sábado, 6 de dezembro de 2014

Marxismo e Ciência. IV – Dialéctica

Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades,
Muda-se o ser, muda-se a confiança;
Todo o mundo é composto de mudança,
Tomando sempre novas qualidades.

Continuamente vemos novidades,
Diferentes em tudo da esperança;
Do mal ficam as mágoas na lembrança,

E do bem, se algum houve, as saudades.

O tempo cobre o chão de verde manto,
Que já coberto foi de neve fria,
E em mim converte em choro o doce canto.

E, afora este mudar-se cada dia,
Outra mudança faz de mor espanto:
Que não se muda já como soía.
Times change, as do our wills,
One's being and assurance change;
All the world is made of change,
Forever attaining new qualities.

We constantly see new things
Differing in all from our hopes;
Of  evil, we remember the pain,
And of good, if any, the yearning.

Time covers the ground with a green cloak,
Once covered by freezing snow,
Converting my sweet songs into laments.

And besides these endless changes,
A more astonishing change it does:
It does not change anymore as it used to do.

Soneto de Luís de Camões (séc. XVI)
Ouvir a versão cantada do soneto, por José Mário Branco, em:
Listen to the song version of the sonnet, by José Mário Branco, in:

Na canção o seguinte refrão foi acrescentado:
E se todo o mundo é composto de mudança
Troquemos-lhe as voltas que ainda o dia é uma criança.
The following refrain was added to the song:
And if all the world is composed of change
Let’s change its pace since the day is still young.

A dialéctica dos antigos gregos
   
    O soneto acima de Luís de Camões transmite, de forma brilhante, o pensamento dialéctico dos antigos filósofos gregos. Estes impressionaram-se pelo facto de se encontrar por toda a parte a mudança e o movimento. O filósofo pré-socrático Heráclito de Efeso (535 a.C.-475 a.C.), chamado o «pai da dialéctica», considerava que «tudo flui», «tudo se move». Por outras palavras, segundo Heráclito não é possível conceber-se a matéria em repouso absoluto. A matéria está sempre em movimento e mudança, algo que cada vez mais a física moderna comprova. É claro que a Heráclito faltava o conhecimento científico que agora temos. As suas opiniões eram simples conjecturas luminosas, baseadas nas observações do mundo que o rodeava. É famosa a sentença atribuída a Heráclito de que «ninguém entra no mesmo rio duas vezes» exprimindo a constante mudança da natureza. Heráclito também defendia a «unidade dos contrários», afirmando que «o caminho para cima e o caminho para baixo são o mesmo caminho». Dizia ainda que o devir, a mudança que acontece em todas as coisas é sempre uma alternância entre contrários: coisas quentes esfriam, coisas frias aquecem; coisas húmidas secam, coisas secas humedecem, etc. A realidade surge, então, não em uma de duas alternativas isoladas, já que ambas são parte de uma mesma realidade, mas sim assente na mudança, por exemplo «a doença faz da saúde algo agradável e bom», ou seja, se não houvesse a doença a saúde (o contrário) não poderia ser valorizada.
    É neste sentido, da não existência de categorias fixas e imutáveis numa natureza em perpétua evolução, que consideramos a «dialéctica». Existem outros significados do termo que aqui não nos interessam. De uma forma muito genérica podemos dizer que a dialéctica se interessa pela dinâmica evolutiva do universo, incluindo, no nosso planeta Terra, a evolução dos seres vivos e a história e relações internas das sociedades humanas.

O materialismo metafísico
   
    Com o nascimento das ciências da natureza a partir do século XVII a tradição do pensamento dialéctico extingue-se. E extingue-se por uma boa razão: todos os pioneiros nas diversas áreas do conhecimento da natureza -- física (Newton, Galileu, etc.), astronomia (Galileu, Kepler, Herschel, etc.), química (Boyle, Lavoisier, Scheele, etc.), zoologia e botânica (Lineu, Buffon, Jussieu, Mendel, etc.), anatomia (Vesalius, etc.), geologia (Saussure, Hutton, etc.), paleontologia (Alberto da Saxónia, Cuvier, etc.) – viram-se obrigados a desenvolver o conhecimento da sua área de estudo decompondo fenómenos e objectos complexos em componentes simples, categorizáveis, catalogáveis, obedecendo a leis determinísticas e inalteráveis.
    Tudo isto conduziu a concepções de imutabilidade e de existência de «absolutos» na natureza. O espaço e o tempo eram considerados absolutos, dados para todo o sempre e independentes da realidade material. O magnetismo, separado da electricidade. As órbitas dos corpos celestes, inalteráveis. Os seres vivos, sempre os mesmos e isolados uns com os outros. Continentes e oceanos, formados na origem da Terra e mantendo-se praticamente inalterados, aparte pequenas variações de detalhes.
    Esta atitude metafísica da ciência permaneceu até meados do século XIX. Usamos aqui o termo «metafísica» (um termo com muitos significados dentro da filosofia) como designando a atitude anti-dialéctica. A atitude de quem concebe os objectos e fenómenos como categorias imutáveis, independentes e separadas umas das outras. Notemos o «só»: na atitude dialéctica não há nada de errado em estudar fenómenos e objectos isoladamente; desde que estejamos conscientes das suas inter-relações e da sua dinâmica evolutiva a cujo estudo haverá que proceder.
    Conforme diz Politzer ([1]), a atitude metafísica encontrava-se «por exemplo, no estudo da zoologia e da botânica. Porque não se conheciam bem, classificaram-se, primeiro, os animais em raças, espécies, pensando que entre elas não havia nada de comum e que fora sempre assim [...] É daí que vem a teoria a que se chama fixismo” (que afirma, contrariamente ao "evolucionismo", que as espécies animais foram sempre o que o, que nunca evoluíram)».
    Uma área do conhecimento que teve grande influência na atitude metafísica foi a mecânica. A mecânica dominou durante muito tempo o pensamento dos físicos [2]. No século XVIII e até meados do século XIX, físicos e matemáticos, como por exemplo Lagrange e Laplace, desenvolveram a mecânica e, em particular, a mecânica celeste, erguendo-a a um nível muito elevado de sofisticação, que permitiu, nomeadamente, calcular as órbitas dos planetas conhecidos com grande precisão. A culminar este enorme esforço a mecânica celeste conseguiu prever a existência, a massa e a órbita de um planeta na altura desconhecido – Neptuno – a partir das perturbações que esse ainda desconhecido planeta induzia na órbita de Urano. Uma espantosa proeza que solidificava a ideia de imutabilidade do universo. O materialismo -- que é sempre baseado na ciência --, era, muito naturalmente, dominado nessa época pelo pensamento metasico, mecanicista.
    O universo surgia, assim, como um grande relógio, um sistema mecânico posto em movimento por Deus na origem do tempo. As suas mudanças eram cíclicas e perfeitamente conhecidas, não se lhe aplicando o que dizia Luís de Camões: «Que não se muda já como soía.»

As descobertas científicas a partir de meados do século XIX
    
    A partir de meados do século XIX começaram a surgir uma série de descobertas científicas que vieram enterrar definitivamente a atitude metafísica, imobilista e fixista da ciência. Vejamos algumas, sucintamente:
   
A termodinâmica e a  transformação da energia
    Sadi Carnot (1824), Clausius (1850), e outros, estudam as transformações de energia calorífica em energia mecânica e vice-versa. A motivação destes estudos, ditos de termodinâmica, que prosseguem ao longo de todo o séc. XIX, constitui uma boa ilustração da influência do desenvolvimento das forças produtivas (neste caso, as máquinas a vapor da primeira revolução industrial) no progresso científico. Mais tarde, outros tipos de transformação de energia são descobertos, como a transformação de energia electromagnética em calor e em movimento. Não é mais possível considerar isoladamente as diferentes formas de energia. No universo, elas estão sempre a converter-se uma na outra.
O electromagnetismo
    Faraday (1840), Maxwell (1861), e outros, descobrem a relação entre campos eléctricos e magnéticos em movimento. A luz e outras radiações surgem como oscilações de campos electromagnéticos. A electricidade e o magnetismo deixam de estar separados. Mais tarde, com Einstein (1905), a interdependência entre campos eléctricos e magnéticos é ainda explicada a um nível mais profundo, relativista. Faraday, nos seus trabalhos de electroquímica, mostra também a existência de relações profundas entre a física e a química.
A teoria atómica
    Praticamente até aos trabalhos de Dalton (1799) a existência de átomos era pura conjectura. Só com Dalton, Thomson (1802), Rutherford (1911), e outros, nasce a teoria atómica e a existência de átomos e moléculas é comprovada. (Actualmente, é inclusive possível ver alguns deles). A tabela periódica dos elementos é descoberta por Mendeleiev (1869), contribuindo para a fusão entre física e química. Além disso, os átomos e suas partículas elementares (electrão, protão, etc.) permitem pela primeira vez uma visão integrada do universo, do mundo microscópico ao macroscópico:
partículas à
átomos à
moléculas à
planetas, estrelas à
galáxias

polímeros, proteínas à
células à
seres vivos

    Esta visão da interligação de todas as partes constituintes do universo é também característica da visão dialéctica.
    As descobertas, já no século XX, da astronomia e da cosmologia, vieram conferir um grau superior de solidez e comprovação experimental das teorias científicas de uma enorme quantidade de processos dinâmicos (dialécticos) ligando o micromundo ao macromundo (formação das estrelas e de sistemas solares, teoria do big-bang, etc.). As descobertas da física liquidam os «absolutos»: espaço, tempo, e determinismo absolutos deixam de existir.
A descoberta da célula viva e o desenvolvimento da biologia celular
    Em 1839 Schwann e Schleiden estabelecem o princípio de que plantas e animais são constituídos por células, unidade comum da estrutura e desenvolvimento dos seres vivos. Em 1855 Virchow mostra como as células derivam de outras pré-existentes através de divisão celular. Nasce a biologia celular que acaba com o «fixismo» de espécies vivas estranhas umas às outras.
Geologia, paleontologia e selecção natural
    Em 1785 Hutton propõe uma teoria sobre a formação da Terra, envolvendo a sua contínua mudança, com os processos de erosão e sedimentação, originando novas rochas. Defendeu também que a Terra era muitíssimo mais antiga do que se julgava. Desenvolve-se o estudo dos fósseis que permite uma leitura cronológica da evolução da Terra. Darwin e Wallace estabelecem em 1858 a teoria da selecção natural que explica a evolução das espécies, incluindo a espécie humana. A teoria da selecção natural está hoje assente em bases sólidas e os seus êxitos teóricos e experimentais são diários [3]. Conseguiu-se, inclusive, explicar o desenvolvimento evolutivo, por selecção natural, de estruturas vivas muito complexas, como o olho ([4]). O «criacionismo» metafísico é definitivamente enterrado e só sobrevive entre fanáticos religiosos (ou ignorantes). Alfred Wegener, em 1920, propõe a teoria da deriva dos continentes que veio a ser colocada em bases sólidas por estudos de magnetismo terrestre, sismologia, etc. O nosso próprio planeta é uma demonstração impressionante da dialéctica.
*    *    *
    Em meados do século XIX subsistia um único domínio do conhecimento impermeável à atitude materialista e dialéctica das ciências da natureza: a estrutura e a evolução das sociedades humanas, isto é, a sociologia e a história. Revelava-se mais fácil ao Homem (qualquer ser humano, homem ou mulher) estudar/compreender o mundo que lhe era exterior, do que o seu próprio «mundo». É que neste caso ele é não apenas o sujeito que estuda; é também o objecto do estudo.
    Coube a Karl Marx e Friedrich Engels -- filósofos por formação, mas auto-didactas em economia, história e outros domínios do conhecimento --, construir a teoria científica que faltava e que veio a denominar-se de materialismo histórico. Nessa construção usaram as ideias de dialéctica ressuscitadas pelo filósofo idealista alemão F. Hegel, bem como os conhecimentos que tinham das ciências da natureza do seu tempo. Em particular, Engels, tinha um conhecimento muito substancial das ciências do seu tempo, que transmitiu na sua obra A Dialéctica da Natureza, justamente apreciada por cientistas de profissão ([5]).
    
Dialéctica materialista
   
    Ao mecanicismo que permeou o materialismo das ciências da natureza até meados do século XIX, sucedeu uma visão de interligação de todas as partes constituintes do universo (em vez da visão metafísica de entidades totalmente separadas), de perpétuo movimento em tudo o que nos rodeia, de saltos evolutivos, visão essa que inspirou o materialismo dialéctico. Muitos cientistas não marxistas não usam o termo «materialismo dialéctico» quer por desconhecimento quer por estar politicamente conotado. Usam outros termos em substituição, como por exemplo «realismo evolutivo», «dinâmica de sistemas [materiais]», etc.
    Marx e Engels foram buscar os princípios dialécticos ao idealista Hegel (então muito em voga na Alemanha), dando-lhes um suporte materialista. Ao mesmo tempo que Marx e Engels, também um operário auto-didacta alemão, Josef Dietzgen, aplicou princípios dialécticos na sua visão materialista do mundo e das ciências ([6]).
    É desta dialéctica, que tem por suporte o materialismo, que vamos falar, expondo sucintamente três dos seus princípios mais importantes ([7]): a transformação da quantidade em qualidade; a unidade dos contrários; a negação da negação. Desde já, uma chamada de atenção. Engels, e outros ([8]), designaram por «leis» aquilo que aqui designaremos por «princípios»; isto é, constatações de grande generalidade, embora de universalidade e de condições de aplicabilidade não demonstráveis. Fazemo-lo por três razões:
    
    1) A palavra «lei» tem, em ciência, um significado bem mais estrito e rigoroso do que as «leis» da dialéctica. Uma lei estabelece relações entre determinadas entidades, de forma a permitir um dado tipo de predição de ocorrência de umas em função de outras, desde que satisfeitas determinadas condições explícitas ([9]). Ora, as «leis» da dialéctica não fixam condições e o tipo das predições (caracterização funcional determinística ou estatística) não é conhecido.
    
    2) A ideia de «lei» da dialéctica ou «lei» do materialismo dialéctico tem servido para justificar todos os abusos decorrentes de interpretar o materialismo dialéctico como uma meta-ciência, um dogma, que prevalece sobre a ciência, determinando a validade de uma teoria científica. (Já vimos em http://revolucaoedemocracia.blogspot.pt/2014/06/marxismo-e-ciencia-ii-materialismo.html que o materialismo dialéctico não é uma ciência, mas sim uma metodologia de análise da realidade. Ver também [10].)
    
    3) Engels, que escreveu abundantemente sobre a dialéctica e o seu papel na ciência, diz assim a propósito de um dos princípios da dialéctica (no Anti-Dühring) (itálicos nossos):
   
«Assim, quando Marx qualifica tal processo de negação da negação não pensa provar, por este meio, a sua necessidade histórica. Muito pelo contrário: só quando provou pela história que, de facto, o fenómeno já parcialmente se produziu e parcialmente deve ocorrer no futuro, ele, para além disso, caracteriza-o como um processo que se desenvolve segundo uma lei dialéctica bem definida
   
    E acrescenta:
   
«A falta total de conhecimento da dialéctica por parte do senhor Dühring é revelada exactamente pelo facto de que ele encara-a como um mero instrumento de prova, tal como uma mente limitada encararia a lógica formal ou a matemática elementar.»
   
   Segundo estas afirmações, Engels não encararia a dialéctica (e, em consequência, o materialismo dialéctico) como um «instrumento de prova», como uma meta-ciência. De facto, como já dissemos em http://revolucaoedemocracia.blogspot.pt/2014/09/marxismo-e-ciencia-iii-materialismo-e.html , é possível construir teorias explicativas materialistas e dialécticas, mas erradas. Também não é menos verdade que qualquer teoria científica é materialista – em ciência não há lugar para espíritos, divinos ou não – e, geralmente, acaba-se por constatar que muitas das teorias científicas se enquadram num quadro explicativo dialéctico.
    Mas Engels não é coerente. Nos textos sobre dialéctica usa a palavra «lei» (Gesetz) e diz mesmo no Anti-Dühring [11]:
    
«A dialéctica não é mais do que a ciência das leis gerais do movimento da natureza, da sociedade humana e do pensamento.»
        
  Ora, uma «ciência das leis gerais do movimento da natureza, da sociedade humana e do pensamento» é uma meta-ciência, uma «ciência de tudo», que tudo pode provar e validar. Curiosamente, noutro local do Anti-Dühring, Engels tinha afirmado que uma «ciência de tudo» é uma impossibilidade ([12]).

A) A transformação da quantidade em qualidade
    
    Segundo este princípio dialéctico, o acumular de alterações quantitativas acaba por desencadear uma brusca alteração qualitativa.
    A constatação deste princípio é bem conhecida dos físico-químicos, designadamente nas chamadas «transições de fases». Um exemplo trivial é a mudança de estado (gasoso, líquido, sólido) de uma substância -- portanto, mudança de qualidade porque mudança de propriedades físicas fundamentais -- por evolução quantitativa da temperatura, ou da pressão, ou de ambas. Outras transições de fase menos triviais resultam na formação repentina de novas estruturas atómicas, por variação de concentrações iónicas e do pH (diagramas de Pourbaix). Transformações da quantidade em qualidade são observáveis noutras ciências. Na biologia, por exemplo, é actualmente aceite que a acumulação de lípidos em protocélulas num ambiente competitivo conduziram ao salto do surgimento da célula viva.
    Abundam também os exemplos na história. Engels apresenta, como exemplo, o seguinte testemunho de Napoleão sobre os combates da cavalaria francesa, constituída por maus cavaleiros mas disciplinados, contra os mamelucos, os melhores cavaleiros do seu tempo no combate individual, mas indisciplinados: «Dois mamelucos eram, sem dúvida, superiores a três franceses; 100 mamelucos e 100 franceses equivaliam-se; 300 franceses normalmente superavam 300 mamelucos, 1000 franceses derrotavam sempre 1500 mamelucos.» Exemplos bem mais importantes são as transições entre sistemas socio-económicos: esclavagismo à feudalismo à capitalismo à socialismo. A história documenta abundantemente a existência de «pontos de ruptura» nestas transições, resultado da acumulação gradual de modificações num dado sistema socio-económico que desembocam, num salto em tempo curto, para outro sistema, como um vulcão que entra em erupção pelo acumular de pressão na câmara magmática. Chamam-se revoluções a tais saltos qualitativos.
    
B) A unidade dos contrios
    
    Este princípio vai contra a ideia de categorias separadas, absolutas, típica da visão metafísica que se pode enunciar como «uma coisa e a sua contrária nada têm de comum». Em contraposição, a visão dialéctica reconhece e presta atenção à existência de misturas de determinadas propriedades e suas contrárias em muitos objectos e fenómenos. Por outras palavras, reconhece que, em geral, não existem propriedades absolutas.
    Sobre a unidade dos contrários (ou das «contradições»), disse Engels (itálicos nossos, [13]):
   
«Se, na investigação, nos inspirarmos constantemente neste ponto de vista [dialéctico], deixa-se, de uma vez para sempre, de procurar soluções definitivas e verdades eternas; tem-se sempre consciência do carácter necessariamente limitado de todo o conhecimento adquirido, da sua dependência das condições nas quais foi adquirido; não mais nos deixamos iludir pelas antinomias, irreduveis para a velha metafísica sempre em uso, do verdadeiro e do falso, do bem e do mal, do intico e do diferente, do fatal e do fortuito; sabe-se que estas têm apenas um valor relativo, que o que é conhecido agora como verdadeiro tem o seu lado falso escondido, que aparece mais tarde, assim como o que é actualmente reconhecido como falso tem o seu lado verdadeiro, graças ao qual de, anteriormente, ser considerado como verdadeiro.»
    
    Um exemplo importante é precisamente o da ciência como construção humana. Cada afirmação científica contém, em geral, uma certa dose de verdade e uma certa dose de «erro», de limitação da aplicabilidade da verdade. Pese embora que uma característica distintiva da ciência é a de que novas «verdades», com menor «erro», substituam as antigas «verdades». A ciência é, portanto, uma construção permanente de «melhores» verdades (com menos «erro»).
    Note-se o acima «em geral». É claro que existem inúmeras verdades triviais absolutas (p. ex., «a troika esteve em Portugal»), e mesmo na ciência ocorrem alguns (poucos) «absolutos». Por exemplo, não é possível baixar a temperatura de um corpo abaixo do zero absoluto (-273,15 ºC).
    
C) A negação da negação
    
    Comecemos por um exemplo (adaptado de J.B.S. Haldane, [5]). O do gelo, corpo sólido com as moléculas de água ocupando posições bem definidas no espaço. No gelo comum (fase 1h) as moléculas dispõem-se hexagonalmente e a sua densidade é de 0,917: o gelo 1h flutua na água. Se aquecermos o gelo até perto do ponto de fusão (0º C) as moléculas vão-se soltando progressivamente, numa mistura de contrários: sólido-líquido. Podemos dizer que o aquecimento provoca uma negação do estado sólido. Se nessa situação aplicarmos uma pressão elevada, de 6.000 atmosferas, obtemos uma outra fase do gelo, o gelo VI. Isto é, a aplicação da pressão corresponde a uma negação da negação: voltamos a obter uma fase sólida, eliminando a líquida. Acontece que a fase VI corresponde a um sólido bem mais resistente, em que as moléculas se dispõem num padrão tetragonal (mais apertado que o hexagonal). É também de maior densidade: 1,31. O gelo VI não flutua na água.
    Tal como neste exemplo do gelo, a negação da negação é observável em muitos processos evolutivos. Podemos dizer, informalmente, que na negação da negação ocorre uma primeira mudança de uma propriedade na sua contrária (negação); segue-se uma nova mudança em sentido inverso (negação da negação) que não repõe o objecto ou sistema no estado original (caso contrário a negação da negação, como nas evoluções cíclicas, não traria qualquer aporte evolutivo). Antes, o conduz a um outro estado, frequentemente de melhores características.
    A evolução das espécies vivas contém muitos exemplos da negação da negação. Por exemplo, sabe-se hoje com inteira certeza que há 375 milhões de anos um peixe (ictiostega), de pântanos e lagos pobremente oxigenados, evoluiu por pressão ambiental no sentido de desenvolver barbatanas dianteiras que lhe permitissem sair da água para se arrastar em terra. Como resultado desta «negação» águaàterra o ictiostega enfrentou dificuldades ao nível da respiração, da visão, e do controlo da temperatura corporal. Entretanto, novas pressões ambientais (e talvez outras) vieram pressionar o desenvolvimento de melhores adaptações da vida em terra (tiktaalik, acantostega) até aos primeiros anfíbios, animais de anatomia mais sofisticada, com pulmões e guelras, e boa visão, que além de viverem em terra firme puderam regressar à água (negação da negação).
    Na evolução histórica dos sistemas socio-económicos encontramos também inúmeros exemplos da negação da negação. O exemplo mais clássico é apresentado por Marx na seguinte sequência do Capítulo XXXII de «O Capital»:
   
«Verifica-se portanto que, na raiz da acumulação primitiva do capital, na raiz da sua génese histórica, está a expropriação do produtor imediato [negação], a dissolução da propriedade fundada no trabalho pessoal do seu possuidor [...] À medida que diminui o número dos potentados do capital [...] aumentam a miséria, a opressão, a escravatura, a degradação, a exploração, mas também a resistência da classe operária [...] O monopólio do capital torna-se um entrave para o modo de produção que com ele cresceu e prosperou [...] A socialização do trabalho e a centralização do seus recursos materiais chegam a um ponto que já não podem conter-se no invólucro capitalista. Este invólucro rebenta em estilhaços. A hora da propriedade capitalista soou. Os expropriadores são por sua vez expropriados [negação da negação].»
   
    Note-se que em escritos marxistas aparecem, por vezes, exemplos ingénuos da negação da negação. O próprio Engels tem culpa nisso. Apresenta no Anti-Dühring um exemplo da matemática, de uma grandeza a que negada dá –a, e depois, negada de novo por multiplicação por –a, dá a2. Superior a a. Acontece que a dialéctica só é aplicável a sistemas evolutivos e não às operações abstractas da matemática. A matemática, na sua versão «pura», está cheia de «absolutos»; como, por exemplo, o ponto sem dimensões. Além disso, ainda que armados de indulgência para com um exemplo meramente ilustrativo, verificamos que a multiplicação por –a é usada arbitrariamente por Engels para a segunda «negação». De facto, na matemática, não estamos em presença de nenhum processo físico evolutivo que imponha tal operação. Podíamos ter escolhido, também arbitrariamente, outra operação qualquer. Em suma, o exemplo surge como ilegítimo, infantil e manipulativo. O que não quer dizer que o Anti-Dühring não seja uma obra de interesse.
    
Utilidade da dialéctica
   
    Nas ciências da natureza o aporte actual da dialéctica é discutível. Vários cientistas, no passado, acharam-na de utilidade ([5]). Nos tempos de hoje, um cientista que não prestasse atenção à dinâmica dos sistemas que estuda e à interligação das várias áreas do conhecimento seria avis rara. Muitos cientistas, aliás, aplicam o materialismo dialéctico sem estarem conscientes disso. Um tanto como aquele personagem de Molière que descobriu que andava a falar há quarenta anos em prosa sem o saber. Assinale-se, entretanto, que mesmo hoje os princípios da dialéctica parecem ter um papel a desempenhar em algumas ciências da natureza, como na biologia, na genética e na ecologia, merecendo a atenção de cientistas prestigiados ([14]).
    Alguns cientistas das ciências da natureza negaram no passado valor à dialéctica e ao materialismo dialéctico. No caso melhor documentado que conhecemos, de um cientista não marxista, essa atitude deveu-se mais a uma errada interpretação do materialismo dialéctico ([15]) de que também muitos marxistas são culpados, e cujo erro fundacional foi já por nós referido: a ideia do materialismo dialéctico como meta-ciência. Há, obviamente, outros marxistas de sólida formação científica que têm combatido esta deturpação do materialismo dialéctico ([16-17]).
    A ideia do materialismo dialéctico como meta-ciência e método de prova, continua ainda, infelizmente, a ser sustentada por alguns que se reclamam de marxistas ([18]). Tem servido para motivar a rejeição liminar e até a ridicularização do marxismo por parte de muitos intelectuais e cientistas destacados com fraco ou nenhum conhecimento do marxismo (muitos, aliás, a priori hostis ao marxismo por posições de classe ou outras, não científicas). São, em especial, de rejeitar quaisquer «provas científicas» pretensamente obtidas por aplicação do materialismo dialéctico ([19]). O materialismo dialéctico não é uma meta-ciência, não é um dogma, não é uma gnose, nem um substituto do conhecimento científico, um substituto do conhecimento profundo das entidades e leis próprias de cada ciência, um substituto da análise da realidade.
    A dialéctica permanece de grande valor nas áreas da história e sociologia. É que, como dissemos acima, uma coisa é o Homem (qualquer ser humano, mulher ou homem) analisar o mundo que lhe é exterior, envolvendo sistemas e processos evolutivos que pode repetir ou observar. Outra coisa, inteiramente diferente, é o Homem que, digamos, «se analisa a si próprio». Mulheres e homens que se debruçam sobre a história das relações económicas e sociais, transportando em si uma carga ideológica e emocional, e vínculos formativos e sociais, que se podem intrometer na imparcialidade da análise, designadamente no «esquecimento» das realidades e dos porquês evolutivos. Sabemos bem como no capitalismo proliferam os historiadores e sociólogos ao serviço do sistema, da defesa do status quo, da metafísica capitalista. Sabemos bem como a divulgação de ideias no «mundo ocidental» é dominada por grandes empresas capitalistas, editoriais e jornalísticas, exercendo a censura por um método muito simples: omitindo «histórias» discordantes do «politicamente correcto». Sabemos bem como se cimentam, assim, determinadas visões do mundo, que aceitam complacente ou entusiasticamente a (des)informação daqueles que, como Fukuyama, dizem que a história acabou. Que não há alternativas. Que a evolução (a dialéctica) acabou e o capitalismo reinará para todo o sempre.
   Mas também na história e sociologia é preciso estar alerta e combater qualquer veleidade de transformação do materialismo dialéctico em meta-ciência. A sua transformação numa gnose situando-o acima da análise da realidade, usada meramente para «justificar» todas as perversões da praxis. Tivemos um retumbante exemplo disso com a implosão do «socialismo real» da URSS e dos outros países da Europa de Leste; implosão que desmentiu a «ciência» (meta-ciência) estalinista defendida como a «ciência» do «materialismo dialéctico» ([20]).
    
Referências
   
[1] Georges Politzer, Princípios Elementares da Filosofia, Ed. Prelo, 1974. Uma introdução didáctica das questões essenciais da filosofia e do materialismo dialéctico. O livro baseia-se nas notas das aulas de Politzer na Universidade Operária de Paris. O filósofo comunista Georges Politzer foi fuzilado pelos nazis em 1942 pelo crime de ser comunista e patriota, depois de meses de tortura. Foi entregue aos nazis pelo governo fascista e colaboracionista da França, dito de Vichy. O livro pode ser descarregado a partir de http://www.dorl.pcp.pt/index.php/outros-textos-de-divulgacao-do-marxismo-leninismo/3222-politzer-os-princpios-elementares-da-filosofia.
[2] Albert Einstein, Leopold Infeld, A Evolução da Física: De Newton até à Teoria dos Quanta, Edição “Livros do Brasil”, data de edição não mencionada (a edição original da Cambridge University Press é de 1938). Este livro contém uma excelente apresentação da concepção mecanicista da física e da sua transição para concepções posteriores (concepção de campo, de leis quânticas, etc.).
[3] A teoria da evolução das espécies por selecção natural constitui uma brilhante ilustração do materialismo dialéctico. Sobre este tema recomendamos vivamente os seguintes livros: Jerry A. Coyne, A Evidência da Evolução. Porque é que Darwin tinha razão, Tinta da China, 2012; Teresa Avelar, Margarida Matos, Carla Rego, Quem Tem Medo de Charles Darwin?, Relógio d’Água, 2004; Teresa Avelar, A Evolução Culminou no Homem? Progresso, Contingências, Catástrofes e Extraterrestres, Bertrand Editora 2010.
[4] Um artigo recente e interessantíssimo no tema é: Nick Lane, Chance or Necessity?, Bioenergetics and the Probability of Life, Journal of Cosmology, 2010, Vol 10, 3286-3304.
[5] Friedrich Engels, Dialéctica da Natureza, Editorial Presença (Portugal) e Livraria Martins Fontes (Brasil), 1974. Esta é a única tradução completa que conhecemos em português. Existem traduções em muitas línguas e acessíveis no Marxists Internet Archive (MIA). Entre os cientistas que reconheceram o valor da obra de Engels – dentro, é claro, das limitações da ciência do seu tempo --, citemos o físico japonês Shoichi Sakata (1911-1970) reconhecido internacionalmente pelos seus trabalhos pioneiros sobre os neutrinos e a proposta de um modelo nuclear precursor do modelo dos quarks. Sakata escreveu Philosophy and Methodology of Present-Day Science, Progress of Theoretical Physics (supplement), No. 50, 1971 (disponível do MIA), onde tece considerações interessantes sobre dialéctica e ciência. Tende, contudo, a «forçar a nota» quando sugere uma transposição directa das leis da natureza para as leis sociais. Outros cientistas com trabalhos de interesse no materialismo dialéctico e apreciações de Engels, são John B. S. Haldane (1892-1964), biólogo britânico conhecido pelos seus trabalhos pioneiros em genética e biologia evolutiva (ver Dialectical Materialism and Modern Science, Labour Monthly, 1941, MIA), John D. Bernal (1901-1971), cientista irlandês com trabalhos pioneiros no âmbito da cristalografia de raios X (ver Engels and Science, Labour Monthly Pamphlets, no. 6, MIA), e Anton Pannekoek (1873-1960) cientista holandês, pioneiro da astrofísica (ver Marxism and Darwinism, Charles H. Kerr & Co., 1912, MIA).
[6] Joseph Dietzgen (1828–1888) foi um operário curtidor alemão, depois pequeno empresário. Filósofo auto-didacta e jornalista, desenvolveu a noção de materialismo dialéctico em várias obras que escreveu. Militante socialista, veio a estabelecer um contacto estreito com Marx. Três das suas obras foram reeditadas em inglês: Nature of Human Brain Work: An Introduction to Dialectics, Left Bank Books, Reprint 1984; Philosophical Essays on Socialism and Science, Religion, Ethics; Critique-Of-Reason and the World-At-Large, Kessinger Publications, 2004; The Positive Outcome of Philosophy; The Nature of Human Brain Work, Letters on Logic, Kessinger Publications, 2007. Engels refere-se a Dietzgen nos seguintes termos no Ludwig Feuerbach e o Fim da Filosofia Clássica Alemã (IV, pag. 128): «E esta dialéctica materialista, que era, de há anos, o nosso melhor meio de trabalho e a nossa arma mais afiada, foi, coisa notável, descoberta de novo, não apenas por nós, mas, além disso ainda, independentemente de nós e mesmo de Hegel, por um operário alemão, Josef Dietzgen».
[7] Para além das obras [1] e [5] as «leis» da dialéctica são apresentadas por Engels em: Anti-Dühring, Edições Afrodite, 1974, e Ludwig Feuerbach e o Fim da Filosofia Alemã Clássica, Editorial Estampa, 1975. Marx também se lhes refere em «O Capital» (uma versão integral dos vols. I e II foi editada pela Delfos, com 7.ª edição de 1975). Ver também os seguintes trabalhos de Haldane e Bernal (MIA): J.D. Bernal, Engels and Science, Labour Monthly Pamphlets, No. 6 (sem data), the Trinity Trust, London; J.D. Bernal, Dialectical Materialism and Modern Science, Science and Society, Volume II, No. 1, Winter 1937; J. B. S. Haldane, Engels' Dialectics of Nature, Random House, 1939.
[8] Parece que Marx, mais cauteloso, não chegou a designar por «leis» os princípios do materialismo dialéctico.
[9] O dicionário de Oxford de 2005 define assim uma lei científica: «um princípio teórico deduzido de factos específicos, aplicável a um grupo ou classe bem definida de fenómenos, que se pode exprimir por uma asserção de que um dado fenómeno ocorre sempre que certas condições se verificam». Note-se a predição de ocorrência de um fenómeno se certas condições se verificam. Sabemos, da mecânica quântica (ver nosso artigo anterior) que as predições podem ser estatísticas, para além de determinísticas.
[10] Alguns autores assinalam que Marx e Engels nunca usaram a designação «materialismo dialéctico». Embora Engels tenha usado a expressão «dialéctica materialista» como vimos em [6]. Este aspecto não tem qualquer importância, dado que Marx e Engels defenderam, sem qualquer dúvida, o materialismo e a dialéctica materialista. (O termo «materialismo dialéctico», que estaria já certamente no ar, parece ter sido usado pela primeira vez em textos de Kautsky e Plekhanov.)
[11] A tradução portuguesa das Edições Afrodite (1974) coincide neste excerto com a tradução francesa e inglesa e reproduz bem o original alemão: Die Dialektik ist aber weiter nichts als die Wissenschaft von den allgemeinen Bewegungs- und Entwicklungsgesetzen der Natur, der Menschengesellschaft und des Denkens. (Noutras, muitas, passagens, a tradução das Edições Afrodite é péssima, exigindo constantemente o cotejo com o original e com traduções noutras línguas. Tanto quanto sabemos não existe uma tradução escorreita do Anti-Dühring em português. Lamentável!)
[12] «A percepção de que todos os processos da natureza estão sistematicamente ligados, impele a ciência a provar toda essa ligação sistemática, ao mesmo tempo no todo e nas partes. Mas uma descrição científica adequada e exaustiva dessa conexão, a construção de uma imagem exacta do sistema do mundo em que vivemos é e permanecerá para nós sempre impossível. Se num qualquer momento da evolução humana se construísse tal sistema definitivo das conexões de que o mundo se compõe -- físicas bem como espirituais e históricas -- isso significaria que o conhecimento humano tinha atingido o seu limite, e a partir do momento em que a sociedade estivesse organizada de acordo com tal sistema, teria acabado a evolução histórica -- o que seria um absurdo, um contra-senso.» Anti-Dühring, Parte I – Filosofia, Cap. III – Classificação- apriorismo.
[13] F. Engels, Ludwig Feuerbach e o Fim da Filosofia Clássica Alemã (IV, pag.129).
[14] O livro The Dialectical Biologist («O Biólogo Dialéctico»), da Harvard University Press, 1985, é um de vários livros escritos por Richard Levins e Richard Lewontin defendendo a dialéctica como ferramenta metodológica na investigação em biologia. De assinalar também, dos mesmos autores, Biology Under The Influence, Dialectical Essays on Ecology, Agriculture, and Health, Monthly Review Press, 2007 e, de Levins, Evolution in Changing Environments, Princeton University Press, 1968, e Dialectics and systems theory, Science and Society, 62(3):373-399, 1998. Que saibamos o «O Biólogo Dialéctico» não está traduzido em português. Richard Levins é um ecologista matemático, professor na Universidade de Harvard, conhecido pelos seus trabalhos em evolução em mudanças ambientais e metapopulações. É marxista, tendo afirmado que a sua metodologia em mudanças ambientais era a mesma de «O Capital» de Marx. Está na lista negra do FBI. Richard Lewontin é um biólogo e geneticista, também professor em Harvard, pioneiro nos fundamentos matemáticos da genética de populações e na aplicação de técnicas da biologia molecular. Em 1979 Lewontin e Stephen Jay Gould introduziram o conceito de spandrel na teoria da evolução.
[15] Jacques Monod (1910-1976), prémio Nobel da Medicina, diz, por exemplo, o seguinte no seu livro O Acaso e a Necessidade (obra muito interessante, sobre o que é a vida e como surgiu, publicada pela Europa-América, 2.ª edição): «Por isso é particularmente revelador verificar que, querendo fundar nas leis da própria natureza o edifício das suas doutrinas sociais, Marx e Engels tenham recorrido, eles também [...] à “projecção animista”». Não é verdade que Marx e Engels tenham «querido fundar nas leis da própria natureza o edifício das suas doutrinas sociais». É verdade, sim, que quiseram e deram, pioneiramente, uma fundamentação científica das leis (e não «doutrinas») sociais; e que, ao darem essa fundamentação científica, se regeram por princípios metodológicos subjazendo a qualquer teoria científica, quer os seus construtores estejam disso conscientes ou não: o materialismo (existe uma realidade material independente do espírito e da existência do homem) e a dialéctica (não existe matéria sem movimento e evolução). Quanto à «projecção animista», esclarece Monod que «é a hipótese de que os fenómenos naturais podem e devem explicar-se, em definitivo, da mesma maneira pelas mesmas «leis» que a actividade humana subjectiva, consciente e projectiva». Nada poderia estar mais afastado do marxismo do que esta afirmação. Para os marxistas, nem as «leis» são as mesmas em todas as áreas de conhecimento humano, nem é o subjectivo que explica o objectivo, a matéria, mas exactamente o contrário (ver nosso artigo sobre o materialismo dialéctico). Muitas outras passagens do livro contêm erros colossais sobre o tema, como, por exemplo, «o materialismo dialéctico é um aditamento relativamente tardio ao edifício sócio-económico já erigido por Marx». Foi precisamente o contrário. Marx, como filósofo, começou por desenvolver o materialismo na sua forma dialéctica, aplicável à história, muitos anos antes de se ter voltado para as questões da economia (quando emigrou para Londres). Diz Monod a seguir. «Aditamento abertamente destinado a fazer do materialismo dialéctico uma “ciência” fundada nas leis da própria natureza». Já vimos o que há de errado nesta afirmação. O materialismo dialéctico não é ou poderia ser uma «ciência», e muito menos uma «ciência» «fundada» (tomada de empréstimo) nas leis da natureza, como expusemos acima. Em suma, Monod revela um conhecimento superficial do marxismo com preconceitos de parti pris.
[16] Erwin Marquit, professor de física na Universidade do Minnesota e conhecido marxista, diz o seguinte em Phylosophy of Physics in General Physics Courses, Science & Society, 42, pp.410-425, 1978, a propósito do materialismo dialéctico: «Um sistema filosófico não pode ser um substituto da ciência da física, mas pode servir como um guia metodológico para a investigação e exposição científica. O materialismo dialéctico não é um dogma e os materialistas dialécticos não reivindicam nenhum monopólio no acesso ao conhecimento científico».
[17] Peter Mason, físico marxista, diz assim no seu livro Science, Marxism and the Big Bang (Socialist Publications Ltd, 2007): «Na nossa discussão sobre cosmologia [...] não temos quaisquer ilusões que nós, como marxistas, possuímos, baseados no materialismo dialéctico, critérios prontos-a-usar pelos quais podemos julgar as teorias científicas».
[18] No livro de Peter Mason são apontados erros clamorosos de dois marxistas trotskistas proeminentes (Ted Grant e Alan Woods) num livro que publicaram sobre descobertas da física, desde a Teoria da Relatividade até ao big-bang. Chegam esses marxistas ao cúmulo de defender a visão metafísica de um universo infinito e no «estado estacionário», invocando a autoridade de, nem mais nem menos que... Nicolau de Cusa, teólogo e astrónomo alemão do século XV!!! Incrível, mas é verdade.
Note-se que não são apenas marxistas da corrente trotskista que cometeram erros neste particular. Poderíamos também apresentar inúmeros erros do mesmo tipo da corrente estalinista, designadamente na URSS no tempo de Estaline (ver [20]). Como o caso Lysenko, que rejeitou a genética «burguesa» (não materialista dialéctica) atrasando tremendamente os estudos soviéticos nesse campo, ou, de forma análoga, os atrasos que sofreram a cibernética e as ciências da computação na URSS pelo mesmo motivo.
[19] Engels caiu nesse erro na sua obra Dialéctica da Natureza, ao criticar duas grandes descobertas científicas do seu tempo: a 2.ª Lei da Termodinâmica e a interpretação puramente selectiva da Teoria da Evolução das Espécies de Darwin. Erros justamente apontados no livro, acima referido, de Jacques Monod.
Sobre a 2.ª Lei da Termodinâmica, diz Engels assim (Notas e Fragmentos. Física): «De qualquer modo que se nos apresente o segundo princípio de Clausius, etc., implica sempre que a energia de perde, qualitativamente ou mesmo quantitativamente. A entropia não pode ser destruída por via natural, mas por outro lado, pode ser criada. Deve ter-se dado em primeiro lugar corda ao relógio do universo [...] A energia para lhe dar corda desapareceu, pelo menos quantitativamente, e só pode ser restituída por uma impulsão vinda do exterior. Portanto a impulsão do exterior era igualmente necessária no princípio [...] Ad absurdum!» De facto, a 2.ª Lei da Termodinâmica não põe em causa a conservação da energia; a energia não «se perde». Apenas diz que, qualitativamente, as diversas formas de energia não são iguais (na interpretação termodinâmica clássica de Clausius, a energia térmica e a energia mecânica). Engels, contudo, vê bem a questão do «impulso inicial»; questão que tem atrapalhado a ciência até à actual teoria do big bang. Embora ainda não inteiramente resolvida, uma pedra angular da explicação reside no princípio da incerteza da mecânica quântica, relativamente à energia e ao tempo. É possível obter energia a partir do «nada» num tempo muito curto. Para mais sobre este assunto sugerimos: Lawrence Krauss, A Universe from Nothing. Simon & Schuster, 2012.
Sobre a teoria de Darwin, diz Engels assim (Notas e Fragmentos. Biologia): «É precisamente de Darwin o erro de misturar [...] duas coisas absolutamente estranhas: 1. A selecção por pressão da sobrepopulação [...] 2. A selecção graças a uma faculdade de adaptação maior [...]» De facto, as duas coisas não são «estranhas» uma à outra, mas complementares. Engels denota neste texto estar ainda muito influenciado por Malthus (o teórico da «sobrepopulação») e não ter compreendido bem a teoria de Darwin. Sobre este tema recomendamos o livro acima citado de Teresa Avelar et al., Quem Tem Medo de Charles Darwin?
Engels só cometeu estes dois erros na Dialéctica da Natureza. Em grande parte por limitações da ciência do seu tempo. Disse também muitas coisas acertadas, como esta que a física só posteriormente veio a confirmar: «No zero absoluto nenhum gás é possível. Todo o movimento das moléculas está parado. A menor pressão, portanto, a sua própria atracção aglomera-as. Portanto um gás permanente é um absurdo
Erwin Marquit, apesar da opinião que citámos acima, não nos parece isento de crítica. A propósito do paradoxo de Zeno, defende que a «solução» dialéctica é superior à solução apresentada por outros, por exemplo por Bertrand Russel (baseada no conceito de limite). Ora, a «solução» dialéctica de Marquit reduz-se à expressão da unidade dos contrários: «Podemos agora ver a vantagem de tomar a contradição básica do movimento mecânico de deixar uma região e entrar noutra [Parafraseia a formulação de Hegel de que um corpo num certo momento está aqui e não está aqui]. Ao não incluirmos posição definida como uma propriedade de um corpo em movimento, tomamos o movimento como propriedade fundamental da matéria». Quanto a nós, nenhum enunciado metodológico pode solucionar o que quer que seja e não é por dizermos que «o movimento é propriedade fundamental da matéria» que o paradoxo de Zeno fica solucionado e muito menos com «vantagem».
[20] Note-se que o trabalho de Estaline «Materialismo Dialéctico e Histórico» está bastante bem feito. Começa por dizer (sublinhados nossos) «O materialismo dialéctico é a visão do mundo do partido marxista-leninista. É chamado materialismo dialéctico porque a sua abordagem aos fenómenos da natureza, o seu método de os estudar e os apreender, é dialéctico, enquanto a sua interpretação dos fenómenos da natureza, o seu conceito desses fenómenos, a sua teoria, é materialista.», prosseguindo «O materialismo histórico é a extensão dos princípios do materialismo dialéctico ao estudo da vida social, uma aplicação dos princípios do materialismo dialéctico aos fenómenos da vida em sociedade; ao estudo da sociedade e da sua história.» Concordamos inteiramente com esta exposição. Note-se a menção de «método» e «princípios» como defendemos.
O problema é que, mais adiante no texto, Estaline deixa cair as palavras «método» e «princípios» e começa a usar «lei» («lei do desenvolvimento [dialéctico]», «desenvolvimento da sociedade de acordo com leis regulares», etc.). Ora, a dialéctica não tem «leis», com toda a carga definitiva e autoritativa que a palavra carreia, e as leis do desenvolvimento da sociedade estão muito longe de serem «regulares».
Além disso, no seu texto, Estaline intitula as secções (1) e (2), respectivamente, como «Método Dialéctico Marxista» e «Materialismo Filosófico Marxista». Ora, não existe nada, nem na dialéctica nem no materialismo, que seja exclusivo dos marxistas. Uma imensidade de pessoas segue exactamente a mesma atitude/filosofia materialista e dialéctica dos marxistas sem se posicionar como tal (nomeadamente no plano político).
Deslizes de pouca monta? Talvez não. A breve trecho, a «visão do mundo» materialista dialéctica passa na URSS a ser uma «ciência oficial» muito especial, só conhecida dos «marxistas» do PCUS. Os «cientistas» com capacidade de interpretar as leis da «ciência» começam por ser os membros do Comité Central do PCUS. Mais tarde, apenas o «cientista-mor» Estaline é proclamado como o depositário da correcta interpretação das «leis».