H ou V. O dipositivo tem duas saídas: por uma, sai o fluxo (de partículas) H, pela outra, o fluxo V. A seguir, os dois fluxos entram noutros dispositivos, Tipo_2, que colocam as partículas a girar em torno de direcções de +45º e -45º; duas direcções também perpendiculares entre si, como é exigido. As partículas que saem dos dispositivos Tipo_2 chocam contra detectores, as suas rotações são medidas, e fica-se a saber em que sentido giram (+45º ou -45º). Pois bem, um físico da IC dirá: não se pode atribuir nenhuma realidade objectiva às rotações ±45º antes de terem sido medidas e, além disso, depois destas medições, como qualquer conhecimento da prévia rotação H/V foi destruído é incorrecto atribuir essa propriedade às partículas (mesmo sabendo da existência do dispositivo Tipo_1!). As propriedades «rotação H/V» e «rotação +45º/-45º» dizem-se complementares: ou se sabe uma ou se sabe outra, como no caso da posição e da velocidade dos fotões na difracção da luz.



    Note-se que a complementaridade, só por si, é equivalente ao princípio da incerteza e não invalida uma interpretação materialista da MQ ([28]). Mas os aderentes da IC usaram (e alguns ainda usam) a «complementaridade» num sentido positivista (só a medição confere realidade), avançando a partir daí para a negação da causalidade, a defesa da natureza subjectiva da função de onda, chegando ao ponto de transformar a «complementaridade» em princípio universal aplicável também à biologia, à psicologia, à sociologia, etc.
    Como interpretação positivista a IC enferma de todos os males desta corrente filosófica; alguns já indicados no nosso artigo anterior. Por exemplo, se as propriedades das partículas elementares só são reais depois de medidos – mesmo quando estas são efectuadas sem intervenção humana, como no caso dos choques contra o detector --, o que acontece aos átomos quando as propriedades das partículas que os constituem não são medidas? Por exemplo, a propriedade que confere estabilidade atómica? Deixam de existir? Certamente que não, caso contrário o universo não existiria. Mas o positivismo específico da IC coloca outro grande problema: o da recorrência infinita das medições (primeiro descrito por John von Neumann). É assim: temos uma partícula a girar; só sabemos em que sentido gira com um medidor M, talvez um aparelho com um ponteiro a indicar o sentido da rotação; mas o medidor M também está sujeito às leis quânticas, o seu ponteiro sofre da «sobreposição» de estados (indicar num sentido ou noutro) enquanto o seu estado não for medido; para tal usamos um medidor N, talvez uma célula fotoeléctrica que acusa a interrupção dum feixe de luz pelo ponteiro de M; mas o medidor N também sofre da «sobreposição» de estados (célula on ou off),..., etc. É óbvio que nem os físicos da IC acreditam nisto senão nunca realizariam experiências e medições.
    Existem outros aspectos controversos da IC, que se prestam a leituras idealistas e dos quais têm feito muito uso os místicos e charlatães, nomeadamente a questão do «colapso da função de onda». O leitor interessado pode consultar a nota [29].

A Interpretação Mística (IM)

    É a interpretação idealista filha directa da anterior: só quando o resultado da medição entra na consciência de alguém é que colapsa a função de onda e acaba a recorrência infinita de von Neumann. A consciência humana efectuaria isso. Por exemplo, o gato de Schrödinger está vivo ou morto quando existe um ser humano para o observar. Caso contrário continua (coitado!) em sobreposição de estados, zombie portanto. O principal proponente desta interpretação foi Eugene Wigner: teoria do domínio da mente sobre a matéria. O famoso astrónomo e místico confesso Arthur Eddington vai ainda mais longe: a MQ provou que existe a alma. Muitos dos disparates místicos assinalados na primeira secção acima são filhos directos da IM.

A Interpretação do Potencial Quântico (IPQ)

    Trata-se de uma interpretação proposta por David Bohm em 1952, que mantém alguns aspectos essenciais da IC, como a função de onda, mas numa teoria que procura ser materialista, explicando os fenómenos quânticos em termos de trajectórias normais de partículas que passam a ter realidade física. Para tal, usa uma nova ideia de variáveis escondidas, ditas não-locais, isto é, externas às próprias partículas (ao invés das variáveis escondidas locais de John Bell). As variáveis escondidas da IPQ correspondem a um «potencial quântico», matematicamente derivado da equação de onda de Schrödinger; potencial que estabelece uma relação energética entre a partícula em causa e todo o restante universo (holismo). A dificuldade com a IPQ é que o «potencial quântico» é holista sendo difícil ou impossível testar a sua existência física. Note-se que muitos místicos usam a ideia do «potencial quântico» de Bohm ([30]), mesmo sem a entenderem, simplesmente pelo seu holismo.

A Interpretação dos Universos Paralelos (IUP)

    Proposta por Hugh Everett e John Wheeler, a argumentação é a seguinte: o problema da medição deriva de exigirmos uma medição de um estado quântico; isso levanta o problema da recorrência infinita das medições que na IM só termina na mente humana. Podemos eliminar esta dificuldade se admitirmos que a detecção (o colapso da função de onda) nunca ocorre e cada estado de sobreposição na altura da medição simplesmente se desdobra em tantos universos paralelos quanto os estados em causa. Concretizando, para uma partícula que na figura 9 entra no dispositivo Tipo_1. No momento de entrar considera-se a partícula em «sobreposição» H/V. No dispositivo dar-se-ia a medição passando a partícula pela saída H, com colapso da função de onda na saída V; em alternativa, a partícula passa por V e o colapso dá-se em H. Pois bem, na IUP nada de colapso! Na altura em que o dispositivo «se prepara» para medir a partícula o universo divide-se em dois universos iguaizinhos, que só diferem porque num e na respectiva versão do dispositivo Tipo_1 a partícula passa por H, e no outro passa por V. Temos assim dois valores igualmente reais, só que em universos diferentes sem qualquer comunicação entre si. Dado existir um número extraordinariamente grande de estados quânticos no universo, a IUP conduz a um número inimaginável de universos paralelos ([31]), e sempre inimaginavelmente crescente.
    A IUP é obvimente esotérica. A frase «Na altura em que o dispositivo “se prepara” para medir a partícula» no estilo dos criadores da IUP não tem para nós qualquer sentido. Espantosamente, alguns consideram a IUP materialista por propor trajectórias reais e eliminar o recurso à consciência humana. Pondo de lado a violação de leis materiais (como é que um universo com dada energia se divide em cada instante num número incrivelmente grande de universos «iguais» sem violar a conservação da energia?), consideremos um humano que tem um pensamento despoletando transmissão iónica nas membranas sinápticas. Os iões obedecem às leis quânticas; logo, o pensamento pode despoletar, segundo a IUP, universos paralelos. Em cada universo (por exemplo, eu aqui e agora) o humano pode legitimamente dizer: «Aqui estou eu com a cópia do universo que criei»». Enfim, idealismo subjectivo que se poderia qualificar de solipsismo holista. A IUP é também muito apreciada pelos místicos ([32]).

A Interpretação das Histórias Consistentes (IHC)

    Proposta por R. Griffiths (1984) a IHC sustenta a realidade objectiva de várias «histórias» possíveis de partículas quânticas, desde que pertençam a uma família consistente de histórias. A consistência deve ser avaliada de acordo com o sistema em causa e deve, nomeadamente, corresponder a valores de probabilidades que façam sentido. Consideremos o exemplo muito simples de uma partícula que sai a girar segundo um eixo horizontal no dispositivo Tipo_1 da figura 8. Ao passar pelo dispositivo Tipo_2 há duas histórias consistentes: (H,+45º) com probabilidade ½; (H,-45º) com probabilidade ½. As duas histórias obedecem às leis da MQ; em particular, ½ + ½ = 1, o que faz sentido (a partícula de certeza fica a girar a +45º ou -45º). Se a partícula passasse por um dispositivo Tipo_1, teríamos também duas histórias consistentes, (H,H) e (H,V) com probabilidades respectivas de 1 e 0, com soma 1. Nenhum dispositivo existe que proporcione a família de histórias inconsistentes (H,H) e (H,+45º) com probabilidade conjunta, sem sentido, de 1+½.
    A «sobreposição» e a falta de realidade de propriedades não medidas, da IC, são descartadas. A «natureza» escolhe ao acaso, para uma partícula individual, uma de várias histórias consistentes com determinada probabilidade. Griffiths mostrou que a IHC fornece explicações realistas, objectivas, mas indeterminísticas (a nível individual). (Em particular na experiência EPR o que se passa em B nada tem a ver com as medições em A. As medições em A apenas afectam a nossa capacidade de predizer o resultado de uma medição em B. Não existe nenhuma acção ou transmissão de informação à distância. Existe simplesmente uma dada história consistente escolhida ao acaso entre várias possíveis.) Resta explicar qual poderia ser o conteúdo material da escolha ao acaso da «natureza».

A Interpretação da Decoerência (ID)

    Uma questão que se coloca é porque razão os fenómenos quânticos não se verificam no mundo macroscópico quotidiano. Em particular, há uma pergunta inescapável: a partir de que tamanho um corpo é macroscópico no sentido quântico? Ou, em alternativa: a partir de que tamanho é legítimo substituir a MQ pela física clássica?
    Comecemos por lembrar que o que dissemos acima para a difracção da luz ou para a experiência das duas fendas, tem lugar quando a luz é monocromática: um só tipo de oscilação electromagnética. Com a luz de uma lâmpada vulgar não se observa o fenómeno da interferência, dado que tal luz é constituída por muitas oscilações electromagnéticas, cujos desvios entre os respectivos picos são aleatórios. Tal luz é incoerente. Se tivermos uma luz de várias oscilações sincronizadas (o caso trivial é a luz monocromática), então temos coerência e observa-se o fenómeno da interferência.
    Os corpos macroscópicos são compostos por um enormíssimo número de átomos e/ou moléculas, logo de partículas elementares (fotões, electrões, protões, etc.). Todas na vizinhança umas das outras. Cada uma servindo de «detector» a outra. No universo macroscópico não existe a granularidade esparsa do mundo quântico, em que as partículas podem viajar «grandes» distâncias (face ao seu comprimento de onda) até embater com um «detector». Há sempre um elevadíssimo número de «choques» no mundo dos corpos quase contínuos do quotidiano, logo decoerência, logo determinismo e ausência do princípio da incerteza. Temos aqui um bom exemplo da propriedade dialéctica da transformação da quantidade em qualidade.
    Qual o tamanho e tempo necessário para se observar a decoerência (dando resposta à pergunta acima) depende das partículas em causa e da respectiva involvência. Um neutrino, por exemplo, pode atravessar a Terra sem interferir com nada. Já, por exemplo, uma partícula de poeira de raio 10-4 mm (100 micron) fica em decoerência – logo, num estado não quântico – num milésimo do milionésimo do segundo ([xi]). A ID é materialista e dialéctica.

Outras Interpretações

Existem muitas outras interpretações de menor interesse ([33]).

Contribuições Recentes

    Muitos físicos continuam a sentir-se desconfortáveis com as questões do indeterminismo e da não-localidade. Na conferência Quantum Physics and the Nature of Reality (A Física Quântica e a Natureza da Realidade) de 2011, foi colocada a seguinte questão aos participantes: «Com que frequência mudou para uma interpretação diferente?» Quarenta e dois porcento (42%) dos cientistas disseram que mudaram de opinião pelo menos uma vez, e um deles disse mesmo que «às vezes mudo de interpretação várias vezes por dia» ([34]).
    Trabalhos recentes têm vindo a pôr em causa certos aspectos da MQ que se julgava bem estabelecidos. Eis alguns:
-- Shahriar Afshar desenvolveu em 2004 uma versão da experiência das duas fendas que pôs em dúvida o princípio da complementaridade da IC. O trabalho, publicado em 2007, evidencia, na mesma experiência, comportamento de onda e de partícula de um feixe de fotões. Este trabalho tem suscitado debates acesos na comunidade científica ([35]).
-- O princípio da incerteza não proíbe, tanto como se julgava, a obtenção de conhecimento sobre propriedades «complementares», como a posição e velocidade de partículas. Com uma nova técnica, conhecida por «medição fraca», foi possível determinar a trajectória média de pequenos conjuntos de fotões de posição conhecida em experiências de duas fendas ([36], 2011). Aspecto interessante: as trajectórias médias obtidas reproduzem as predições da IPQ.
-- O físico Tony Legget desenvolveu uma versão da desigualdade de Bell para teorias não-locais mas que mantêm o determinismo. Experiências do tipo EPR, efectuadas para testar tais teorias ([37], 2007), mostraram a violação da desigualdade de Legget. Isto é, o mundo quântico parece de acordo com a não-localidade.
-- A violação da desigualdade de Bell não tem lugar apenas no mundo quântico. Experiências recentes ([38], 2013) mostraram que a desigualdade de Bell também tem lugar num sistema clássico, no qual fenómenos não-locais são causados por processos locais! Isto é, a condição estrita de não-localidade não é imperativa.

Balanço

-- O facto de subsistirem interrogações sobre a interpretação de leis do mundo microscópico não põe em causa a existência e as propriedades desse mundo como realidade material objectiva. Realidade material comprovada pelas partículas elementares, pelos átomos e pelo universo. Realidade objectiva, quer estejamos presentes ou não; quer efectuemos observações ou não; quer interferiramos com esse mundo ou não. Também não sabemos ainda o que é a gravidade. A existência dos gravitões não está comprovada; logo, não está explicado o móbil da acção à distância da gravidade, embora saibamos que não há matéria sem gravidade. Sabemos também que as maçãs caiem das árvores com movimento uniformemente acelerado, mesmo quando não estamos a olhar para elas. Mas não sabemos predizer quando uma cai se não interferirmos no «sistema».

-- A MQ só é indeterminística a nível individual. Para um conjunto de partículas a MQ é determinística (determinismo estatístico), obedecendo a distribuições de probabilidade que se podem calcular, e tendendo para os mesmos resultados realistas da física clássica para grandes números. Só não sabemos ainda o que subjaz ao indeterminismo individual. A designação de «acaso puro» que se lê em alguns trabalhos técnicos da MQ apenas exprime a nossa ignorância sobre o que é o indeterminismo individual da MQ.

-- O determinismo estatístico é causal, consistente com a velocidade subliminal de uma acção e a impossibilidade de influenciar o passado. Na física clássica a causalidade estava associada ao determinismo. A MQ enriqueceu a noção de causalidade com a admissão de leis estatísticas causais.

-- O princípio da incerteza só se aplica a certos pares de propriedades «complementares». Existem muitas outras propriedades que podem ser medidas simultaneamente sem interferirem uma com a outra, tais como a massa em repouso, a carga eléctrica, o momento magnético, e o momento angular das partículas elementares. Portanto, a MQ está longe de dizer que tudo é incerto ou holista, como apregoam os místicos e charlatães.

-- Mesmo descontando o efeito da decoerência, a incerteza quântica não se verifica com objectos macroscópicos. O comprimento de onda de De Broglie de uma bala real disparada por uma arma é da ordem de 100.000.000.000.000.000.000 vezes menor que o tamanho de um electrão. Isto é, é da ordem de 0,000.000.000.000.000.000.000.000.000.000.000.01 metros, ou seja, da ordem do menor comprimento possível no universo, o comprimento de Planck ([39]). Quando místicos e charlatães transpõem as leis quânticas para o mundo macroscópico e colocam corpos do quotidiano em «incerteza» não sabem do que estão a falar. Abusam da MQ.

-- O avanço da ciência sempre varre para o caixote do lixo os «espíritos» e «divindades» que  subsistem numa dada época: a Terra como centro do universo, as divinas esferas celestes, o «fiat lux» divino, a criação do mundo a 23 de Outubro de 4.000 anos a.C. (declaração do bispo James Ussher baseada na Bíblia), o criacionismo das espécies vivas, a consciência, a alma, etc., etc. Em vez de «espíritos» e «divindades», meras designações de ignorância, o conhecimento e praxis humanas revelam passo a passo causas materiais, objectivas. Podemos estar certos que o mesmo acontecerá na MQ, traduzindo-se em novos passos na elucidação material do indeterminismo e da não-localidade ([40]).

Notas

[1] Reproduzimos aqui citações de cientistas incluídas por Lenine na sua obra (e nela dadas com referências completas). Herz (Mechanik): «Se inquirirmos sobre a razão real pela qual a física actual prefere exprimir-se em termos de energética, podemos responder que é porque dessa forma melhor evita falar sobre coisas de que conhece muito pouco... Claro, nós estamos agora convencidos de que a matéria ponderável consiste em átomos; e em certos casos temos ideias bastante definidas da grandeza desses áomos e dos seus movimentos [...]». Conforme faz notar Lenine, Herz revela aqui que não lhe passava pela cabeça separar a energia da natureza atómica, corpuscular, da matéria. Boltzmann (Populäre Schrift): «aqueles que acreditam que o atomismo foi eliminado pelas equações diferenciais [de Maxwell] não conseguem ver a floresta por trás das árvores... nós não podemos duvidar que esta imagem do mundo (expressa em equações diferenciais) deve de novo, pela sua natureza, ser uma imagem atómica [...]» e «[Vubel com a concordância de Boltzmann] logo à partida toma o ponto de vista de que os fenómenos de electricidade são determinados pela interacção e movimento de entidades atómicas, os electrões». Ramsay (Essays, 1908): «Perguntaram-me muitas vezes: “Mas não é a electricidade uma vibração? Como pode a telegrafia sem fios ser explicada pela passagem de pequenas partículas ou corpúsculos?” A resposta é: “A electricidade é uma coisa; são esses minúsculos cospúsculos, mas quando eles deixam um objecto, uma onda, como uma onda de luz, dispersa-se através do éter, e esta onda é usada pela telegrafia sem fios». Espantosa previsão materialista de Ramsay! Embora a proposta dos quanta de luz fosse feita por Einstein em 1905, só nos anos vinte a realidade dos fotões associados não só à luz mas a todas as radiações electromagnéticas (como na telegrafia sem fios) ficou bem estabelecida. (Note-se que Max Planck, habitualmente considerado o pai da MQ, inventou a palavra «quantum» mas não estava nada seguro da natureza corpuscular das radiações. Ver [i].)
[2] Há quem prefira usar, e com razão, a designação «Física Quântica». Mantemos a designação clássica e mais popularizada de «Mecânica Quântica».
[3] A MQ permitiu, por exemplo, determinar teoricamente valores de grandezas físicas com espantosa precisão: o momento magnético do electrão foi calculado como 1,00115965246. O valor experimental veio a ser medido como 1,001159652193 ± 0,000000001. Isto é, a predição teórica afastou-se da medição experimental com um desvio de uma parte em 10 biliões!
[4] O holismo é a concepção filosófica que sustenta que tudo que existe no universo tem de ser visto como um todo. Opõe-se à concepção física do reducionismo, de que há partes do todo que podem ser analisadas separadamente. O holismo é vulgarmente usado para defender a existência de uma «mente universal», de um «ser universal», da «natureza como um todo», do antropocentrismo e de Deus.
[5] Contrariamente ao que muita gente julga que Einstein disse na Teoria da Relatividade Especial, esta não é sobre um suposto relativismo das leis da Física, sobre supostas alternativas das leis da física. Muito pelo contrário. A teoria sustenta a invariância das leis da física em todos os sistemas de referência inerciais.
[6] Este filósofo-epistemólogo finaliza a sua prelecção com esta preciosidade: «Então, os geólogos do futuro, os sábios em geologia, os geólogos; através do domínio quântico-cognitivo de cada elétron em cada átomo de cada molécula, poderá pensar a montanha, (pensar por ela, visto que seus componentes geológicos compõem também o corpo do pensador a nível molecular, onde se organizam em forma de mente humana) e sentenciar: Ergue-te e precipita-te ao mar!».
[7] Victor Stenger destacou-se pelo seu trabalho pioneiro na astronomia dos neutrinos e dos raios gama de muito alta energia. No seu livro ([ii]), ao memo tempo que expõe em termos simples a MQ, faz uma desmontagem exaustiva dos teses idealistas e místicas. Stenger defende uma visão materialista das ciências da natureza. Diz, por exemplo, no primeiro capítulo: «Quer queiramos quer não, a conclusão mais económica que se retira do repositório completo dos dados científicos é a de que somos seres materiais compostos de átomos e moléculas, estruturados por processos largamente dependentes do acaso da auto-organização e da evolução, que nos dotou do comportamento complexo associado às noções de vida e de mente. Esses dados não fornecem qualquer motivo para postular forças transcendentais, vitais ou espirituais. A matéria é suficiente para explicar tudo que até agora descobrimos com os mais poderosos instrumentos científicos». Critica também o positivismo, denunciando o seu subjectivismo e citando a propósito Einstein: «a Lua está lá mesmo quando ninguém olha para ela». Faz remontar correctamente a interpretação positivista da MQ a David Hume, Auguste Comte e Ernst Mach.
[8] Para a luz visível o orifício é da ordem de 0,5 mm.
[9] Quando dizemos «onda de electricidade» e «onda de magnetismo» queremos dizer que existem duas entidades, «campo eléctrico» e «campo magnético» cujas grandezas oscilam no tempo e no espaço mais ou menos como as ondas de água num tanque. Os «campos» são entidades vectoriais. Podemos, por exemplo, representar uma onda eléctrica num certo ponto do espaço como uma seta (um vector) cujo comprimento (grandeza) oscila periodicamente à medida que a onda se propaga no espaço; o quadrado da grandeza representa a energia eléctrica nesse ponto. Se for um ponto de uma antena, tal energia eléctrica traduz-se na capacidade de fazer vibrar electrões da antena nesse ponto (captação da onda).
A intensidade da luz que vemos no ecrã das figuras 2 e 3 é proporcional, em cada ponto, à energia eléctrica. No tempo de Maxwell não se sabia muito bem o que era, de facto, a electricidade e o magnetismo. Falava-se em campo eléctrico e magnético para representar as acções à distância da electricidade e do magnetismo, e eram percebidos como manifestações de um certo tipo de energia. Só muito mais tarde se descobriu que todas as manifestações de campo são mediadas por partículas de natureza corpuscular. É o trânsito de partículas com velocidades que não excedem a da luz que é responsável pela acção à distância do respectivo campo. Note-se, contudo, que os gravitões que supostamente devem mediar o campo gravítico ainda não foram descobertos.
[10] É habitual apresentar este resultado substituindo velocidade por momento (linear) ou quantidade de movimento, o produto da massa pela velocidade. Esta substituição é aqui irrelevante. O valor da constante a é extremamente pequeno e está relacionado com a chamada constante de Planck, uma das constantes básicas da natureza. Apesar de extremamente pequena, no mundo microscópico o fenómeno da incerteza torna-se perfeitamente perceptível e não negligenciável.
[11] O princípio da incerteza aplica-se a outros pares de propriedades, notavelmente à energia e ao tempo.
[12] Quando se lança uma moeda ao ar o resultado parece depender do acaso. Todavia, se soubermos as dimensões e massa da moeda, como é dado o impulso inicial e o seu valor, a resistência do ar, a atracção da gravidade, a fricção no solo, etc., poderíamos, em princípio, prever como cai a moeda. Quase ninguém o faz porque as condições são muitas, as equações intrincadas e o resultado muito sensível a pequenas variações das condições do problema. Para efeitos práticos, o resultado pode ser tratado como proveniente do acaso. O mesmo se diz para os fenómenos ditos de caos: são deterministas e sabemos quais as leis que os regem. Simplesmente, dada a grande sensibilidade dessas leis a desvios de condições iniciais, o resultado pode frequentemente ser tratado como proveniente do acaso (ver [iii]).
[13] O indeterminismo individual com determinismo colectivo não se verifica apenas nos fenómenos quânticos. Verifica-se também em fenómenos da física clássica, como ilustra a máquina de Galton: http://ww2.odu.edu/~eneukrug/galton.htm
[14] No início da década de 1930, Heisenberg, Max Born e Pascual Jordan desenvolveram uma mecânica matricial para fundamentar teoricamente a MQ. Schrödinger inventou uma mecânica ondulatória com a mesma finalidade. Ambas as abordagens conduzem aos mesmos resultados, mas a abordagem de Schrödinger da função de onda é mais popular.
[15] Numa configuração possível da experiência o ecrã poderá estar a 1 metro da fonte de luz e o anteparo a meia distância, com os furos distantes de 0,5 mm.
[16] O facto de a interferência se verificar nestas experiências de «um a um» invalida quaisquer explicações de que a interferência se deveu a «choques de trânsito» entre as partículas ao passar pelas fendas.
[17] De facto, a regra de operação quântica determina que a soma não pode ser feita aqui com quantidades escalares (o que levaria à simples soma de curvas como na figura 6a), mas sim com vectores.
[18] A experiência das duas fendas é um de muitos exemplos de como se podem obter resultados completamente diferentes em experiências regidas por leis quânticas, dependendo do que se mede.
[19] Já vimos que muitas vezes os físicos usam «realismo» como sinónimo de «materialismo» ou como apenas um dos aspectos do materialismo: a existência de uma realidade objectiva, independente do observador.
[20] O critério é suficiente na medida em que se for satisfeito a realidade física é considerada um facto. Os autores do artigo EPR referem que para os fins que tinham em vista não precisaram de apresentar uma definição exaustiva de realidade física.
[21] Note-se que a ideia das variáveis escondidas não é nova na física. Por exemplo, durante séculos os átomos e moléculas nunca tinham sido vistos e a sua existência comprovada. Boltzmann baseou-se nestas «variáveis escondidas» para construir a sua mecânica estatística.
[22] Há muitas demonstrações do teorema de Bell. A mais simples que encontrámos aparece em [ii]. Simples e interessante é também a de [vi].
[23] Experiências com partículas «entrelaçadas», isto é emitidas por uma fonte que impõe uma determinada condição aos pares de partículas (velocidade total nula na experiência acima e, em experiências reais, spin total nulo no caso de electrões ou polarizações ortogonais no caso de fotões. O balanço experimental (nomeadamente depois das sofisticadas experiências da equipa de Alain Aspect desde 1986) confirma a violação da desigualdade de Bell.
[24] Na secção 2 («A Matéria Desapareceu») do capítulo 5 (A Revolução Recente das Ciências da Natureza e o Idealismo Filosófico) da obra Materialismo e Empiriocriticismo, Lenine diz o seguinte: «o electrão é inesgotável tal como  átomo, a natureza é infinita, mas ela existe infinitamente». Este aspecto da inesgotabilidade da matéria (no tempo de Lénine, corporizada em átomos e electrões) é devidamente apreciado na sua perspicácia no artigo [vii].
[25] Note-se que o próprio Bohr oscilou muito nas suas opiniões. Durante um certo período o seu colaborador, o físico e marxista Leon Rosenfeld, chegou a afirmar que a teoria de Bohr era materialista dialéctica. Ver [ix].
[26] Os mais familiarizados com a física entenderão de imediato as partículas a girar como partículas elementares com momento angular (spin) não nulo. A experiência também pode ser representada em termos de luz polarizada.
[27] O leitor interessado neste gato zombie, muito do agrado das interpretações idealistas, pode consultar a wikipedia: http://en.wikipedia.org/wiki/Schr%C3%B6dinger's_cat . O próprio Schrödinger apresentou o paradoxo do gato por insatisfação com o irrealismo da MQ.
[28] O cientista soviético Vladimir A. Fock (1898-1974) argumentou bem este ponto de vista, mostrando não existir diferença essencial entre a noção de «complementaridade» e o princípio da incerteza de Heisenberg. Entretanto, quando os proponentes da IC tiraram conclusões da «complementaridade» que levavam à negação da causalidade, à liquidação do materialismo e à natureza subjectiva da função de onda, Fock abandonou a noção de complementaridade em 1951: «Inicialmente o termo complementaridade significava a situação que provinha directamente da relação de incerteza; a complementaridade dizia respeito à incerteza na medida da coordenada e da quantidade de movimento... e o termo «princípio da complementaridade» era entendido como sinónimo da relação de Heisenberg. Muito cedo, contudo, Bohr começou a ver no seu princípio da complementaridade um certo princípio universal... aplicável não só à física, mas até mesmo à biologia, psicologia, sociologia e a todas as ciências... Na medida em que o termo “princípio da complementaridade” perdeu o seu significado original é preferível abandoná-lo».
[29] A função de onda de Schrödinger é uma ferramenta matemática útil, que permite operar com as variáveis de estado quânticas e calcular as respectivas probabilidades. Não é a única ferramenta, conforme assinalámos em [14]. Consideremos a difracção de fotões por uma fenda atrás da qual temos dois detectores, A e B, como na figura 10.

Fig. 10

Na IC diz-se que quando um fotão é detectado em A a função de onda que descreve a posição e velocidade ([10]) do fluxo de fotões, que passa pela fenda, colapsa em B. Estar-se-ia perante uma acção à distância pela qual, quando um fotão é detectado em A, envia um sinal para colapsar a função de onda em B. Como o colapso é instantâneo o envio teria de ser feito a uma velocidade infinita! Einstein chamou-lhe de «acção fantasmagórica à distância». Na verdade, nunca se provou a existência real da função de onda. (O efeito Aharonov-Bohm (1959) baseado na experiência das duas fendas parecia mostrar a existência real da função de onda, mas esse efeito foi depois (1991) explicado em termos da física clássica.) Além disso, nem a equação de Schrödinger nem a teoria de Heisenberg prevêem o colapso da função de onda. Tem havido tentativas de construir teorias com um mecanismo prevendo o colapso da função de onda; nenhuma foi bem sucedida.
[30] Que a teoria do americano Bohm tenha sido abraçada pelos místicos é sumamente irónico. De facto, David Bohm, considerado um dos maiores físicos teóricos do século XX, era marxista e comunista. Foi perseguido nos EUA no período mccarthista, tendo emigrado para o Brasil e Inglaterra (trabalhou aí com Basil Hiley, outro proponente da IPQ).
[31] Num cálculo por alto e considerando apenas sobreposições de dois estados, as estimativas variam entre 10^10^12 e 10^10^115. (10^10=1010=10.000.000.000. Logo, 10^10^12 corresponde a 10.000.000.000 muliplicado por si próprio 12 vezes!) Curiosamente os defensores da IUP parecem desprezar o cômputo para sobreposições de muitos mais estados, como na experiência das duas fendas com uma infinidade de valores de v e x.
[32] Os escritores de ficção científica também gostam da IUP. Estranhamente, embora a IUP não tenha grande aceitação na comunidade científica, os físicos Stephen Hawking e Steve Weinberg aceitam-na. Alastair Rae diz no seu livro [x] que em certos universos alguns humanos podem ver a «sociedade construída da maneira que desejariam porque o seu partido favorito vence todas as eleições»! Que maravilha!
[33] A Interpretação do Colapso Espontâneo (ICE) dos italianos Ghirardi, Rimini e Weber (1985) resolve o problema da medição inserindo na teoria da IC uma probabilidade não nula mas extremamente pequena das partículas saírem espontaneamente da «sobreposição» de estados (colapso espontâneo da função de onda); para uma ou poucas partículas essa probabilidade é tão pequena que não faz qualquer diferença, mas como o medidor é constituído por um número elevado de partículas quase de certeza sai da «sobreposição». Tirando o problema da medição a ICE é tão idealista quanto a IC.
A Interpretação Estatística (IE) foi proposta na década de 1930 pelo físico soviético D. I. Blokhintsev. Com o objectivo de manter o realismo, defendia que a MQ só era aplicável a grandes números de partículas, fornecendo resultados estatísticos como a trajectória média das partículas, e que era inaplicável às partículas individuais, isoladas. A IE contém dificuldades explicativas a um nível fundamental (ver [viii]) e é hoje pouco seguida.
Interpretações quantum-informacionais (não confundir com o uso legítimo da teoria da informação na análise de fenómenos quânticos) foram desenvolvidas por J.A. Wheeler (pémio Nobel) a partir dos anos setenta. Caracterizam-se pelo seu idealismo exacerbado, místico, propondo um mundo não material em que a única coisa que existe é «informação». Numa versão destas interpretações o mundo não existe mas apenas o conhecimento que um observador tem do mundo. É hoje uma corrente em voga.
[34] Kate Becker, For the Camera, 01/24/2013, "Quantum physics has been rankling scientists for decades".
[35] A experiência da Afshar é bastante bem descrita em http://en.wikipedia.org/wiki/Afshar_experimenthttp://en.wikipedia.org/wiki/Afshar_experiment . Há quem diga que a experiência não põe em causa o princípio da complementaridade, como A. Drezet (Wave Particle Duality and Afshar Experiment, Progress in Physics, pp. 57-64, 2011); mas este autor concentra a sua atenção no que acontece a um único fotão, fugindo, quanto a nós, à mensagem essencial de Afshar. Quanto a E. Flores e J. De Tata (Complementarity Paradox Solved: Surprising Consequences, Foundations of Physics, 40:11, pp. 1731-1746, 2010) admite a possibilidade de violação da complementaridade, compatível com a IPQ. Abstemo-nos de comentar outros trabalhos que claramente assumem a tese na hipótese.
[36] Sacha Kocsis et al., Observing the Average Trajectories of Single Photons in a Two-Slit Interferometer, Science, 232:1170-1173, 2011.
[37] Alain Aspect, To Be Or Not To Be Local, Nature, vol. 446, pp. 866-867, Nature, 2007.
[38] Robert Brady, Ross Anderson, Violation of Bell’s Inequality in Fluid Mechanics, Physics, arXiv:1305.6822 [physics.gen-ph], 2013.
[40] Muitos físicos pensam que se irá assistir a uma nova revolução quântica com contribuição na elucidação material do indeterminismo e da não-localidade.

Referências
Apenas referimos livros e artigos não técnicos ou com poucas tecnicalidades que se podem omitir na leitura.

[i] Helge Kragh, Max Planck: the reluctant revolutionary, 2000, physicsworld.com.
[ii] Victor J. Stenger, “The Unconscious Quantum. Metaphysics in Modern Physics and Cosmology”, Prometheus Books, 1996. Apesar de ser de 1996 o livro continua bastante actual nas matérias que nos interessam. Depois de 1996 ganhou maior desenvolvimento a IHC e a abordagem da decoerência, com novos resultados no sentido materialista dialéctico. O autor é materialista.
[iii] Joaquim Marques de Sá, O Acaso. A Vida do Jogo e o Jogo da Vida, Gradiva, 2006.
[iv] Richard Feynmann, QED. A Estranha Teoria da Luz e da Matéria, Gradiva, 1988. Um livro excelente para uma larga audiência. Feynmann dizia que a experiência das duas fendas continha todos os mistérios da MQ.
[v] Einstein A, Podolsky B, Rosen N “Can the Quantum Mechanical Description of Reality Be Considered Complete?”, Physical Review 47, 1935.
[vi] Bernard d’Espagnat, The Quantum Theory and Reality, Scientific American, 1979, pp. 158-177. d’Espagnat tem uma visão mística, espiritualista, da MQ.
[vii] The philosophic legacy of V. I. Lenin in the struggle for materialism in science, Polymer Mechanics, vol. 6:2, pp. 177-178, Springer-Verlag, 1970.
[viii] Loren R. Graham, Quantum Mechanics and Dialectical Materialism, Slavic Review, Vol. 25, No. 3 (Sep., 1966), pp. 381-410.
[ix] Anja Skaar Jacobsen, Léon Rosenfeld’s Marxist defense of complementarity, Historical Studies in the Physical and Biological Sciences, vol. 37, pp. 3-34,University of California, 2007.
[x] Alastair Rae, Quantum Physics. Illusion or Reality?, Cambridge University Press, 2nd edition, 2004. Um livro interessante, destinado a uma larga audiência, que expõe de forma simples os aspectos estranhos da MQ. O autor mostra-se simpático para as interpretações idealistas.
[xi] Guido Bacciagaluppi, The Role of Decoherence in Quantum Mechanics, Sanford Encyclopedia of Philosophy, April 16, 2012, http://plato.stanford.edu/entries/qm-decoherence/
[xii] Albert Einstein, Leopold Infeld, A Evolução da Física: De Newton até à Teoria dos Quanta, Edição “Livros do Brasil”, data de edição não mencionada (a edição original da Cambridge University Press é de 1938). Um bom livro introdutório para uma larga audiência.
[xiii] George Greenstein, Arthur G. Zajong, The Quantum Challenge, Jones and Bartlett Pub., 1997. Um livro não muito técnico (e cujas tecnicalidades se podem saltar) que complementa bem [x], dedicando atenção à IPQ, IHC e ID.
[xiv] Paul Davies, J. R. Brown, O Átomo Assombrado, Gradiva (ed. original de 1986). Um livro muito divulgado mas, quanto a nós, um mau livro. Vale apenas pelas entrevistas. A posição, numa fachada de pseudo-neutralidade, é de facto pró-idealista-mística. O livro, por exemplo, não fala na IHC e ID, mas presta grande atenção à IM. Paul Davies é defensor de que não existe matéria.
[xv] G Ghirardi, Sneaking a Look at God’s Cards, Princeton University Press, 2005. Uma exposição interessante e pouco técnica de uma grande quantidade de tópicos da MQ. O autor, um dos proponentes da ICE ([33]), abraça abertamente o positivismo, aparentemente sem reparar que se trata de uma variante de idealismo. Aqui e além omite o que não suporta o seu ponto de vista (por exemplo, sobre o colapso da função de onda, [29]). Diz também, erroneamente, que o materialismo «tende a negar qualquer natureza específica dos processos mentais». De facto, os materialistas reconhecem a «natureza específica dos processos mentais». Específica, mas material, baseada nas «células cinzentas».
[xvi] Harry Nielsen, Against the Copenhagen interpretation of quantum mechanics – in defence of Marxism, 13 July 2005, http://www.marxist.com/quantum-mechanics-copenhagen130705.htm . Artigo com algum interesse, descontando exageros, alguma demagogia e a utilização abusiva da «dialéctica» como explicação que serve para tudo.
[xvii] Peter Byrne, The Many Worlds of Hugh, Scientific American, Dezembro 2007.
[xviii] Pete Mason, Is quantum mechanics materialist?, Socialism Today, 127, 2009, http://www.socialismtoday.org/127/quantum.html . Uma interessante revisão de um livro -- Manjit Kumar, Quantum: Einstein, Bohr and the great debate about the nature of reality, Icon Books, 2008 – feita por um físico marxista. Mason critica justamente Kumar por pretender impor à força à MQ uma visão materialista ultrapassada. Cita, a propósito, o trabalho [v] de Einstein: «os elementos da realidade física não podem ser determinados a priori por considerações filosóficas, mas devem ser encontrados por um apelo aos resultados de experiências e medições». Confrontar com o que dissemos no início da secção de «Interpretações».

[xix] Jürgen Renn, Schrödinger and the Genesis of Wave Mechanics, Max Planck Institute for the History of Science, 2013. Um bom relato sobre os primórdios da MQ. Schrödinger apoiou Einstein na busca de uma interpretação realista da MQ.