Mudam-se os tempos,
mudam-se as vontades,
Muda-se o ser, muda-se a confiança; Todo o mundo é composto de mudança, Tomando sempre novas qualidades. Continuamente vemos novidades, Diferentes em tudo da esperança; Do mal ficam as mágoas na lembrança, E do bem, se algum houve, as saudades. O tempo cobre o chão de verde manto, Que já coberto foi de neve fria, E em mim converte em choro o doce canto. E, afora este mudar-se cada dia, Outra mudança faz de mor espanto: Que não se muda já como soía. |
Times change, as do our wills,
One's being and assurance change;
All the world is made of change, Forever attaining new qualities.
We constantly see new things
Differing in all from our hopes;
Of evil, we remember the pain,
And of good, if any, the yearning.
Time covers the ground with a green cloak,
Once covered by freezing snow,
Converting my sweet songs into laments.
And besides these endless changes,
A more astonishing change it does:
It does not change anymore as it used to do.
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Soneto de Luís
de Camões (séc. XVI)
Ouvir a versão
cantada do soneto, por José Mário Branco, em:
Listen to the song version of the sonnet, by José Mário Branco, in:
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Na canção o
seguinte refrão foi acrescentado:
E se todo o
mundo é composto de mudança
Troquemos-lhe as
voltas que ainda o dia é uma criança.
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The following
refrain was added to the song:
And if all the world is composed of change
Let’s change its pace since the day is still young.
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A dialéctica dos antigos gregos
O soneto acima de Luís de Camões transmite, de
forma brilhante, o pensamento dialéctico dos antigos filósofos gregos. Estes impressionaram-se
pelo facto de se encontrar por toda a parte
a mudança e o movimento. O filósofo pré-socrático Heráclito de Efeso (535 a.C.-475
a.C.), chamado o «pai da dialéctica», considerava que «tudo flui», «tudo se
move». Por outras palavras, segundo Heráclito não é possível conceber-se a
matéria em repouso absoluto. A matéria está sempre em movimento e mudança, algo
que cada vez mais a física moderna comprova. É claro que a Heráclito faltava o
conhecimento científico que agora temos. As suas opiniões eram simples
conjecturas luminosas, baseadas nas observações do mundo que o rodeava. É
famosa a sentença atribuída a Heráclito de que «ninguém entra no mesmo rio duas
vezes» exprimindo a constante mudança da natureza. Heráclito também defendia a
«unidade dos contrários», afirmando que «o caminho para cima e o caminho para
baixo são o mesmo caminho». Dizia ainda que o devir, a mudança que
acontece em todas as coisas é sempre uma alternância entre contrários: coisas
quentes esfriam, coisas frias aquecem; coisas húmidas secam, coisas secas humedecem,
etc. A realidade surge, então, não em uma de duas alternativas isoladas, já que
ambas são parte de uma mesma realidade, mas sim assente na mudança, por exemplo
«a doença faz da saúde algo agradável e bom», ou seja, se não houvesse a doença
a saúde (o contrário) não poderia ser valorizada.
É neste sentido, da não existência de
categorias fixas e imutáveis numa natureza em perpétua evolução, que
consideramos a «dialéctica». Existem outros significados do termo que aqui não
nos interessam. De uma forma muito genérica podemos dizer que a dialéctica se
interessa pela dinâmica evolutiva do universo, incluindo, no nosso planeta
Terra, a evolução dos seres vivos e a história e relações internas das
sociedades humanas.
O materialismo metafísico
Com o nascimento das ciências da natureza a
partir do século XVII a tradição do pensamento dialéctico extingue-se. E
extingue-se por uma boa razão: todos os pioneiros nas diversas áreas do
conhecimento da natureza -- física (Newton, Galileu, etc.), astronomia
(Galileu, Kepler, Herschel, etc.), química (Boyle, Lavoisier, Scheele, etc.),
zoologia e botânica (Lineu, Buffon, Jussieu, Mendel, etc.), anatomia (Vesalius,
etc.), geologia (Saussure, Hutton, etc.), paleontologia (Alberto da Saxónia,
Cuvier, etc.) – viram-se obrigados a desenvolver o conhecimento da sua área de
estudo decompondo fenómenos e objectos complexos em componentes simples,
categorizáveis, catalogáveis, obedecendo a leis determinísticas e inalteráveis.
Tudo isto conduziu a concepções de imutabilidade
e de existência de «absolutos» na natureza. O espaço e o tempo eram
considerados absolutos, dados para todo o sempre e independentes da realidade
material. O magnetismo, separado da electricidade. As órbitas dos corpos
celestes, inalteráveis. Os seres vivos, sempre os mesmos e isolados uns com os
outros. Continentes e oceanos, formados na origem da Terra e mantendo-se
praticamente inalterados, aparte pequenas variações de detalhes.
Esta atitude metafísica da ciência permaneceu
até meados do século XIX. Usamos aqui o termo «metafísica» (um termo com muitos
significados dentro da filosofia) como designando a atitude anti-dialéctica. A
atitude de quem só concebe os objectos e fenómenos como categorias
imutáveis, independentes e separadas umas das outras. Notemos o «só»: na
atitude dialéctica não há nada de errado em estudar fenómenos e objectos
isoladamente; desde que estejamos conscientes das suas inter-relações e da sua
dinâmica evolutiva a cujo estudo haverá que proceder.
Conforme diz Politzer ([1]), a atitude
metafísica encontrava-se «por exemplo, no estudo da zoologia e da botânica. Porque
não se conheciam bem, classificaram-se, primeiro, os animais em raças, espécies, pensando que entre elas
não havia nada de comum e que fora sempre assim [...] É daí que vem a teoria a que
se chama “fixismo” (que afirma, contrariamente ao "evolucionismo", que as espécies animais foram sempre o que são, que nunca evoluíram)».
Uma área do conhecimento que teve grande
influência na atitude metafísica foi a mecânica. A mecânica dominou durante
muito tempo o pensamento dos físicos [2]. No século XVIII e até meados do
século XIX, físicos e matemáticos, como por exemplo Lagrange e Laplace,
desenvolveram a mecânica e, em particular, a mecânica celeste, erguendo-a a um
nível muito elevado de sofisticação, que permitiu, nomeadamente, calcular as
órbitas dos planetas conhecidos com grande precisão. A culminar este enorme
esforço a mecânica celeste conseguiu prever a existência, a massa e a
órbita de um planeta na altura desconhecido – Neptuno – a partir das
perturbações que esse ainda desconhecido planeta induzia na órbita de Urano.
Uma espantosa proeza que solidificava a ideia de imutabilidade do universo. O
materialismo -- que é sempre baseado na ciência --, era, muito naturalmente,
dominado nessa época pelo pensamento metafísico,
mecanicista.
O universo surgia, assim, como um grande
relógio, um sistema mecânico posto em movimento por Deus na origem do tempo. As
suas mudanças eram cíclicas e perfeitamente conhecidas, não se lhe aplicando o
que dizia Luís de Camões: «Que não se muda já como soía.»
As descobertas científicas a partir de meados do século XIX
A partir de meados do século XIX começaram a
surgir uma série de descobertas científicas que vieram enterrar definitivamente
a atitude metafísica, imobilista e fixista da ciência. Vejamos algumas,
sucintamente:
A termodinâmica e a transformação da energia
Sadi Carnot (1824), Clausius (1850), e outros,
estudam as transformações de energia calorífica em energia mecânica e
vice-versa. A motivação destes estudos, ditos de termodinâmica, que prosseguem
ao longo de todo o séc. XIX, constitui uma boa ilustração da influência do
desenvolvimento das forças produtivas (neste caso, as máquinas a vapor da
primeira revolução industrial) no progresso científico. Mais tarde, outros
tipos de transformação de energia são descobertos, como a transformação de
energia electromagnética em calor e em movimento. Não é mais possível
considerar isoladamente as diferentes formas de energia. No universo, elas
estão sempre a converter-se uma na outra.
O electromagnetismo
Faraday (1840), Maxwell (1861), e outros,
descobrem a relação entre campos eléctricos e magnéticos em movimento. A luz e
outras radiações surgem como oscilações de campos electromagnéticos. A
electricidade e o magnetismo deixam de estar separados. Mais tarde, com
Einstein (1905), a interdependência entre campos eléctricos e magnéticos é
ainda explicada a um nível mais profundo, relativista. Faraday, nos seus
trabalhos de electroquímica, mostra também a existência de relações profundas
entre a física e a química.
A teoria atómica
Praticamente até aos trabalhos de Dalton
(1799) a existência de átomos era pura conjectura. Só com Dalton, Thomson
(1802), Rutherford (1911), e outros, nasce a teoria atómica e a existência de
átomos e moléculas é comprovada. (Actualmente, é inclusive possível ver alguns
deles). A tabela periódica dos elementos é descoberta por Mendeleiev (1869),
contribuindo para a fusão entre física e química. Além disso, os átomos e suas
partículas elementares (electrão, protão, etc.) permitem pela primeira vez uma
visão integrada do universo, do mundo microscópico ao macroscópico:
partículas à
|
átomos à
|
moléculas à
|
planetas, estrelas à
|
galáxias
|
|
polímeros, proteínas à
|
células à
|
seres vivos
|
Esta visão da interligação de todas as
partes constituintes do universo é também característica da visão dialéctica.
As descobertas, já no século XX, da astronomia
e da cosmologia, vieram conferir um grau superior de solidez e comprovação
experimental das teorias científicas de uma enorme quantidade de processos
dinâmicos (dialécticos) ligando o micromundo ao macromundo (formação das
estrelas e de sistemas solares, teoria do big-bang, etc.). As descobertas da
física liquidam os «absolutos»: espaço, tempo, e determinismo absolutos deixam
de existir.
A descoberta da célula viva e o desenvolvimento da
biologia celular
Em 1839 Schwann
e Schleiden estabelecem o princípio de que plantas e animais são constituídos
por células, unidade comum da estrutura e desenvolvimento dos seres vivos. Em
1855 Virchow mostra como as células derivam de outras pré-existentes através de
divisão celular. Nasce a biologia celular que acaba com o «fixismo» de espécies vivas estranhas umas às outras.
Geologia, paleontologia e selecção natural
Em 1785 Hutton
propõe uma teoria sobre a formação da Terra, envolvendo a sua contínua mudança,
com os processos de erosão e sedimentação, originando novas rochas. Defendeu
também que a Terra era muitíssimo mais antiga do que se julgava. Desenvolve-se
o estudo dos fósseis que permite uma leitura cronológica da evolução da Terra.
Darwin e Wallace estabelecem em 1858 a teoria da selecção natural que explica a
evolução das espécies, incluindo a espécie humana. A teoria da selecção natural
está hoje assente em bases sólidas e os seus êxitos teóricos e experimentais
são diários [3]. Conseguiu-se, inclusive, explicar o desenvolvimento evolutivo,
por selecção natural, de estruturas vivas muito complexas, como o olho ([4]). O
«criacionismo» metafísico é definitivamente enterrado e só sobrevive entre
fanáticos religiosos (ou ignorantes). Alfred Wegener, em 1920, propõe a teoria
da deriva dos continentes que veio a ser colocada em bases sólidas por estudos
de magnetismo terrestre, sismologia, etc. O nosso próprio planeta é uma
demonstração impressionante da dialéctica.
*
* *
Em meados do século XIX subsistia um único
domínio do conhecimento impermeável à atitude materialista e dialéctica
das ciências da natureza: a estrutura e a evolução das sociedades humanas, isto
é, a sociologia e a história. Revelava-se mais fácil ao Homem (qualquer ser
humano, homem ou mulher) estudar/compreender o mundo que lhe era exterior, do
que o seu próprio «mundo». É que neste caso ele é não apenas o sujeito que
estuda; é também o objecto do estudo.
Coube a Karl Marx e Friedrich Engels --
filósofos por formação, mas auto-didactas em economia, história e outros
domínios do conhecimento --, construir a teoria científica que faltava e que
veio a denominar-se de materialismo histórico. Nessa construção usaram
as ideias de dialéctica ressuscitadas pelo filósofo idealista alemão F. Hegel,
bem como os conhecimentos que tinham das ciências da natureza do seu tempo. Em
particular, Engels, tinha um conhecimento muito substancial das ciências do seu
tempo, que transmitiu na sua obra A
Dialéctica da Natureza, justamente apreciada por cientistas de profissão
([5]).
Dialéctica materialista
Ao
mecanicismo que permeou o materialismo das ciências da natureza até
meados do século XIX, sucedeu uma visão de interligação de todas as partes
constituintes do universo (em vez da visão metafísica de entidades totalmente
separadas), de perpétuo movimento em tudo o que nos rodeia,
de saltos evolutivos, visão essa que inspirou o materialismo dialéctico. Muitos cientistas não marxistas não
usam o termo «materialismo dialéctico»
quer por desconhecimento quer por estar politicamente conotado. Usam outros
termos em substituição, como por exemplo «realismo evolutivo», «dinâmica de
sistemas [materiais]», etc.
Marx e Engels foram buscar os princípios
dialécticos ao idealista Hegel (então muito em voga na Alemanha), dando-lhes um
suporte materialista. Ao mesmo tempo que Marx e Engels, também um operário
auto-didacta alemão, Josef
Dietzgen, aplicou princípios dialécticos na sua visão materialista do mundo e das
ciências ([6]).
É desta dialéctica, que tem por suporte o
materialismo, que vamos falar, expondo sucintamente três dos seus princípios
mais importantes ([7]): a transformação da quantidade em qualidade; a unidade
dos contrários; a negação da negação. Desde já, uma chamada de atenção. Engels,
e outros ([8]), designaram por «leis» aquilo que aqui designaremos por
«princípios»; isto é, constatações de grande generalidade, embora de
universalidade e de condições de aplicabilidade não demonstráveis.
Fazemo-lo por três razões:
1) A palavra «lei» tem, em ciência, um
significado bem mais estrito e rigoroso do que as «leis» da dialéctica. Uma lei
estabelece relações entre determinadas entidades, de forma a permitir um dado
tipo de predição de ocorrência de umas em função de outras, desde que
satisfeitas determinadas condições explícitas ([9]). Ora, as «leis» da
dialéctica não fixam condições e o tipo das predições (caracterização funcional
determinística ou estatística) não é conhecido.
2) A ideia de «lei» da dialéctica ou «lei» do
materialismo dialéctico tem servido para justificar todos os abusos decorrentes
de interpretar o materialismo dialéctico como uma meta-ciência, um dogma, que
prevalece sobre a ciência, determinando a validade de uma teoria científica.
(Já vimos em http://revolucaoedemocracia.blogspot.pt/2014/06/marxismo-e-ciencia-ii-materialismo.html
que o materialismo dialéctico não é uma ciência, mas sim uma metodologia
de análise da realidade. Ver também [10].)
3) Engels, que escreveu abundantemente sobre a
dialéctica e o seu papel na ciência, diz assim a propósito de um dos princípios
da dialéctica (no Anti-Dühring) (itálicos nossos):
«Assim, quando Marx
qualifica tal processo de negação da negação não pensa provar, por este
meio, a sua necessidade histórica. Muito
pelo contrário: só quando provou pela história que, de facto, o fenómeno já
parcialmente se produziu e parcialmente deve ocorrer no futuro, ele,
para além disso, caracteriza-o como um processo que se desenvolve segundo uma
lei dialéctica bem definida.»
E acrescenta:
«A falta total de
conhecimento da dialéctica por parte do senhor Dühring é revelada exactamente
pelo facto de que ele encara-a como um mero instrumento de prova, tal
como uma mente limitada encararia a lógica formal ou a matemática elementar.»
Segundo estas afirmações, Engels não encararia
a dialéctica (e, em consequência, o materialismo dialéctico) como um
«instrumento de prova», como uma meta-ciência. De facto, como já dissemos em http://revolucaoedemocracia.blogspot.pt/2014/09/marxismo-e-ciencia-iii-materialismo-e.html
, é possível construir teorias explicativas materialistas e dialécticas, mas
erradas. Também não é menos verdade que qualquer teoria científica é
materialista – em ciência não há lugar para espíritos, divinos ou não – e,
geralmente, acaba-se por constatar que muitas das teorias científicas se
enquadram num quadro explicativo dialéctico.
Mas Engels não é coerente. Nos textos sobre
dialéctica usa a palavra «lei» (Gesetz) e diz mesmo no Anti-Dühring [11]:
«A dialéctica não é
mais do que a ciência das leis gerais do movimento da natureza, da sociedade
humana e do pensamento.»
Ora, uma «ciência das leis gerais do movimento
da natureza, da sociedade humana e do pensamento» é uma meta-ciência, uma
«ciência de tudo», que tudo pode provar e validar. Curiosamente, noutro local
do Anti-Dühring, Engels tinha afirmado que uma «ciência de tudo» é uma impossibilidade
([12]).
A) A transformação da quantidade em qualidade
Segundo este
princípio dialéctico, o acumular de alterações quantitativas acaba por
desencadear uma brusca alteração qualitativa.
A constatação deste princípio é bem conhecida
dos físico-químicos, designadamente nas chamadas «transições de fases». Um
exemplo trivial é a mudança de estado (gasoso, líquido, sólido) de uma
substância -- portanto, mudança de qualidade porque mudança de
propriedades físicas fundamentais -- por evolução quantitativa da temperatura,
ou da pressão, ou de ambas. Outras transições de fase menos triviais resultam
na formação repentina de novas estruturas atómicas, por variação de
concentrações iónicas e do pH (diagramas de Pourbaix). Transformações da
quantidade em qualidade são observáveis noutras ciências. Na biologia, por
exemplo, é actualmente aceite que a acumulação de lípidos em protocélulas num
ambiente competitivo conduziram ao salto do surgimento da célula viva.
Abundam também os exemplos na história. Engels
apresenta, como exemplo, o seguinte testemunho de Napoleão sobre os combates da
cavalaria francesa, constituída por maus cavaleiros mas disciplinados, contra
os mamelucos, os melhores cavaleiros do seu tempo no combate individual, mas
indisciplinados: «Dois mamelucos eram, sem dúvida, superiores a três franceses;
100 mamelucos e 100 franceses equivaliam-se; 300 franceses normalmente
superavam 300 mamelucos, 1000 franceses derrotavam sempre 1500 mamelucos.»
Exemplos bem mais importantes são as transições entre sistemas
socio-económicos: esclavagismo à
feudalismo à capitalismo à socialismo. A história documenta abundantemente a existência de
«pontos de ruptura» nestas transições, resultado da acumulação gradual de
modificações num dado sistema socio-económico que desembocam, num salto em
tempo curto, para outro sistema, como um vulcão que entra em erupção pelo
acumular de pressão na câmara magmática. Chamam-se revoluções a tais
saltos qualitativos.
B) A unidade dos contrários
Este princípio vai contra a ideia de
categorias separadas, absolutas, típica da visão metafísica que se pode
enunciar como «uma coisa e a sua contrária nada têm
de comum». Em contraposição, a visão dialéctica
reconhece e presta atenção à existência de
misturas de determinadas propriedades e suas contrárias em muitos objectos e
fenómenos. Por outras palavras, reconhece que, em geral, não existem
propriedades absolutas.
Sobre a unidade dos contrários (ou das
«contradições»), disse Engels (itálicos nossos, [13]):
«Se, na investigação, nos inspirarmos constantemente neste ponto de vista
[dialéctico], deixa-se, de uma vez para sempre, de
procurar soluções definitivas e verdades eternas; tem-se sempre consciência do carácter necessariamente
limitado de todo o conhecimento
adquirido, da sua dependência das condições nas quais foi
adquirido; não mais nos deixamos iludir pelas antinomias, irredutíveis para a velha metafísica sempre em uso,
do verdadeiro e do falso, do bem e do mal, do idêntico e do diferente, do fatal e do fortuito; sabe-se que
estas têm apenas um valor relativo, que o que é conhecido agora como verdadeiro tem o seu lado falso escondido, que aparecerá mais tarde, assim como o que é actualmente reconhecido como falso tem o seu lado verdadeiro, graças
ao qual pôde, anteriormente, ser considerado como
verdadeiro.»
Um exemplo importante é precisamente o da
ciência como construção humana. Cada afirmação científica contém, em geral,
uma certa dose de verdade e uma certa dose de «erro», de limitação da
aplicabilidade da verdade. Pese embora que uma característica distintiva da
ciência é a de que novas «verdades», com menor «erro», substituam as antigas
«verdades». A ciência é, portanto, uma construção permanente de «melhores»
verdades (com menos «erro»).
Note-se o acima «em geral». É claro que
existem inúmeras verdades triviais absolutas (p. ex., «a troika
esteve em Portugal»), e mesmo na ciência ocorrem alguns (poucos)
«absolutos». Por exemplo, não é possível baixar a temperatura de um corpo
abaixo do zero absoluto (-273,15 ºC).
C) A negação da negação
Comecemos por um exemplo (adaptado de J.B.S. Haldane,
[5]). O do gelo, corpo sólido com as moléculas de água ocupando posições bem
definidas no espaço. No gelo comum (fase 1h) as moléculas dispõem-se
hexagonalmente e a sua densidade é de 0,917: o gelo 1h flutua na água. Se
aquecermos o gelo até perto do ponto de fusão (0º C) as moléculas vão-se
soltando progressivamente, numa mistura de contrários: sólido-líquido. Podemos
dizer que o aquecimento provoca uma negação do estado sólido. Se nessa
situação aplicarmos uma pressão elevada, de 6.000 atmosferas, obtemos uma outra
fase do gelo, o gelo VI. Isto é, a aplicação da pressão corresponde a uma negação
da negação: voltamos a obter uma fase sólida, eliminando a líquida.
Acontece que a fase VI corresponde a um sólido bem mais resistente, em que as
moléculas se dispõem num padrão tetragonal (mais apertado que o hexagonal). É
também de maior densidade: 1,31. O gelo VI não flutua na água.
Tal como neste exemplo do gelo, a negação da
negação é observável em muitos processos evolutivos. Podemos dizer,
informalmente, que na negação da negação ocorre uma primeira mudança de uma
propriedade na sua contrária (negação); segue-se uma nova mudança em sentido
inverso (negação da negação) que não repõe o objecto ou sistema no estado
original (caso contrário a negação da negação, como nas evoluções cíclicas,
não traria qualquer aporte evolutivo). Antes, o conduz a um outro estado,
frequentemente de melhores características.
A evolução das espécies vivas contém muitos
exemplos da negação da negação. Por exemplo, sabe-se hoje com inteira certeza
que há 375 milhões de anos um peixe (ictiostega), de pântanos e lagos
pobremente oxigenados, evoluiu por pressão ambiental no sentido de desenvolver
barbatanas dianteiras que lhe permitissem sair da água para se arrastar em
terra. Como resultado desta «negação» águaàterra o ictiostega enfrentou dificuldades ao nível da respiração, da
visão, e do controlo da temperatura corporal. Entretanto, novas pressões
ambientais (e talvez outras) vieram pressionar o desenvolvimento de melhores
adaptações da vida em terra (tiktaalik, acantostega) até aos primeiros
anfíbios, animais de anatomia mais sofisticada, com pulmões e guelras, e boa
visão, que além de viverem em terra firme puderam regressar à água (negação da
negação).
Na evolução histórica dos sistemas
socio-económicos encontramos também inúmeros exemplos da negação da negação. O
exemplo mais clássico é apresentado por Marx na seguinte sequência do Capítulo
XXXII de «O Capital»:
«Verifica-se
portanto que, na raiz da acumulação primitiva do capital, na raiz da sua génese
histórica, está a expropriação do produtor imediato [negação], a
dissolução da propriedade fundada no trabalho pessoal do seu possuidor [...] À
medida que diminui o número dos potentados do capital [...] aumentam a miséria,
a opressão, a escravatura, a degradação, a exploração, mas também a resistência
da classe operária [...] O monopólio do capital torna-se um entrave para o modo
de produção que com ele cresceu e prosperou [...] A socialização do trabalho e
a centralização do seus recursos materiais chegam a um ponto que já não podem
conter-se no invólucro capitalista. Este invólucro rebenta em estilhaços. A
hora da propriedade capitalista soou. Os expropriadores são por sua vez
expropriados [negação da negação].»
Note-se que em escritos marxistas aparecem,
por vezes, exemplos ingénuos da negação da negação. O próprio Engels tem culpa
nisso. Apresenta no Anti-Dühring um exemplo da matemática, de uma grandeza a que negada dá –a,
e depois, negada de novo por multiplicação por –a, dá a2.
Superior a a. Acontece que a dialéctica só é aplicável a sistemas
evolutivos e não às operações abstractas da matemática. A matemática, na sua
versão «pura», está cheia de «absolutos»; como, por exemplo, o ponto sem
dimensões. Além disso, ainda que armados de indulgência para com um exemplo
meramente ilustrativo, verificamos que a multiplicação por –a é usada
arbitrariamente por Engels para a segunda «negação». De facto, na matemática,
não estamos em presença de nenhum processo físico evolutivo que imponha tal
operação. Podíamos ter escolhido, também arbitrariamente, outra operação
qualquer. Em suma, o exemplo surge como ilegítimo, infantil e manipulativo. O
que não quer dizer que o Anti-Dühring não seja uma obra de interesse.
Utilidade da dialéctica
Nas ciências da natureza o aporte actual
da dialéctica é discutível. Vários cientistas, no passado, acharam-na de
utilidade ([5]). Nos tempos de hoje, um cientista que não prestasse atenção à
dinâmica dos sistemas que estuda e à interligação das várias áreas do
conhecimento seria avis rara. Muitos cientistas, aliás, aplicam o
materialismo dialéctico sem estarem conscientes disso. Um tanto como aquele
personagem de Molière que descobriu que andava a falar há quarenta anos em
prosa sem o saber. Assinale-se, entretanto, que mesmo hoje os princípios da
dialéctica parecem ter um papel a desempenhar em algumas ciências da natureza,
como na biologia, na genética e na ecologia, merecendo a atenção de cientistas
prestigiados ([14]).
Alguns cientistas das ciências da natureza
negaram no passado valor à dialéctica e ao materialismo dialéctico. No caso
melhor documentado que conhecemos, de um cientista não marxista, essa atitude
deveu-se mais a uma errada interpretação do materialismo dialéctico ([15]) de
que também muitos marxistas são culpados, e cujo erro fundacional foi já por
nós referido: a ideia do materialismo dialéctico como meta-ciência. Há,
obviamente, outros marxistas de sólida formação científica que têm combatido esta
deturpação do materialismo dialéctico ([16-17]).
A ideia do materialismo dialéctico como
meta-ciência e método de prova, continua ainda, infelizmente, a ser sustentada
por alguns que se reclamam de marxistas ([18]). Tem servido para motivar a
rejeição liminar e até a ridicularização do marxismo por parte de muitos
intelectuais e cientistas destacados com fraco ou nenhum conhecimento do
marxismo (muitos, aliás, a priori hostis ao marxismo por posições de
classe ou outras, não científicas). São, em especial, de rejeitar quaisquer
«provas científicas» pretensamente obtidas por aplicação do materialismo
dialéctico ([19]). O materialismo dialéctico não é uma meta-ciência, não é
um dogma, não é uma gnose, nem um substituto do conhecimento científico, um
substituto do conhecimento profundo das entidades e leis próprias de cada
ciência, um substituto da análise da realidade.
A dialéctica permanece de grande valor nas
áreas da história e sociologia. É que, como dissemos acima, uma coisa é o Homem
(qualquer ser humano, mulher ou homem) analisar o mundo que lhe é exterior,
envolvendo sistemas e processos evolutivos que pode repetir ou observar. Outra
coisa, inteiramente diferente, é o Homem que, digamos, «se analisa a si
próprio». Mulheres e homens que se debruçam sobre a história das relações
económicas e sociais, transportando em si uma carga ideológica e emocional, e
vínculos formativos e sociais, que se podem intrometer na imparcialidade da
análise, designadamente no «esquecimento» das realidades e dos porquês evolutivos.
Sabemos bem como no capitalismo proliferam os historiadores e sociólogos ao
serviço do sistema, da defesa do status quo, da metafísica capitalista.
Sabemos bem como a divulgação de ideias no «mundo ocidental» é dominada por
grandes empresas capitalistas, editoriais e jornalísticas, exercendo a censura
por um método muito simples: omitindo «histórias» discordantes do
«politicamente correcto». Sabemos bem como se cimentam, assim, determinadas
visões do mundo, que aceitam complacente ou entusiasticamente a (des)informação
daqueles que, como Fukuyama, dizem que a história acabou. Que não há
alternativas. Que a evolução (a dialéctica) acabou e o capitalismo reinará para
todo o sempre.
Mas também na história e sociologia é preciso
estar alerta e combater qualquer veleidade de transformação do materialismo
dialéctico em meta-ciência. A sua transformação numa gnose situando-o acima da
análise da realidade, usada meramente para «justificar» todas as perversões da
praxis. Tivemos um retumbante exemplo disso com a implosão do «socialismo real»
da URSS e dos outros países da Europa de Leste; implosão que desmentiu a
«ciência» (meta-ciência) estalinista defendida como a «ciência» do
«materialismo dialéctico» ([20]).
Referências
[1] Georges Politzer, Princípios
Elementares da Filosofia, Ed. Prelo, 1974. Uma
introdução didáctica das questões essenciais da filosofia e do materialismo
dialéctico. O livro baseia-se nas notas das aulas de Politzer na Universidade
Operária de Paris. O filósofo comunista Georges Politzer foi fuzilado pelos nazis
em 1942 pelo crime de ser comunista e patriota, depois de meses de tortura. Foi
entregue aos nazis pelo governo fascista e colaboracionista da França, dito de
Vichy. O livro pode ser descarregado a partir de http://www.dorl.pcp.pt/index.php/outros-textos-de-divulgacao-do-marxismo-leninismo/3222-politzer-os-princpios-elementares-da-filosofia.
[2]
Albert Einstein, Leopold Infeld, A Evolução da Física: De Newton até à
Teoria dos Quanta, Edição “Livros do Brasil”, data de edição não mencionada
(a edição original da Cambridge University Press é de 1938). Este livro contém
uma excelente apresentação da concepção mecanicista da física e da sua
transição para concepções posteriores (concepção de campo, de leis quânticas,
etc.).
[3]
A teoria da evolução das espécies por selecção natural constitui uma brilhante
ilustração do materialismo dialéctico. Sobre este tema recomendamos vivamente
os seguintes livros: Jerry A. Coyne, A Evidência da Evolução. Porque é que
Darwin tinha razão, Tinta da China, 2012; Teresa Avelar, Margarida Matos,
Carla Rego, Quem Tem Medo de Charles Darwin?, Relógio d’Água, 2004;
Teresa Avelar, A Evolução Culminou no Homem? Progresso,
Contingências, Catástrofes e Extraterrestres, Bertrand Editora 2010.
[4]
Um artigo recente e interessantíssimo no tema é: Nick Lane, Chance or
Necessity?, Bioenergetics and the Probability of Life, Journal of Cosmology, 2010, Vol 10, 3286-3304.
[5]
Friedrich Engels, Dialéctica da Natureza, Editorial Presença (Portugal)
e Livraria Martins Fontes (Brasil), 1974. Esta é a única tradução completa que
conhecemos em português. Existem traduções em muitas línguas e acessíveis no Marxists
Internet Archive (MIA). Entre os cientistas que reconheceram o valor da
obra de Engels – dentro, é claro, das limitações da ciência do seu tempo
--, citemos o físico japonês Shoichi Sakata (1911-1970) reconhecido
internacionalmente pelos seus trabalhos pioneiros sobre os neutrinos e a
proposta de um modelo nuclear precursor do modelo dos quarks. Sakata escreveu Philosophy
and Methodology of Present-Day Science, Progress of
Theoretical Physics (supplement), No. 50, 1971 (disponível do MIA), onde tece considerações interessantes
sobre dialéctica e ciência. Tende, contudo, a «forçar a nota» quando sugere uma
transposição directa das leis da natureza para as leis sociais. Outros
cientistas com trabalhos de interesse no materialismo dialéctico e apreciações
de Engels, são John B. S. Haldane (1892-1964), biólogo britânico conhecido
pelos seus trabalhos pioneiros em genética e biologia evolutiva (ver Dialectical
Materialism and Modern Science, Labour Monthly, 1941, MIA), John D. Bernal
(1901-1971), cientista irlandês com trabalhos pioneiros no âmbito da
cristalografia de raios X (ver Engels and Science, Labour Monthly
Pamphlets, no. 6, MIA), e Anton Pannekoek (1873-1960) cientista holandês,
pioneiro da astrofísica (ver Marxism and Darwinism, Charles H. Kerr
& Co., 1912, MIA).
[6]
Joseph Dietzgen (1828–1888) foi um operário curtidor alemão, depois pequeno
empresário. Filósofo auto-didacta e jornalista, desenvolveu a noção de
materialismo dialéctico em várias obras que escreveu. Militante socialista,
veio a estabelecer um contacto estreito com Marx. Três das suas obras foram
reeditadas em inglês: Nature of Human Brain Work: An Introduction to
Dialectics, Left Bank Books, Reprint 1984; Philosophical Essays on
Socialism and Science, Religion, Ethics; Critique-Of-Reason and the
World-At-Large, Kessinger Publications, 2004; The Positive Outcome of
Philosophy; The Nature of Human Brain Work, Letters on Logic, Kessinger
Publications, 2007. Engels refere-se a Dietzgen nos seguintes termos no Ludwig Feuerbach e o
Fim da Filosofia Clássica Alemã (IV, pag. 128): «E esta dialéctica
materialista, que era, de há anos, o nosso melhor meio de trabalho e a nossa
arma mais afiada, foi, coisa notável, descoberta de novo, não apenas por nós,
mas, além disso ainda, independentemente de nós e mesmo de Hegel, por um
operário alemão, Josef Dietzgen».
[7]
Para além das obras [1] e [5] as «leis» da dialéctica são apresentadas por
Engels em: Anti-Dühring, Edições Afrodite, 1974, e Ludwig Feuerbach e
o Fim da Filosofia Alemã Clássica, Editorial Estampa, 1975. Marx também se
lhes refere em «O Capital» (uma versão integral dos vols. I e II foi editada
pela Delfos, com 7.ª edição de 1975). Ver também os seguintes trabalhos de
Haldane e Bernal (MIA): J.D. Bernal, Engels and Science, Labour
Monthly Pamphlets, No. 6 (sem data), the Trinity
Trust, London; J.D. Bernal, Dialectical Materialism and Modern Science,
Science and Society, Volume II, No. 1, Winter 1937; J. B. S. Haldane, Engels' Dialectics of Nature, Random House,
1939.
[8]
Parece que Marx, mais cauteloso, não chegou a designar por «leis» os princípios
do materialismo dialéctico.
[9]
O dicionário de Oxford de 2005 define assim uma lei científica: «um princípio
teórico deduzido de factos específicos, aplicável a um grupo ou classe bem
definida de fenómenos, que se pode exprimir por uma asserção de que um dado
fenómeno ocorre sempre que certas condições se verificam». Note-se a predição
de ocorrência de um fenómeno se certas condições se verificam. Sabemos,
da mecânica quântica (ver nosso artigo anterior) que as predições podem ser
estatísticas, para além de determinísticas.
[10]
Alguns autores assinalam que Marx e Engels nunca usaram a designação
«materialismo dialéctico». Embora Engels tenha usado a expressão «dialéctica
materialista» como vimos em [6]. Este aspecto não tem qualquer importância,
dado que Marx e Engels defenderam, sem qualquer dúvida, o materialismo e a
dialéctica materialista. (O termo «materialismo dialéctico», que estaria já
certamente no ar, parece ter sido usado pela primeira vez em textos de Kautsky
e Plekhanov.)
[11]
A tradução portuguesa das Edições Afrodite (1974) coincide neste excerto com a
tradução francesa e inglesa e reproduz bem o original alemão: Die Dialektik
ist aber weiter nichts als die Wissenschaft von den
allgemeinen Bewegungs- und Entwicklungsgesetzen der Natur, der
Menschengesellschaft und des Denkens. (Noutras, muitas, passagens, a
tradução das Edições Afrodite é péssima, exigindo constantemente o cotejo com o
original e com traduções noutras línguas. Tanto quanto sabemos não existe uma
tradução escorreita do Anti-Dühring em português. Lamentável!)
[12] «A percepção de que todos os processos da natureza estão
sistematicamente ligados, impele a ciência a provar toda essa ligação
sistemática, ao mesmo tempo no todo e nas partes. Mas uma descrição científica
adequada e exaustiva dessa conexão, a construção de uma imagem exacta do
sistema do mundo em que vivemos é e permanecerá para nós sempre impossível. Se
num qualquer momento da evolução humana se construísse tal sistema definitivo
das conexões de que o mundo se compõe -- físicas bem como espirituais e
históricas -- isso significaria que o conhecimento humano tinha atingido o seu
limite, e a partir do momento em que a sociedade estivesse organizada de acordo
com tal sistema, teria acabado a evolução histórica -- o que seria um absurdo,
um contra-senso.» Anti-Dühring, Parte I – Filosofia, Cap. III –
Classificação- apriorismo.
[13]
F. Engels, Ludwig Feuerbach e o Fim da Filosofia Clássica Alemã (IV, pag.129).
[14] O livro The
Dialectical Biologist («O Biólogo Dialéctico»), da
Harvard University Press, 1985, é um de vários livros escritos por Richard
Levins e Richard
Lewontin defendendo a dialéctica como ferramenta metodológica na investigação
em biologia. De assinalar também, dos mesmos autores, Biology Under The
Influence, Dialectical Essays on Ecology, Agriculture, and Health, Monthly
Review Press, 2007 e, de Levins, Evolution in Changing Environments,
Princeton University Press, 1968, e Dialectics and systems theory,
Science and Society, 62(3):373-399, 1998. Que saibamos o «O Biólogo Dialéctico»
não está traduzido em português. Richard Levins é um ecologista matemático, professor na Universidade
de Harvard, conhecido pelos seus trabalhos em evolução em mudanças ambientais e
metapopulações. É marxista, tendo afirmado que a sua metodologia em mudanças
ambientais era a mesma de «O Capital» de Marx. Está na lista negra do FBI. Richard
Lewontin é um biólogo e geneticista, também professor em Harvard, pioneiro nos
fundamentos matemáticos da genética de populações e na aplicação de técnicas da
biologia molecular. Em 1979 Lewontin e Stephen Jay Gould introduziram o conceito
de spandrel na teoria da evolução.
[15]
Jacques Monod (1910-1976), prémio Nobel da Medicina, diz, por exemplo, o
seguinte no seu livro O Acaso e a Necessidade (obra muito interessante,
sobre o que é a vida e como surgiu, publicada pela Europa-América, 2.ª edição):
«Por isso é particularmente revelador verificar que, querendo fundar nas leis
da própria natureza o edifício das suas doutrinas sociais, Marx e Engels tenham
recorrido, eles também [...] à “projecção animista”». Não é verdade que Marx e
Engels tenham «querido fundar nas leis da própria natureza o edifício das suas
doutrinas sociais». É verdade, sim, que quiseram e deram, pioneiramente, uma
fundamentação científica das leis (e não «doutrinas») sociais; e que, ao darem
essa fundamentação científica, se regeram por princípios metodológicos
subjazendo a qualquer teoria científica, quer os seus construtores
estejam disso conscientes ou não: o materialismo (existe uma realidade material
independente do espírito e da existência do homem) e a dialéctica (não existe
matéria sem movimento e evolução). Quanto à «projecção animista», esclarece
Monod que «é a hipótese de que os fenómenos naturais podem e devem explicar-se,
em definitivo, da mesma maneira pelas mesmas «leis» que a actividade humana
subjectiva, consciente e projectiva». Nada poderia estar mais afastado do
marxismo do que esta afirmação. Para os marxistas, nem as «leis» são as mesmas
em todas as áreas de conhecimento humano, nem é o subjectivo que explica o
objectivo, a matéria, mas exactamente o contrário (ver nosso artigo sobre o
materialismo dialéctico). Muitas outras passagens do livro contêm erros
colossais sobre o tema, como, por exemplo, «o materialismo dialéctico é um
aditamento relativamente tardio ao edifício sócio-económico já erigido por
Marx». Foi precisamente o contrário. Marx, como filósofo, começou por
desenvolver o materialismo na sua forma dialéctica, aplicável à história,
muitos anos antes de se ter voltado para as questões da economia (quando
emigrou para Londres). Diz Monod a seguir. «Aditamento abertamente destinado a
fazer do materialismo dialéctico uma “ciência” fundada nas leis da própria
natureza». Já vimos o que há de errado nesta afirmação. O materialismo dialéctico
não é ou poderia ser uma «ciência», e muito menos uma «ciência» «fundada»
(tomada de empréstimo) nas leis da natureza, como expusemos acima. Em suma,
Monod revela um conhecimento superficial do marxismo com preconceitos de parti
pris.
[16]
Erwin Marquit, professor de física na Universidade do Minnesota e conhecido
marxista, diz o seguinte em Phylosophy of Physics in General Physics Courses,
Science & Society, 42, pp.410-425, 1978, a propósito do materialismo
dialéctico: «Um sistema filosófico não pode ser um substituto da ciência da
física, mas pode servir como um guia metodológico para a investigação e
exposição científica. O materialismo dialéctico não é um dogma e os
materialistas dialécticos não reivindicam nenhum monopólio no acesso ao
conhecimento científico».
[17]
Peter Mason, físico marxista, diz assim no seu livro Science, Marxism and
the Big Bang (Socialist Publications Ltd, 2007): «Na nossa discussão sobre
cosmologia [...] não temos quaisquer ilusões que nós, como marxistas,
possuímos, baseados no materialismo dialéctico, critérios prontos-a-usar pelos
quais podemos julgar as teorias científicas».
[18]
No livro de Peter Mason são apontados erros clamorosos de dois marxistas
trotskistas proeminentes (Ted Grant e Alan Woods) num livro que publicaram
sobre descobertas da física, desde a Teoria da Relatividade até ao big-bang.
Chegam esses marxistas ao cúmulo de defender a visão metafísica de um universo
infinito e no «estado estacionário», invocando a autoridade de, nem mais nem
menos que... Nicolau de Cusa, teólogo e astrónomo alemão do século XV!!! Incrível,
mas é verdade.
Note-se que não são
apenas marxistas da corrente trotskista que cometeram erros neste particular.
Poderíamos também apresentar inúmeros erros do mesmo tipo da corrente
estalinista, designadamente na URSS no tempo de Estaline (ver [20]). Como o
caso Lysenko, que rejeitou a genética «burguesa» (não materialista dialéctica)
atrasando tremendamente os estudos soviéticos nesse campo, ou, de forma
análoga, os atrasos que sofreram a cibernética e as ciências da computação na
URSS pelo mesmo motivo.
[19]
Engels caiu nesse erro na sua obra Dialéctica da Natureza, ao criticar
duas grandes descobertas científicas do seu tempo: a 2.ª Lei da Termodinâmica e
a interpretação puramente selectiva da Teoria da Evolução das Espécies de
Darwin. Erros justamente apontados no livro, acima referido, de Jacques Monod.
Sobre a 2.ª Lei da
Termodinâmica, diz Engels assim (Notas e Fragmentos. Física): «De
qualquer modo que se nos apresente o segundo princípio de Clausius,
etc., implica sempre que a energia de perde, qualitativamente ou mesmo
quantitativamente. A entropia não pode ser destruída por via natural, mas
por outro lado, pode ser criada. Deve ter-se dado em primeiro lugar corda
ao relógio do universo [...] A energia para lhe dar corda desapareceu, pelo
menos quantitativamente, e só pode ser restituída por uma impulsão vinda do
exterior. Portanto a impulsão do exterior era igualmente necessária no
princípio [...] Ad absurdum!» De facto, a 2.ª Lei da Termodinâmica não
põe em causa a conservação da energia; a energia não «se perde». Apenas diz que,
qualitativamente, as diversas formas de energia não são iguais (na
interpretação termodinâmica clássica de Clausius, a energia térmica e a energia
mecânica). Engels, contudo, vê bem a questão do «impulso inicial»; questão que
tem atrapalhado a ciência até à actual teoria do big bang. Embora ainda
não inteiramente resolvida, uma pedra angular da explicação reside no princípio
da incerteza da mecânica quântica, relativamente à energia e ao tempo. É
possível obter energia a partir do «nada» num tempo muito curto. Para mais
sobre este assunto sugerimos: Lawrence Krauss, A Universe from Nothing.
Simon & Schuster, 2012.
Sobre a teoria de
Darwin, diz Engels assim (Notas e Fragmentos. Biologia): «É precisamente
de Darwin o erro de misturar [...] duas coisas absolutamente estranhas: 1. A
selecção por pressão da sobrepopulação [...] 2. A selecção graças a uma
faculdade de adaptação maior [...]» De facto, as duas coisas não são
«estranhas» uma à outra, mas complementares. Engels denota neste texto estar
ainda muito influenciado por Malthus (o teórico da «sobrepopulação») e não ter
compreendido bem a teoria de Darwin. Sobre este tema recomendamos o livro acima
citado de Teresa Avelar et al., Quem Tem Medo de Charles Darwin?
Engels só cometeu
estes dois erros na Dialéctica da Natureza. Em grande parte por
limitações da ciência do seu tempo. Disse também muitas coisas acertadas, como
esta que a física só posteriormente veio a confirmar: «No zero absoluto nenhum
gás é possível. Todo o movimento das moléculas está parado. A menor pressão,
portanto, a sua própria atracção aglomera-as. Portanto um gás permanente é
um absurdo.»
Erwin Marquit,
apesar da opinião que citámos acima, não nos parece isento de crítica. A
propósito do paradoxo de Zeno, defende que a «solução» dialéctica é superior à
solução apresentada por outros, por exemplo por Bertrand Russel (baseada no
conceito de limite). Ora, a «solução» dialéctica de Marquit reduz-se à
expressão da unidade dos contrários: «Podemos agora ver a vantagem de tomar a
contradição básica do movimento mecânico de deixar uma região e entrar
noutra [Parafraseia a formulação de Hegel de que um corpo num certo momento
está aqui e não está aqui]. Ao não incluirmos posição definida como uma
propriedade de um corpo em movimento, tomamos o movimento como propriedade
fundamental da matéria». Quanto a nós, nenhum enunciado metodológico pode
solucionar o que quer que seja e não é por dizermos que «o movimento é
propriedade fundamental da matéria» que o paradoxo de Zeno fica solucionado e
muito menos com «vantagem».
[20]
Note-se que o trabalho de Estaline «Materialismo Dialéctico e Histórico» está
bastante bem feito. Começa por dizer (sublinhados nossos) «O materialismo
dialéctico é a visão do mundo do partido marxista-leninista. É chamado
materialismo dialéctico porque a sua abordagem aos fenómenos da natureza, o seu
método de os estudar e os apreender, é dialéctico, enquanto a sua
interpretação dos fenómenos da natureza, o seu conceito desses fenómenos, a sua
teoria, é materialista.», prosseguindo «O materialismo histórico é a
extensão dos princípios do materialismo dialéctico ao estudo da vida
social, uma aplicação dos princípios do materialismo dialéctico aos
fenómenos da vida em sociedade; ao estudo da sociedade e da sua história.»
Concordamos inteiramente com esta exposição. Note-se a menção de «método» e
«princípios» como defendemos.
O problema é que,
mais adiante no texto, Estaline deixa cair as palavras «método» e «princípios»
e começa a usar «lei» («lei do desenvolvimento [dialéctico]», «desenvolvimento
da sociedade de acordo com leis regulares», etc.). Ora, a dialéctica não tem «leis»,
com toda a carga definitiva e autoritativa que a palavra carreia, e as leis do
desenvolvimento da sociedade estão muito longe de serem «regulares».
Além disso, no seu
texto, Estaline intitula as secções (1) e (2), respectivamente, como «Método
Dialéctico Marxista» e «Materialismo Filosófico Marxista». Ora, não existe
nada, nem na dialéctica nem no materialismo, que seja exclusivo dos marxistas.
Uma imensidade de pessoas segue exactamente a mesma atitude/filosofia
materialista e dialéctica dos marxistas sem se posicionar como tal
(nomeadamente no plano político).
Deslizes de pouca
monta? Talvez não. A breve trecho, a «visão do mundo» materialista dialéctica passa
na URSS a ser uma «ciência oficial» muito especial, só conhecida dos
«marxistas» do PCUS. Os «cientistas» com capacidade de interpretar as leis da
«ciência» começam por ser os membros do Comité Central do PCUS. Mais tarde,
apenas o «cientista-mor» Estaline é proclamado como o depositário da correcta
interpretação das «leis».